terça-feira, 7 de maio de 2019

ROMANCE: TIETA DO AGRESTE -(FRAGMENTO) - JORGE AMADO - COM GABARITO

Romance: Tieta do Agreste - Fragmento
      

Minuciosa descrição do confuso desembarque de Tieta, a filha pródiga ou Antonieta Esteves Cantarelli, a viúva alegre
                                Jorge Amado

        Na primeira fila, a família, tristeza expressa nos olhares, nas lágrimas, nos trajes. Um passo à frente dos demais, o velho Zé Esteves, mascando fumo. Em seguida aos enlutados parentes, o reverendo, os meninos do catecismo, as pessoas gradas, dona Carmosina, buquê em punho, o colorido alegre das flores destoando do crepe e do choro – essa criatura para aparecer passa por cima dos sentimentos mais sagrados, indigna-se Perpétua, por baixo do véu preso ao coque, a lhe cobrir o rosto. Depois, as beatas e o resto da população.
        A marinete se aproxima, Jairo ao volante, poucos passageiros. Para Jairo dia magro, para Agreste dia gordo, dia de matar o carneiro pascoal, de foguetório e festa em honra da filha pródiga, não fosse ela viúva em nojo e dor. Cabem somente luto e lágrimas, cantoria de igreja.
        As conversas cessam, Peto se alteia na ponta dos pés, assim a tia desembarque ele cairá fora, arrancará os sapatos. A marinete estanca num rumor cansado de juntas e molas.
        Peto conta os passageiros que descem: seu Cunha, um, o casal de roceiros, dois, três, dona Carmelita, quatro, a criada, cinco, esse eu nunca vi, seis, nem esse, sete, seu Agostinho da padaria, oito, a mulher dele, nove, a filha, dez, a tia Antonieta e a moça vão ser os últimos. Mesmo Jairo salta antes, carregado de maletas e bolsas das esperadas viajantes. Com Jairo fazem onze, agora doze, é ela, por fim.
        Será ela? Peto fica em dúvida. Não pode ser, a tia deve estar de luto, véu fúnebre tapando o rosto, igual à mãe, não pode ser de maneira alguma essa artista de cinema, Gina Lollobrigida. Na porta, sobre o degrau, majestosa, Antonieta Esteves – Antonieta Esteves Cantarelli, faça o favor, exige Perpétua. Deslumbrante. Alta, fornida de carnes, a longa cabeleira loira sobrando do turbante vermelho. Vermelho, sim, vermelho igual à blusa esporte, de malha, simples e elegante, marcando a firmeza dos seios volumosos dos quais se vê apreciável amostra através da gola de botões abertos. A calça Lee azul colada às coxas e à bunda, valorizando volumes e reentrâncias, que volumes! que reentrâncias! Os pés calçados com finos mocassins havana. O único detalhe escuro em todo o traje da viúva são os óculos esfumaçados, lentes e armação quadradas, o podre do chique, assinados por Christian Dior. O espanto dura uma fração mínima de tempo, um tempo imenso, uma eternidade.
        Peto, vitorioso, exclama:
        -- A tia não está de luto, Mãe. Posso tirar os sapatos e a gravata?
        Antonieta, paralisada sobre o degrau, na porta do ônibus: diante dela a família de luto pela morte de Felipe, o inolvidável esposo, e ela em tecnicolor, em azul e vermelho, blusa aberta, esportivas calças Lee, ai, meu Deus, como não pensara em luto? Estudara cada pormenor e os discutira com Leonora, meticulosamente. Esquecera o mais importante. Mas já Zé Esteves cospe o pedaço de fumo e estende os braços para a filha pródiga:
        -- Minha filha! Pensei que não ia mais te ver mas Deus quis me dar essa consolação antes da morte.
        De cima do degrau da marinete, Antonieta reconhece o pai. O pai e o bordão. É o mesmo, o mesmíssimo cajado que cantou em suas costas naquela noite de fim do mundo. Um frouxo de riso sobe dentro dela, não consegue contê-lo, estremece, incontrolável som a romper-lhe a boca, apenas tem tempo de encobrir o rosto com as mãos, antes de saltar. Acorrem todos a consolar a viúva em pranto, filha pródiga afogando os soluços nos braços do pai, comovente instante. Nem Perpétua se deu conta. Elisa chora e ri, de repente desafogada, a irmã sendo como imaginara, sem tirar nem pôr. Única a estranhar o curioso som inicial, dona Carmosina aproxima-se com as flores tão de acordo com o traje de viagem de Tieta.
        Enquanto Tieta vai de abraço em abraço, disputada pelas irmãs, pelo cunhado, pelos sobrinhos – tire os sapatos, meu lindo, fique à vontade –, presa aos beijos sem conta, às lágrimas de Elisa, na porta da marinete de Jairo aparece a mais formosa, a mais doce e sedutora donzela, esbelta juventude, uma sílfide como logo reconheceu e proclamou o vate De Matos Barbosa. Parada, a contemplar a emocionante cena, emocionada ela também. Encantadora no slaque delavê, boné da mesma fazenda rodeado de cabelos loiros, acinzentados pela poeira, Peto reconhece a própria mocinha dos filmes de caubói. Um murmúrio de admiração percorre a rua, Tieta, desprendendo-se dos beijos de Elisa, apresenta:
        -- Leonora Cantarelli, minha enteada, minha filha, não tem diferença.
        Dona Carmosina volta-se para Ascânio Trindade e o surpreende embevecido. E agora, amigo? Leonora amplia o meigo sorriso, abarcando a todos, detendo-se em Ascânio a fixá-la, atoleimado.
        -- Feche a boca, Ascânio, e vá ajudar a moça a descer – ordena dona Carmosina.
        Adianta-se Ascânio, oferece a mão à paulista: seja bem-vinda às terras de Agreste, pobres, sadias e belas, perdoe o atraso e o desconforto. Ricardo põe o joelho em terra para pedir a bênção à tia mas ela o ergue e o toma nos braços, beija-lhe as faces: meu padreco mais garboso!
        Após compreensível indecisão, o padre Mariano resolve, não vai perder, por uma questão de protocolo, o difícil trabalho de adaptação da letra de uma ladainha e de quinze dias de ensaios.
        Faz um sinal, os meninos do catecismo cantam:
        “Vestida de negro
         Ela apareceu
         Trazendo nos olhos
         As cores do luto.
         Ave! Ave!
         Ave Antonieta!”
        [...]
        Ei-la em Sant’Ana do Agreste, em meio à família em luto, a ouvir os meninos do catecismo; obrigada, Padre. De todo o coração. Do mar, chega a brisa da tarde, vem saudá-la. Com ajuda de Sabino, Jairo desembarca as malas, a bagagem viaja no teto da marineti, coberta com lona grossa como se alguma cobertura adiantasse contra a poeira do caminho.
        -- Vamos minha filha. – Convida Zé Esteves oferecendo o braço, apoiando-se no bastão.
        -- Para minha casa. – Tenta comandar Perpétua em meio aos destroços da violada compunção.
        Cabe-lhe a culpa, a mais ninguém. Como pudera imaginar Tieta vestindo luto por marido? Fizera da irmã a sua igual, como se dinheiro, alta sociedade, casamento com paulista rico e comendador do Papa pudessem consertar quem nasceu torta, rebelde a códigos, leis e respeito humano, sem régua nem compasso.
                                      Rio de Janeiro. Record. 1977. p. 92-5.
Entendendo o romance:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:
·        Grado: graúdo, importante.
·        Nojo: luto.
·        Inolvidável: inesquecível.
·        Sílfide: feminino de silfo, o mesmo que gênio do ar; figura vaporosa.
·        Marineti: ônibus.

02 – Seguindo a tradição da literatura oral nordestina, o texto é apresentado pelo narrador. A apresentação, em destaque, é feita de modo imparcial ou deixa transparecer opiniões do narrador? Justifique.
      A apresentação evidencia as opiniões do narrador, como se nota nas expressões “confuso desembarque” e “viúva alegre”.

03 – Sant’Ana do Agreste é uma cidade pequena, de hábitos provincianos. Quando deixou a cidade, Tieta era apenas uma moça simples e namoradeira.
a)   Que fato ligado à chegada de Tieta demonstra o provincianismo da cidade?
A recepção preparada para Tieta, uma pessoa “importante”: com a presença de todos os “grados” da cidade, honrarias, flores, ladainha ensaiada; o pai à frente, depois os familiares, depois, as demais pessoas do povo.

b)   Levante hipóteses: Se Tieta era uma pessoa comum antes de partir da cidade, por qual razão ela tem uma recepção tão especial na sua volta?
Porque todos pensam que ela se tornou milionária ao se casar com um industrial paulista.

04 – Por influência de Perpétua, todos da família esperam Tieta de luto pesado. Até o Padre, com uma ladainha adaptada, preparara uma homenagem para a viúva em nojo e dor. Entretanto, Tieta não aparece em trajes de luto.
a)   De acordo com o texto, por que isso ocorreu?
Tieta se esquecera desse “detalhe”.

b)   Como as pessoas reagem a esse fato? Justifique com um exemplo.
As pessoas se espantam, e o Padre fica confuso, não sabendo se dá ou não o sinal para os meninos cantarem a ladainha.

c)   Que significado tem esse fato para Perpétua, considerando-se o juízo que vinha fazendo da irmã distante?
Perpétua percebe que a irmã não mudara seu jeito de ser.

05 – Releia estes dois fragmentos:
        “Um frouxo de riso sobe dentro dela, não consegue contê-lo, estremece, incontrolável som a romper-lhe a boca, apenas tem tempo de encobrir o rosto com as mãos, antes de saltar.”
        “Será ela? Peto fica em dúvida. Não pode ser, a tia deve estar de luto, véu fúnebre tapando o rosto, igual à mãe, não pode ser de maneira alguma essa artista de cinema, Gina Lollobrigida. Na porta, sobre o degrau, majestosa, Antonieta Esteves – Antonieta Esteves Cantarelli, faça o favor, exige Perpétua.”

a)   O primeiro fragmento, o que se depreende da personalidade de Tieta?
Tieta é irreverente e livre; não se prende às normas sociais.

b)   De acordo com o segundo fragmento, Perpétua insiste em acrescentar ao nome da irmã o sobrenome do falecido: Cantarelli. O que esse fato possibilita depreender a respeito da personalidade dessa personagem?
Perpétua é interesseira; faz questão de vincular o nome da irmã ao de um suposto industrial rico.

06 – Como se caracteriza a linguagem empregada no texto?
      É simples e direta, com palavras e expressões populares, como “dia gordo”; “foguetório”; “cantou em suas costas”; etc.



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