RELATO: PRIMEIRA VEZ NA EUROPA - parte 1
Martha Medeiros
Era 1986 e eu tinha
24 anos. Andava angustiada, queria escapar da rotina e me enxergar de forma
inédita, e viajar sempre ajuda - ao menos pra mim, que sempre considerei uma
prática terapêutica. Então, depois de juntar dinheiro, negociar meu afastamento
temporário do trabalho e fazer meu namorado (o mesmo com quem fui ao Rock in
Rio) entender que eu precisava de um tempo sozinha, embarquei para Londres,
onde minha melhor amiga estava morando, recém-casada.
Havia umas 300
pessoas a bordo do avião, mas fui a única a ser revistada quando desembarquei
no aeroporto de Heathrow - meu aspecto muçulmano me condena. Como não levava
granadas na bagagem, entrei no país sem
mais perguntas. Minha amiga me esperava na área de desembarque. Depois de um
longo abraço, pegamos o metrô e começamos a tagarelar dentro do vagão, sem ver
o tempo passar. Quando saí da estação e pisei, de fato, na primeira rua a céu
aberto do Velho Continente, a impressão que tive é que eu estava de volta à
minha casa - era como se eu tivesse nascido em Londres. Até hoje não sei
explicar o que faz com que sintamos uma identificação tão forte com um lugar e
sintonia nenhuma com outro. O escritor Gustave Flaubert defendia a tese de que
a nacionalidade de uma pessoa não deveria ser estabelecida por sua cidade de
nascimento, e sim pelos locais pelos quais a pessoa se sentia atraída.
"Meu país natal é aquele que amo, ou seja, aquele que me faz sonhar, que
me faz sentir bem. Sou tão chinês quanto francês..." Naquele dia eu
comecei a descobrir como se dava, na prática, essa amplitude informal de
cidadania. Passava a me sentir tão londrina quanto porto-alegrense.
O apartamento da minha
amiga era minúsculo, e eu não seria sonsa de atrapalhar o casal que estava
praticamente em lua de mel, então aluguei um quarto na casa de uma inglesa meio
maluca, a Daphne, separada e com quatro filhos: Gregor, Boris, Fiona e Phylis.
Quarto franciscano, mas limpinho, banheiro no corredor. As refeições eu teria
que fazer fora, mas podia usar a geladeira para guardar o que comprasse para
consumo próprio. O bairro era Pimlico, perfeito. Tudo acertado, joguei minha
sacola num canto e fui dormir, mas não dormi. Passei a noite em claro e em
pânico: o que vim fazer na Europa sozinha? Vou perder meu emprego. Vou perder meu
namorado. Vou me perder. Help, I need somebody.
A noite sempre foi
madrasta com meus pensamentos. Quando acordei no dia seguinte, já não havia
vestígio daquela garota medrosa. Tomei um banho e fui pra rua, e tudo começou.
Pirei com Londres. Passava os dias em parques e museus, e o que mais gostava
era de ver a movimentação das pessoas, aquela diversidade cultural, cada um na
sua, com seu estilo. Uma metrópole vanguardista e ao mesmo tempo monárquica,
uma contradição estimulante. Almoçava pizza, jantava um pedaço de queijo e
caminhava uns 20 km por dia, ou mais. À noite, costumava sair com minha amiga e
o marido dela, que, aliás, vivem atualmente em Porto Alegre e são meus melhores
amigos até hoje. Em Londres, assisti no cinema o blockbuster do momento, 9 1/2 Weeks (Nove e meia semanas de amor), só se
falava nesse filme, e o enredo prometia ser fácil o suficiente para eu
entendê-lo sem a ajuda de legendas. E assisti ao musical Cats numa matinê cujo
preço do ingresso era compatível com minhas posses. Foi quando confirmei que
musical não é mesmo meu gênero teatral preferido. Cats me pareceu cafona e um
tantinho enfadonho: sofri ao ouvir a música-tema, "Melody", com a
mesma intensidade com que sofria ao ouvir "Feelings", do Morris
Albert. Muito preocupados com a minha opinião, a trupe ficou em cartaz por 21
anos no New London Theatre.
Às vezes, quando o
cansaço batia, ficava sozinha no meu quarto, escrevendo. Um dia a Phylis, que
era a menorzinha da família, uns três anos de idade, me viu com um bloco e uma
caneta na mão e pediu, com seu jeitinho encantador, para que eu desenhasse um
"bear". Sorri e desenhei. Quando mostrei minha obra-prima para ela, a
menina desatou a chorar. O que eu havia feito de errado? Até hoje me divirto
quando lembro dessa história. Desenhei uma garrafa de cerveja.
"Beer". Sempre tive muito jeito com crianças.
Dias depois, uma
carioca chegou na casa e passou a dividir o quarto comigo. Não era de muitas
palavras, mas mesmo assim a convidei para passar o fim de semana em Edimburgo,
na Escócia. Ela resmungou um "ok", pegamos um ônibus e partimos numa
viagem noturna de umas oito horas. Chegando lá, brrrrrrrr. Nunca havia sentido
tanto frio na vida. A cidade era gelada, mas por outro lado estava acontecendo
um festival de música e o clima era muito festivo nos parques e ruas. Me
agasalhei e fui ao encontro da arte, mas a garota só queria saber de ficar
trancafiada no bed & breakfast em que nos hospedamos. Se eu, que era do sul
do Brasil, sofria com a baixa temperatura, ela, carioca, estava em estado de
choque. Deve me amaldiçoar até hoje pelo convite. Quando voltamos a Londres,
ainda passei uns três dias na casa da Daphne, até que começou a chegar mais
gente, surgiu uma muambeira não sei de onde, e aí achei que o prazo havia
esgotado pra mim. Juntei minhas coisas e parti. Nunca mais soube de ninguém
dessa turma. Querida Phylis, espero que o trauma tenha passado. Te devo um
ursinho.
MEDEIROS, Martha. Um lugar na janela: relatos de viagem. Porto Alegre: L&PM, 2012. Edição e-book.
Fonte: Livro: Língua
Portuguesa: linguagem e interação/ Faraco, Moura, Maruxo Jr. – 3.ed. São Paulo:
Ática, 2016. p.177 a 180.
ENTENDENDO O TEXTO
1. Logo no início do
texto, há a seguinte afirmação:
[...] Andava angustiada,
queria escapar da rotina e me enxergar de forma inédita, e viajar sempre ajuda
- ao menos pra mim, que sempre considerei uma prática terapêutica. (linhas 1-4)
a)
Em
sua opinião, o que significa "me enxergar de forma inédita"?
Resposta
pessoal. Sugestão: Significa se perceber de uma maneira original, nunca vista.
b) Quando você viaja, também tem esse
objetivo?
Resposta pessoal.
c) De acordo com o texto, o que teria
motivado a viagem da autora a Londres?
Ela estava se sentindo angustiada.
2. Que relação pode
ser estabelecida entre ser a única pessoa a ser revistada no aeroporto e ter um
aspecto muçulmano?
Há uma relação de causa/consequência. A
causa é ter aparência de muçulmano e a consequência, ser revistada. Pelo relato
da autora, nota-se que, antes mesmo dos ataques terroristas às torres gêmeas de
Nova York, em 2001, por muçulmanos, a partir dos quais os aeroportos têm
revistado as pessoas de modo bem mais rigoroso que antes, principalmente as
pessoas de origem ou de aparência árabe, as revistas já focavam esses
passageiros.
3. Releia o seguinte
trecho:
O escritor Gustave
Flaubert defendia a tese de que a nacionalidade de uma pessoa não deveria ser
estabelecida por sua cidade de nascimento, e sim pelos locais pelos quais a
pessoa se sentia atraída. "Meu país natal é aquele que amo, ou seja,
aquele que me faz sonhar, que me faz sentir bem. Sou tão chinês quanto
francês..." Naquele dia eu comecei a descobrir como se dava, na prática,
essa amplitude informal de cidadania. (linhas 25-33)
a) Você concorda com
essa tese? Por quê?
Resposta
pessoal.
b) Em sua opinião, por que o conceito de cidadania foi empregado ao lado do conceito de nacionalidade?
Resposta
pessoal. Sugestão: O conceito de cidadania está, geralmente, restrito ao país
de nascimento. No caso do enunciador desse relato, ele também se sente cidadão
inglês.
c) Qual é o sentido da expressão e sim no
primeiro período? Reescreva o trecho, substituindo essa expressão em destaque
por apenas uma conjunção de sentido equivalente.
A expressão
e sim tem o sentido de oposição, fazendo correlação com o não citado
anteriormente no período; portanto, pode ser substituída pela conjunção
adversativa mas.
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ResponderExcluirÓtimo
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