Texto: A vida imita um livro
Fernando Meirelles
Nessa noite houve novamente leitura e
audição, não tinham outra maneira de se distraírem, lástima que o médico não
fosse, por exemplo, violinista amador, que doces serenatas poderiam então ouvir-se
nesse quinto andar, os vizinhos invejosos diriam, Aqueles, ou lhes corre bem a
vida, ou são uns inconscientes e julgam poder fugir à desgraça rindo-se da
desgraça dos mais. Agora não há outra música senão a das palavras, e essas,
sobretudo as que estão nos livros, são discretas, ainda que a curiosidade
trouxesse a escutar à porta alguém do prédio, não ouviria mais do que um
murmúrio solitário, este longo fio de som que poderá infinitamente
prolongar-se, porque os livros do mundo, todos juntos, são como dizem que é o
universo, infinitos. Quando a leitura terminou, noite adentro, o velho da venda
preta disse, A isto estamos reduzidos, a ouvir ler, Eu não me queixo, poderia
ficar assim para sempre, disse a rapariga dos óculos escuros, Nem eu
estou a me queixar, só digo que apenas servimos para isto, para ouvir ler a
história de uma humanidade que antes de nós existiu, aproveitamos o acaso de
haver aqui ainda uns olhos lúcidos, os últimos que restam, se um dia eles se
apagarem, não quero nem pensar, então o fio que nos une a essa humanidade
partir-se-á, será como se estivéssemos a afastar-nos um dos outros no espaço,
para sempre, e tão cegos eles como nós, Enquanto puder, disse a rapariga dos
óculos escuros, manterei a esperança, a esperança de vir a encontrar meus pais,
a esperança de que a mãe deste rapaz apareça, Esqueceste-te de falar da
esperança de todos, Qual, a de recuperar a vista, Há esperanças que é loucura
ter, pois eu digo-te que se não fossem essas eu já teria desistido da vida,
Dá-me um exemplo, Voltar a ver, Esse já conhecemos, dá-me outro, Não dou,
Porquê, Não te interessa, E como sabes que não me interessa, que julgas tu
conhecer de mim para decidires, por tua conta, o que me interessa e o que não
me interessa, Não te zangues, não tive a intenção de magoar-te, Os
homens são todos iguais, pensam que basta ter nascido de uma barriga de mulher
para saber tudo de mulheres, Eu de mulheres sei pouco, de ti nada, e quanto a
homem, para mim, ao tempo que isso vai, agora sou um velho, e zarolho, além de
cego, Não tens mais nada para dizeres contra ti, Muito mais, nem tu imaginas
quanto a lista negra das auto-recriminações vai crescendo à medida que os anos
passam, Nova sou eu, e já estou bem servida, Ainda não fizeste nada de
verdadeiramente mau, Como podes sabê-lo, se nunca viveste comigo, Sim, nunca
vivi contigo, Por que repetiste nesse tom as minhas palavras, Que tom, Esse, Só
disse que nunca vivi contigo, O tom, o tom, não finjas que não compreendes, Não
insistas, peço-te, Insisto preciso saber, Voltamos às esperanças, Pois
voltemos, O outro exemplo de esperança que me recusei a dar era esse, Esse,
qual, A última auto-recriminação da minha lista, Explica-te, por favor, não
entendo de charadas, O monstruoso desejo de que não venhamos a recuperar a
vista, Porquê, Para continuarmos a viver assim, Queres dizer, todos juntos, ou
tu comigo, Não me obrigues a responder, Se fosses só um homem poderias fugir à
resposta, como todos fazem, mas tu mesmo disseste que és um velho, e um velho,
se ter vivido tanto tem algum sentido, não deveria virar a cara à verdade,
responde, Eu contigo, E por que queres tu viver comigo, Esperas que o diga
diante de todos eles, Fizemos uns diante dos outros as coisas mais sujas, mais
feias, mais repugnantes, com certeza não é pior o que tens para me dizer-me, Já
que o queres, então seja, porque o homem que eu ainda sou gosta da mulher que
tu és, Custou assim tanto a fazer a declaração de amor, Na minha idade, o
ridículo mete medo, Não foste ridículo, Esqueçamos isto, peço-te, Não tenciono
esquecer nem deixar que esqueças, É um disparate, obrigaste-me a falar, e
agora, E agora é a minha vez, Não diga nada de que te possas arrepender,
lembra-te da lista negra, Se eu estiver a ser sincera hoje, que importa que
tenha de arrepender-me amanhã, Cala-te, Tu queres viver comigo e eu quero viver
contigo, Estás doida, Passaremos a viver juntos aqui, como um casal, e juntos
continuaremos a viver se tivermos de nos separar dos nosso amigos, dois cegos
devem poder ver mais do que um, É uma loucura, tu não gostas de mim, Que é isso
de gostar, eu nunca gostei de ninguém, só me deitei com homens, Estás a dar-me
razão, Não estou, Falaste de sinceridade, responde-me então se é mesmo verdade
gostares de mim, Gosto o suficiente para querer estar contigo, e isto é a
primeira vez que digo a alguém, Também não mo dirias a mim se me tivesses
encontrado antes por aí, um homem de idade, meio calvo, de cabelos brancos, com
uma pala num olho e uma catarata no outro, A mulher que eu então era não o
diria, reconheço, quem o disse foi a mulher que sou hoje, Veremos então o que
terá para dizer a mulher que serás amanhã, Pões-me à prova, Que ideia, quem
seria eu para pôr-te à prova, a vida é que decide essas coisas, Uma ela já
decidiu.
Tiveram esta conversa frente a frente,
os olhos cegos de um fitos nos olhos cegos do outro, os rostos encendidos e
veementes, e quando, por tê-lo dito um deles e pôr o quererem os dois,
concordaram que a vida tinha decidido que passassem a viver juntos, a rapariga
dos óculos escuros estendeu as mãos, simplesmente para as dar, e não para saber
por onde ia, tocou as mãos do velho da venda preta, que a atraiu suavemente
para si, e assim ficaram sentados os dois, juntos, não era a primeira vez,
claro está, mas agora tinham sido ditas as palavras de recebimento. Nenhum dos
outros fez comentários, nenhum deu parabéns, nenhum exprimiu votos de
felicidade eterna, em verdade o tempo não está para festejos e ilusões, e
quando as decisões são tão graves como esta parece ter sido, não surpreenderia
até que alguém tivesse pensado que é preciso ser-se cego para comportar-se
desta maneira, o silêncio ainda é o melhor aplauso. O que a mulher do médico
fez foi estender no corredor uns quantos coxins dos sofás, suficientes para
improvisar uma cama, depois levou para lá o rapazinho estrábico e disse-lhe, A
partir de hoje passas a dormir aqui. Quanto ao que aconteceu na sala, tudo
indica que nesta primeira noite terá ficado finalmente esclarecido o caso da
mão misteriosa que lavou as costas do velho da venda preta naquela manhã em que
correram tantas águas, todas elas lutrais.”
Ensaio
sobre a cegueira. São Paulo:
Companhia das Letras,
1995. p. 289-92.
Entendendo o texto:
01 – Releia este trecho da
narrativa: “Quando a leitura terminou,
noite dentro, o velho da venda preta disse, A isto estamos reduzidos, a ouvir
ler, Eu não me queixo, poderia ficar assim para sempre, disse a rapariga dos
óculos escuros”.
a)
Identifique nesse trecho a fala do narrador e
a adas personagens.
Do narrador: “Quando [...] disse” e “disse a rapariga dos óculos escuros”; do velho: “A isto estamos reduzidos, a
ouvir ler”; da moça: “Eu não me
queixo, poderia ficar assim para sempre”.
b)
De que recursos o autor se valeu para
delimitar as falas de cada um?
Emprega apenas a vírgula, deixando de lado o travessão e as aspas.
Apesar disso, alguns verbos dicendi são mantidos: “disse”.
02 – No diálogo entre o
velho da venda preta e a rapariga dos óculos escuros, o velho, referindo-se aos
olhos da mulher do médico, que ainda podem ver, afirma: “se um dia eles se
apagarem, não quero nem pensar, então o fio que nos une a essa humanidade
partir-se-à, será como se estivéssemos a afastar-nos uns dos outros no espaço,
para sempre, e tão cegos eles como nós”.
a)
Explique essa afirmação do velho.
A cegueira definitiva significaria um hiato que afastaria para
sempre esses dois momentos das história da humanidade (antes e depois da
cegueira), pois sem a visão não haveria transmissão da experiência e do saber
acumulados, de modo que o saber de um grupo não serviria para o outro.
b)
A condição de cegueira absoluta, pela
perspectiva do velho, pode ser vista como a era da desrazão? Por quê?
Sim, seria o mesmo que barbárie: o homem teria de reaprender a viver
nessa nova condição, como se fossem todos primitivos.
03 – No diálogo das duas
personagens, o velho diz que tem um monstruoso desejo: o de que as pessoas não
recuperem a vista. Qual é a razão de tal desejo?
O fato de ele se
sentir atraído pela moça de óculos escuros e não querer separar-se dela.
04 – A cegueira de que quase
todos são vítimas por um lado brutaliza o ser humano, levando-o à condição de
animal irracional; por outro, pode aproximar as pessoas. Explique por que, com
base no relacionamento entre o velho e a moça.
Conforme o texto,
se eles enxergassem, ela o veria velho e calvo, e talvez não se interessasse
por ele. Cegos os dois, a aproximação de ambos se dá pela essência de cada um,
e não pela aparência.
05 – No final dessa obra, as
personagens voltam a recuperar a visão, mas estão agora irremediavelmente
modificadas, pois, depois daquela experiência, já não podem ver o mundo da
mesma forma que antes.
a)
Ao abrirmos a obra, deparamos com a seguinte
epígrafe: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. Estabeleça diferenças
entre olhar, ver e reparar.
Enquanto olhar sugere uma percepção mais genérica do mundo, ver
sugere uma percepção mais seletiva e demorada do objeto. Reparar sugere um
estágio ainda mais aprofundado e detido de percepção, que busca enfocar o
detalhe.
b)
A visão que se tem da realidade está
associada diretamente à consciência de cada indivíduo. No poema “Tabacaria”,
Álvaro de Campos diz: “Se eu casasse com a filha da minha lavadeira / Talvez
fosse feliz”. Considerando esse dado, responda: Por que a mulher do médico é a
personagem que mais sofre na obra?
Porque é a única pessoa que, por conseguir olhar, pode ver tudo o
que acontece. Só ela tem a real dimensão da tragédia que se abateu sobre a
cidade.
c)
As personagens, depois de recuperarem a
visão, passam a perceber a realidade de modo diferente. O leitor da obra, por
sua vez, é conduzido pelo narrador ao mundo da cegueira para emergir dele com
uma visão cada vez mais clara e ampla da realidade. Com qual dos verbos
mencionados na epígrafe (olhar, ver e reparar) essa visão se relaciona?
Com o verbo reparar, pois o leitor, ao final da obra, pode ter da
condição humana e de nossas contradições uma visão mais crítica e apurada.
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