CRÔNICA: OS NETOS DE LENNON
Walcyr Carrasco
Vamos ler agora um texto em que o narrador-personagem relata experiências vividas com criança cujo comportamento não é nada civilizado.
Nada como uma boas férias para sofrer uma crise histérica com as crianças. Não com todas, é claro. Refiro-me a um tipo especial de anjinho, cada vez mais frequente na cidade. Seus pais, tios e avós amavam os Beatles e os Rolling Stones. Frutos de uma omelete de teorias libertárias, as gracinhas podem tudo – e atormentam a todos. Há três semanas, um casal foi almoçar lá em casa, com a filha. Servi macarrão com molho al pesto.
A sinhazinha, do alto de seus 7 anos, experimentou, torceu o nariz e declarou aos gritos:
- Está horrível, horrível!
Disfarcei, achando que a mãe devia estar morta de vergonha. Coisa nenhuma. Estava feliz, até orgulhosa:
- Minha filha é muito autêntica.
A autêntica começou a bater a colher no prato, espalhando o molho verde pela toalha de renda. Arreganhei os lábios, tenso. O pai sorriu:
- Acho que você não foi muito feliz no cardápio. Ela prefere sundae. Tem mania de misturar sorvete com bacon.
Prometi intimamente servir dobradinha com açúcar queimado se alguma vez os encontrasse de novo pela frente. Quando eu era pequeno, minha mãe me obrigava a comer um pouco e fingir que gostava. Agora devo continuar gentil enquanto a jovem gourmande atira um fiapo de espaguete nos meus óculos.
Recentemente, em uma livraria, vi um menino agarrar o rolo de papel da máquina de calcular da caixa. Enquanto a pobre moça tentava salvar suas contas, a mãe assistia à cena placidamente. Conheço outro garoto que, mal chegado à casa alheia, atira-se com os sapatos sujos sobre o sofá, pula nas almofadas e agarra os cinzeiros de vidro sem ouvir um ah! da mãe, que mantém a expressão extasiada porque ele “é muito esperto”. Estive próximo de um ataque cardíaco certa vez em que decidi levá-lo a passear no shopping. Correr atrás dele pelas lojas equivaleu a um treino para disputar as Olimpíadas. Ele simplesmente parecia incapaz de perceber o sentido da palavra não. Para os espíritos aventureiros, o ideal é ir no fim de semana a algum shopping da moda e conviver com a nova geração de superliberados. São centenas de crianças agitadas como abelhas e propensa a trombar nas pernas alheias, como se os adultos fossem um trambolho incômodo. Pior: o espírito anti-repressor da educação parece resultar em pequenas personalidades autoritárias.
- Pai, eu quero pizza já!
- Mas...
- Já, pai, agora mesmo!
Muitas têm manias que me surpreendem. Levei um susto no restaurante japonês. A menina, de uns 8 anos, chegou com os pais. Pediu, sofisticada:
- Sushi. Mas só de atum, com pouca mostarda. Cuidado, da outra vez você exagerou. Rápido, estou com fome.
O sushiman ficou olhando chocado, com a faca erguida. Fechei os olhos. Quando abri, ela comia agilmente, com os palitinhos nipônicos. Já vi cenas semelhantes em lojas. Um garoto:
- Este tênis nunca, nunca!
O pai tímido:
- Mas é igual ao outro e mais barato, filho.
- Eu só uso da minha marca!
Muitas crianças conhecem grifes, perfumes, a maioria tem um pé na computação, nenhuma resiste a um vídeo game. Fazem os pais comprarem o que querem e, por isso, os lojistas as recepcionam com sorrisos e suspiros. Perdi uma grande amiga por causa do rebento. Resisti a tudo: mordidas nas almofadas, livros rasgados. Até o dia em que esqueci a porta aberta e ele se pendurou no murinho da varanda do 6º andar, onde vivo. Gritei, assustado:
- Saí daí, você vai cair.
O anjinho sorriu, uma das pernas balançando no espaço. Olhei para o lado: a mãe folheava uma revista calmamente. Eu me senti o próprio Indiana Jones. Dei três saltos, mergulhei de cabeça e o atirei ao chão. A mãe veio, furiosa:
- Você não tinha o direito. Deixou o menino fora de si. Impediu que ele tivesse a experiência integralmente. Como é que a cabecinha dele vai reagir?
- Cair do 6º andar é uma experiência integral?
Muitas vezes, minha vontade é dar um belo beliscão à antiga em alguns desses netos de Lennon. Mas me contenho. A culpa afinal não é deles, mas de uma geração de pais com horror à palavra não. E um bom não, sinceramente, não faz mal a ninguém.
CARRASCO, Walcyr. Os netos de Lennon
VAMOS ENTENDER O TEXTO
1)Releia o primeiro parágrafo e responda: Qual o problema apresentado pelo
narrador?
A falta de educação de algumas crianças.
2)Em qual trecho se
encontra a maior crítica ao comportamento dessas crianças?
Disfarcei, achando que a mãe devia estar morta
de vergonha, Coisa nenhuma, estava feliz até orgulhosa.
3)Transcreva do primeiro parágrafo uma frase que contenha ironia.
Refiro-me
a um tipo especial de anjinhos.
4)O termo sinhazinha era a designação que os escravos davam à filha da
patroa (que era a sinhá). Por que o autor diz “a sinhazinha” para se referir à
menina de 7 anos?
Porque ela si acha ser.
4) Cite alguns episódios onde segundo o autor as crianças têm
comportamento inadequado.
- Pai, eu quero pizza, já.
- Este tênis nunca, nunca.
- Eu só uso da minha marca.
É impossível ensinar sem essa coragem de querer bem, sem a valentia dos que insistem mil vezes antes de uma desistência. É impossível ensinar sem a capacidade forjada, inventada, bem cuidada de amar. (Paulo Freire)
Bom dia, Jaqueline. Adorei seu blog. Ótimas atividades, estou usando vários textos e projeto que postou. Poderia enviar o por gentileza o gabarito do texto TEXTO: QUANDO A INTERNET SE TRANSFORMA EM VÍCIO.
ResponderExcluirDesde já agradeço,
Prof. Edmar Lima
Graduado em Língua Portuguesa - UNIMONTES - Universidade Estadual de Montes
Pós graduado em Linguística aplicada e Corretor de textos
Abraços,
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirParabéns. Estou aprendendo muito por esse canal educativo, Faço todos os dias os mais variados tipos de exercícios : interpretação de texto, provas etc.
ResponderExcluirGostaria de saber se há um livro com esses assuntos à venda nas livrarias.
ResponderExcluirQual a opinião do cronista sobre as criancas retratadas e sobre seus pais?
ResponderExcluir