Crônica: Ciranda da Indiferença
Ignácio de Loyola Brandão
Em troca de algumas moedas, um
menininho joga várias bolinhas para o alto com a destreza de um malabarista.
Enquanto isso, uma menina se esmera para limpar o vidro dos carros com uma
flanela suja, outro menino vende balas, e outro, limão. Qual o futuro dessas
crianças?
NO TRÂNSITO, A CIRANDA DAS
CRIANÇAS
Então sempre na esquina da
Avenida Brasil com a Rua Colômbia. Duas meninas e dois meninos, num dia. No
outro, três meninas, dois meninos. Parecem se alternar. Irão para outros
pontos? Mas três crianças são fixas, donas do lugar. Conquistaram por
usucapião. Dominam o território. Como e quem faz essa divisão? Por que não
aparecem outras? Chegam cedo e só vão embora quando o tráfego diminui, depois
das oito da noite. Cada um carrega sua caixinha de Mentex, de chicletes, de
bombom. Ainda que seja a região propícia ao luxuoso chocolate Godiva, se vende
bem o Sonho de Valsa, dos mais gostosos. Faça sol ou chuva, as crianças estão
ali, alertas, correndo da avenida para a rua, da rua para a avenida, ao sabor
dos sinais de trânsito. Num canto da Imi, a loja de decorações, ficam duas
mulheres. Talvez as mães ou quem quer que sejam. Não arredam o pé do lugar, não
se levantam nunca. Ficam apenas fiscalizando, atentas ao movimento das
crianças. Passam o dia sentadas. Nunca sentem vontade de ir ao banheiro? E
quando necessitam, como fazem? As empresas por aqui certamente não as deixam
entrar. Há uns arbustos perto da Rua México. Seria ali que deságuam? De vez em
quando, as duas tomam sorvete. Ou um Yakult ocasional, quando passam aquelas
mulheres puxando um carrinho branco.
As crianças possuem, entre elas,
um gentlemen´s agreement. Quando o sinal vermelho acende, elas correm,
distribuindo as tarefas.
--- O BMW é seu!
--- O Mercedes fica comigo!
--- Corra para a Alfa!
Conhecem todas as marcas de
“carrões”! As crianças executam uma ciranda em meio aos carros, correndo
agarradas às caixinhas. Os que aproximam, dentro dos veículos, mantêm os vidros
fechados. Defesa paulistana. O vidro erguido isola o motorista do mundo.
As crianças rodeiam, olham para
dentro, como esfomeados olham alguém comendo num restaurante. Há quem faça um
aceno com a cabeça, sempre negativo. Outros abanam as mãos. Há os impacientes,
os irritados. Terceiros continuam a conversar com os parceiros ao lado. O mundo
no interior dos carros é uma bolha, cápsula espacial. As pessoas estão na
estratosfera. Nada têm a ver com o que se passa fora. Todos fazem questão de
não olhar, não ouvir. Como se estas crianças fossem invisíveis ou
transparentes. Os olhares as atravessam, sem que elas se materializem, se corporifiquem,
se tornem humanas.
Parecem não se cansar nunca.
Sempre sorridentes. Brincam entre si. O não constante não as desilude, nem tira
o ânimo. Sabem, desde cedo, que o não faz parte da vida delas, permanece
grudado na pele. Conhecem mais o não que sim. Correm de um lado para o outro.
Os que estão nos “carrões” são os que nunca compram. Quem chega em carros
“inferiores”, em vulgares Fuscas, Gols, Voyage, Unos, em geral abre o vidro, dá
uma palavra. Muitas vezes, as crianças querem apenas conversar com alguém
diferente. Enfiam a cabeça dentro da janela, com olhos excitados. Sempre pedem
alguma coisa, para não perder o hábito: “Tia, me dá aquele batom? Tio, me dá
essa caneta!” E querem a revista, o jornal, o chaveiro que ficou no console,
até mesmo os folhetos recebidos na esquina anterior.
Às vezes, chove. E o abrigo é
original, ainda que não proteja muito. As crianças procuram se enfiar nos vãos
das letras gigantescas que formam a palavras Imi. Letras de concreto, verdes.
Há uma ligação entre o I e o M. O M abriga em suas curvas duas
crianças. Claro que há proteção no caso da chuva ser vertical. Se tem vento ou
a chuva vem inclinada, elas se molham. Também não se importam. Existe coisa
melhor, quando a gente é criança, que brincar na chuva? Ainda que estas
crianças, de oito ou nove anos, mirradas, sejam adultas no que possuem de
experiência, vivência. Amadurecem cedo. Olhamos e não sabemos. Quanto tempo
terão de vida pela frente? Que caminhos existem diante delas?
Onde moram? Foram à escola algum
dia? Faço mentalmente estas perguntas. Por que não faço direto para elas em
lugar de ficar imaginando? É que sabemos as respostas. Neste Brasil sabemos
todas as respostas sobre miséria, fome, subvidas. Por isso não perguntamos. As
crianças desta esquina se reproduzem em centenas de outras esquinas desta
cidade. Deste Brasil. Mas houve um dia em que elas estiverem especialmente
excitadas. E felizes. Foi na manhã em que o cortejo levando Senna ao cemitério
passou aqui. As crianças, contentíssimas, venderam, como nunca, suas balas,
chocolates, mentex, bombons. As coisas se esvaziaram. Tristezas de uns, meio de
vida e alegria de outros.
(Ignácio de
Loyola Brandão. Calcinhas secreta. São Paulo: Ática, 2003. P.
76-8. Col. Para Gostar de Ler.)
1 - O narrador volta seu alhar atento para as
crianças que ele vê num farol, em uma esquina.
a)
Em que cidade os fatos acontecem? Justifique
sua respostas.
Os fatos acontecem em São Paulo, pois o narrador, no 6º parágrafo,
usa a expressão “defesa Paulistana”, além disso, faz referência a Avenida
Brasil, Rua Colômbia, Rua México, locais conhecidos da cidade de São Paulo.
b)
No último parágrafo, o narrador afirma; “As
crianças desta esquina se reproduzem em centenas de outras esquinas desta
cidade. Deste Brasil”. Interprete essa afirmação.
Ele quer dizer que crianças como as retratadas no texto não existem
apenas naquela esquina da cidade de São Paulo; elas podem ser vistas em outras
esquinas, da cidade e do país.
2 - Ao longo do texto, o narrador se faz
várias perguntas, que aparecem em frases interrogativas diretas.
a)
O que intriga o narrador, por exemplo, no 1º
parágrafo?
Intriga-o o modo como as crianças são organizadas para realizar o
trabalho e o número de horas que as mulheres que acompanham as crianças ficam
ali, sem ter nenhum banheiro para utilizar.
b)
Existem no texto respostas para as perguntas
que o narrador se faz?
Não. As perguntas são reflexos que ele ou qualquer transeunte faria.
3 - Pelo 1º parágrafo do texto, sabemos
que o trabalho das crianças não é espontâneo.
a)
Quem está por trás desse trabalho?
Adultos, como as mulheres que fiscalizam as crianças e podem ser
suas próprias mães.
b)
Levante hipóteses: Por que crianças são
postas para executar esse trabalho?
Porque os adultos ficam com pena das crianças e assim se motivam a
ajudar comprando; porque a crianças pouco ou nada se paga.
4 - No 6º e 7º parágrafos, o narrador descreve
o comportamento das pessoas dentro dos carros quando o semáforo fecha.
a)
Levante hipóteses: Por que as pessoas,
especialmente as mais ricas, mantêm os vidros do carro permanentemente
fechados?
Porque sentem medo, ou porque querem evitar o contato direto com o
mundo exterior.
b)
Interprete a imagem: “O mundo no interior dos
carros é uma bolha, cápsula espacial”.
O mundo no interior dos carros está vedado pelo vidro fechado, o
qual impede a passagem do som externo, o contato direto com as pessoas, etc. Como
uma cápsula espacial.
c)
O que
o narrador denuncia com essas observações?
O narrador denuncia a insensibilidade e a indiferença das pessoas em
relação a essas crianças de rua.
5 - No 8º parágrafo, o narrador afirma que
as crianças “parecem não se cansar nunca”.
a)
Por que ele imagina isso?
Porque elas estão sempre sorridentes e brincam entre si.
b)
Que razão o narrador apresenta para
justificar a ânimo das crianças?
Elas não se desiludem com nada, porque sabem que o não faz parte da
vida delas.
6 - No penúltimo parágrafo, há uma reflexão
sobre o futuro das crianças. De acordo com o texto, que futuro elas terão?
O futuro delas é uma incógnita, para
o narrador e para as outras pessoas. Diz o narrador. “Olhamos e não sabemos”.
7 - No último parágrafo, ao questionar a
respeito da moradia e da educação das crianças daquela esquina, o narrador se
coloca como sujeito da ação, dizendo: “Faço mentalmente estas perguntas. Por
que não faço direto para elas em lugar de ficar imaginando”.?
a)
Ao se
colocar como sujeito da ação, o que muda na postura até então observadora do
narrador?
Nesse momento, ele assume que também tem responsabilidade sobre o
que está vendo, mas que está tendo um comportamento semelhante ao das pessoas
em relação a essas crianças.
b)
Por
que o narrador usa a 1ª pessoa do plural ao concluir: “É que sabemos as
respostas”?
Porque, ao usar a 1ª pessoa do plural, ele se inclui entre os
cidadãos de todas as cidades do país que sabem as respostas para as perguntas
que formulou.
c)
Troque
ideias com os colegas: Quais são as respostas que conhecemos e que não foram
explicitadas?
Resposta pessoal. Sugerimos abrir uma discussão com a classe.
Referente ao trabalho e exploração infantil.
8 - A palavra CIRANDA tem mais de um sentido. Veja alguns deles:
a)
Que sentido essa palavra assume no título
quando se considera o trabalho cotidiano e incansável das crianças?
Assume o sentido de “movimentação, agitação”.
b)
Por que o título se torna irônico quando se
associam à palavra ciranda os sentidos
de “roda” ou de “roda infantil”?
O título se torna irônico porque a ciranda infantil, que deveria ser
uma brincadeira e acontecer, por exemplo, num parque, tristemente tonou-se
trabalho infantil e é feita em meio aos carros, na maior cidade do país, sem
que ninguém faça nada para impedir tal situação.
Ótimo o seu blog, Parabéns.
ResponderExcluirÉ até o 6 Quesito !!
ResponderExcluirMuito obrigado
ResponderExcluirValeu aí, tava precisando das respostas pra amanhã shshhhshs
ResponderExcluirEu tanbem queria pra amanhã
ExcluirMuito bom gostei
ResponderExcluirMaravilhoso
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