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domingo, 22 de janeiro de 2017

CRÔNICA: CIRANDA DA INDIFERENÇA - IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO - COM GABARITO

Crônica: Ciranda da Indiferença 
 Ignácio de Loyola Brandão

          Em troca de algumas moedas, um menininho joga várias bolinhas para o alto com a destreza de um malabarista. Enquanto isso, uma menina se esmera para limpar o vidro dos carros com uma flanela suja, outro menino vende balas, e outro, limão. Qual o futuro dessas crianças?
         
                  NO TRÂNSITO, A CIRANDA DAS CRIANÇAS
              Então sempre na esquina da Avenida Brasil com a Rua Colômbia. Duas meninas e dois meninos, num dia. No outro, três meninas, dois meninos. Parecem se alternar. Irão para outros pontos? Mas três crianças são fixas, donas do lugar. Conquistaram por usucapião. Dominam o território. Como e quem faz essa divisão? Por que não aparecem outras? Chegam cedo e só vão embora quando o tráfego diminui, depois das oito da noite. Cada um carrega sua caixinha de Mentex, de chicletes, de bombom. Ainda que seja a região propícia ao luxuoso chocolate Godiva, se vende bem o Sonho de Valsa, dos mais gostosos. Faça sol ou chuva, as crianças estão ali, alertas, correndo da avenida para a rua, da rua para a avenida, ao sabor dos sinais de trânsito. Num canto da Imi, a loja de decorações, ficam duas mulheres. Talvez as mães ou quem quer que sejam. Não arredam o pé do lugar, não se levantam nunca. Ficam apenas fiscalizando, atentas ao movimento das crianças. Passam o dia sentadas. Nunca sentem vontade de ir ao banheiro? E quando necessitam, como fazem? As empresas por aqui certamente não as deixam entrar. Há uns arbustos perto da Rua México. Seria ali que deságuam? De vez em quando, as duas tomam sorvete. Ou um Yakult ocasional, quando passam aquelas mulheres puxando um carrinho branco.
              As crianças possuem, entre elas, um gentlemen´s agreement. Quando o sinal vermelho acende, elas correm, distribuindo as tarefas.
              --- O BMW é seu!
              --- O Mercedes fica comigo!
              --- Corra para a Alfa!
              Conhecem todas as marcas de “carrões”! As crianças executam uma ciranda em meio aos carros, correndo agarradas às caixinhas. Os que aproximam, dentro dos veículos, mantêm os vidros fechados. Defesa paulistana. O vidro erguido isola o motorista do mundo.
              As crianças rodeiam, olham para dentro, como esfomeados olham alguém comendo num restaurante. Há quem faça um aceno com a cabeça, sempre negativo. Outros abanam as mãos. Há os impacientes, os irritados. Terceiros continuam a conversar com os parceiros ao lado. O mundo no interior dos carros é uma bolha, cápsula espacial. As pessoas estão na estratosfera. Nada têm a ver com o que se passa fora. Todos fazem questão de não olhar, não ouvir. Como se estas crianças fossem invisíveis ou transparentes. Os olhares as atravessam, sem que elas se materializem, se corporifiquem, se tornem humanas.
             Parecem não se cansar nunca. Sempre sorridentes. Brincam entre si. O não constante não as desilude, nem tira o ânimo. Sabem, desde cedo, que o não faz parte da vida delas, permanece grudado na pele. Conhecem mais o não que sim. Correm de um lado para o outro. Os que estão nos “carrões” são os que nunca compram. Quem chega em carros “inferiores”, em vulgares Fuscas, Gols, Voyage, Unos, em geral abre o vidro, dá uma palavra. Muitas vezes, as crianças querem apenas conversar com alguém diferente. Enfiam a cabeça dentro da janela, com olhos excitados. Sempre pedem alguma coisa, para não perder o hábito: “Tia, me dá aquele batom? Tio, me dá essa caneta!” E querem a revista, o jornal, o chaveiro que ficou no console, até mesmo os folhetos recebidos na esquina anterior.
             Às vezes, chove. E o abrigo é original, ainda que não proteja muito. As crianças procuram se enfiar nos vãos das letras gigantescas que formam a palavras Imi. Letras de concreto, verdes. Há uma ligação entre o I e o M. O M abriga em suas curvas duas crianças. Claro que há proteção no caso da chuva ser vertical. Se tem vento ou a chuva vem inclinada, elas se molham. Também não se importam. Existe coisa melhor, quando a gente é criança, que brincar na chuva? Ainda que estas crianças, de oito ou nove anos, mirradas, sejam adultas no que possuem de experiência, vivência. Amadurecem cedo. Olhamos e não sabemos. Quanto tempo terão de vida pela frente? Que caminhos existem diante delas?
             Onde moram? Foram à escola algum dia? Faço mentalmente estas perguntas. Por que não faço direto para elas em lugar de ficar imaginando? É que sabemos as respostas. Neste Brasil sabemos todas as respostas sobre miséria, fome, subvidas. Por isso não perguntamos. As crianças desta esquina se reproduzem em centenas de outras esquinas desta cidade. Deste Brasil. Mas houve um dia em que elas estiverem especialmente excitadas. E felizes. Foi na manhã em que o cortejo levando Senna ao cemitério passou aqui. As crianças, contentíssimas, venderam, como nunca, suas balas, chocolates, mentex, bombons. As coisas se esvaziaram. Tristezas de uns, meio de vida e alegria de outros.

                                 (Ignácio de Loyola Brandão. Calcinhas secreta. São Paulo: Ática, 2003. P.
                                                                                  76-8. Col. Para Gostar de Ler.)
1 -     O narrador volta seu alhar atento para as crianças que ele vê num farol, em uma esquina.
a)     Em que cidade os fatos acontecem? Justifique sua respostas.
Os fatos acontecem em São Paulo, pois o narrador, no 6º parágrafo, usa a expressão “defesa Paulistana”, além disso, faz referência a Avenida Brasil, Rua Colômbia, Rua México, locais conhecidos da cidade de São Paulo.

b)    No último parágrafo, o narrador afirma; “As crianças desta esquina se reproduzem em centenas de outras esquinas desta cidade. Deste Brasil”. Interprete essa afirmação.
Ele quer dizer que crianças como as retratadas no texto não existem apenas naquela esquina da cidade de São Paulo; elas podem ser vistas em outras esquinas, da cidade e do país.

2 -     Ao longo do texto, o narrador se faz várias perguntas, que aparecem em frases interrogativas diretas.
a)     O que intriga o narrador, por exemplo, no 1º parágrafo?
Intriga-o o modo como as crianças são organizadas para realizar o trabalho e o número de horas que as mulheres que acompanham as crianças ficam ali, sem ter nenhum banheiro para utilizar.

b)    Existem no texto respostas para as perguntas que o narrador se faz?
Não. As perguntas são reflexos que ele ou qualquer transeunte faria.
3 -          Pelo 1º parágrafo do texto, sabemos que o trabalho das crianças não é espontâneo.
a)     Quem está por trás desse trabalho?
Adultos, como as mulheres que fiscalizam as crianças e podem ser suas próprias mães.

b)    Levante hipóteses: Por que crianças são postas para executar esse trabalho?
Porque os adultos ficam com pena das crianças e assim se motivam a ajudar comprando; porque a crianças pouco ou nada se paga.

4 -     No 6º e 7º parágrafos, o narrador descreve o comportamento das pessoas dentro dos carros quando o semáforo fecha.
a)       Levante hipóteses: Por que as pessoas, especialmente as mais ricas, mantêm os vidros do carro permanentemente fechados?
Porque sentem medo, ou porque querem evitar o contato direto com o mundo exterior.

b)      Interprete a imagem: “O mundo no interior dos carros é uma bolha, cápsula espacial”.
O mundo no interior dos carros está vedado pelo vidro fechado, o qual impede a passagem do som externo, o contato direto com as pessoas, etc. Como uma cápsula espacial.

c)       O que o narrador denuncia com essas observações?
O narrador denuncia a insensibilidade e a indiferença das pessoas em relação a essas crianças de rua.

5 -        No 8º parágrafo, o narrador afirma que as crianças “parecem não se cansar nunca”.
a)     Por que ele imagina isso?
Porque elas estão sempre sorridentes e brincam entre si.

b)    Que razão o narrador apresenta para justificar a ânimo das crianças?
Elas não se desiludem com nada, porque sabem que o não faz parte da vida delas.

6 -        No penúltimo parágrafo, há uma reflexão sobre o futuro das crianças. De acordo com o texto, que futuro elas terão?
          O futuro delas é uma incógnita, para o narrador e para as outras pessoas. Diz o narrador. “Olhamos e não sabemos”.

7 -        No último parágrafo, ao questionar a respeito da moradia e da educação das crianças daquela esquina, o narrador se coloca como sujeito da ação, dizendo: “Faço mentalmente estas perguntas. Por que não faço direto para elas em lugar de ficar imaginando”.?
a)       Ao se colocar como sujeito da ação, o que muda na postura até então observadora do narrador?
Nesse momento, ele assume que também tem responsabilidade sobre o que está vendo, mas que está tendo um comportamento semelhante ao das pessoas em relação a essas crianças.

b)      Por que o narrador usa a 1ª pessoa do plural ao concluir: “É que sabemos as respostas”?
Porque, ao usar a 1ª pessoa do plural, ele se inclui entre os cidadãos de todas as cidades do país que sabem as respostas para as perguntas que formulou.

c)       Troque ideias com os colegas: Quais são as respostas que conhecemos e que não foram explicitadas?
Resposta pessoal. Sugerimos abrir uma discussão com a classe. Referente ao trabalho e exploração infantil.

8 -        A palavra CIRANDA tem mais de um sentido. Veja alguns deles:
a)     Que sentido essa palavra assume no título quando se considera o trabalho cotidiano e incansável das crianças?
Assume o sentido de “movimentação, agitação”.

b)    Por que o título se torna irônico quando se associam à palavra ciranda os sentidos de “roda” ou de “roda infantil”?
O título se torna irônico porque a ciranda infantil, que deveria ser uma brincadeira e acontecer, por exemplo, num parque, tristemente tonou-se trabalho infantil e é feita em meio aos carros, na maior cidade do país, sem que ninguém faça nada para impedir tal situação.




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