Romance: Tieta do Agreste -
Fragmento
Minuciosa descrição do
confuso desembarque de Tieta, a filha pródiga ou Antonieta Esteves Cantarelli,
a viúva alegre
Jorge Amado
Na primeira fila, a família, tristeza
expressa nos olhares, nas lágrimas, nos trajes. Um passo à frente dos demais, o
velho Zé Esteves, mascando fumo. Em seguida aos enlutados parentes, o
reverendo, os meninos do catecismo, as pessoas gradas, dona Carmosina, buquê em
punho, o colorido alegre das flores destoando do crepe e do choro – essa criatura
para aparecer passa por cima dos sentimentos mais sagrados, indigna-se
Perpétua, por baixo do véu preso ao coque, a lhe cobrir o rosto. Depois, as
beatas e o resto da população.
A marinete se aproxima, Jairo ao
volante, poucos passageiros. Para Jairo dia magro, para Agreste dia gordo, dia
de matar o carneiro pascoal, de foguetório e festa em honra da filha pródiga,
não fosse ela viúva em nojo e dor. Cabem somente luto e lágrimas, cantoria de
igreja.
As conversas cessam, Peto se alteia na
ponta dos pés, assim a tia desembarque ele cairá fora, arrancará os sapatos. A
marinete estanca num rumor cansado de juntas e molas.
Peto conta os passageiros que descem:
seu Cunha, um, o casal de roceiros, dois, três, dona Carmelita, quatro, a
criada, cinco, esse eu nunca vi, seis, nem esse, sete, seu Agostinho da
padaria, oito, a mulher dele, nove, a filha, dez, a tia Antonieta e a moça vão
ser os últimos. Mesmo Jairo salta antes, carregado de maletas e bolsas das
esperadas viajantes. Com Jairo fazem onze, agora doze, é ela, por fim.
Será ela? Peto fica em dúvida. Não pode
ser, a tia deve estar de luto, véu fúnebre tapando o rosto, igual à mãe, não
pode ser de maneira alguma essa artista de cinema, Gina Lollobrigida. Na porta,
sobre o degrau, majestosa, Antonieta Esteves – Antonieta Esteves Cantarelli,
faça o favor, exige Perpétua. Deslumbrante. Alta, fornida de carnes, a longa
cabeleira loira sobrando do turbante vermelho. Vermelho, sim, vermelho igual à
blusa esporte, de malha, simples e elegante, marcando a firmeza dos seios
volumosos dos quais se vê apreciável amostra através da gola de botões abertos.
A calça Lee azul colada às coxas e à bunda, valorizando volumes e reentrâncias,
que volumes! que reentrâncias! Os pés calçados com finos mocassins havana. O
único detalhe escuro em todo o traje da viúva são os óculos esfumaçados, lentes
e armação quadradas, o podre do chique, assinados por Christian Dior. O espanto
dura uma fração mínima de tempo, um tempo imenso, uma eternidade.
Peto, vitorioso, exclama:
-- A tia não está de luto, Mãe. Posso
tirar os sapatos e a gravata?
Antonieta, paralisada sobre o degrau,
na porta do ônibus: diante dela a família de luto pela morte de Felipe, o
inolvidável esposo, e ela em tecnicolor, em azul e vermelho, blusa aberta,
esportivas calças Lee, ai, meu Deus, como não pensara em luto? Estudara cada
pormenor e os discutira com Leonora, meticulosamente. Esquecera o mais importante.
Mas já Zé Esteves cospe o pedaço de fumo e estende os braços para a filha
pródiga:
-- Minha filha! Pensei que não ia mais
te ver mas Deus quis me dar essa consolação antes da morte.
De cima do degrau da marinete,
Antonieta reconhece o pai. O pai e o bordão. É o mesmo, o mesmíssimo cajado que
cantou em suas costas naquela noite de fim do mundo. Um frouxo de riso sobe
dentro dela, não consegue contê-lo, estremece, incontrolável som a romper-lhe a
boca, apenas tem tempo de encobrir o rosto com as mãos, antes de saltar.
Acorrem todos a consolar a viúva em pranto, filha pródiga afogando os soluços
nos braços do pai, comovente instante. Nem Perpétua se deu conta. Elisa chora e
ri, de repente desafogada, a irmã sendo como imaginara, sem tirar nem pôr.
Única a estranhar o curioso som inicial, dona Carmosina aproxima-se com as
flores tão de acordo com o traje de viagem de Tieta.
Enquanto Tieta vai de abraço em abraço,
disputada pelas irmãs, pelo cunhado, pelos sobrinhos – tire os sapatos, meu
lindo, fique à vontade –, presa aos beijos sem conta, às lágrimas de Elisa, na
porta da marinete de Jairo aparece a mais formosa, a mais doce e sedutora
donzela, esbelta juventude, uma sílfide como logo reconheceu e proclamou o vate
De Matos Barbosa. Parada, a contemplar a emocionante cena, emocionada ela
também. Encantadora no slaque delavê, boné da mesma fazenda rodeado de cabelos
loiros, acinzentados pela poeira, Peto reconhece a própria mocinha dos filmes
de caubói. Um murmúrio de admiração percorre a rua, Tieta, desprendendo-se dos
beijos de Elisa, apresenta:
-- Leonora Cantarelli, minha enteada, minha
filha, não tem diferença.
Dona Carmosina volta-se para Ascânio
Trindade e o surpreende embevecido. E agora, amigo? Leonora amplia o meigo
sorriso, abarcando a todos, detendo-se em Ascânio a fixá-la, atoleimado.
-- Feche a boca, Ascânio, e vá ajudar a
moça a descer – ordena dona Carmosina.
Adianta-se Ascânio, oferece a mão à
paulista: seja bem-vinda às terras de Agreste, pobres, sadias e belas, perdoe o
atraso e o desconforto. Ricardo põe o joelho em terra para pedir a bênção à tia
mas ela o ergue e o toma nos braços, beija-lhe as faces: meu padreco mais
garboso!
Após compreensível indecisão, o padre
Mariano resolve, não vai perder, por uma questão de protocolo, o difícil
trabalho de adaptação da letra de uma ladainha e de quinze dias de ensaios.
Faz um sinal, os meninos do catecismo
cantam:
“Vestida de negro
Ela apareceu
Trazendo nos olhos
As cores do luto.
Ave! Ave!
Ave Antonieta!”
[...]
Ei-la em Sant’Ana do Agreste, em meio à
família em luto, a ouvir os meninos do catecismo; obrigada, Padre. De todo o
coração. Do mar, chega a brisa da tarde, vem saudá-la. Com ajuda de Sabino,
Jairo desembarca as malas, a bagagem viaja no teto da marineti, coberta com
lona grossa como se alguma cobertura adiantasse contra a poeira do caminho.
-- Vamos minha filha. – Convida Zé
Esteves oferecendo o braço, apoiando-se no bastão.
-- Para minha casa. – Tenta comandar
Perpétua em meio aos destroços da violada compunção.
Cabe-lhe a culpa, a mais ninguém. Como
pudera imaginar Tieta vestindo luto por marido? Fizera da irmã a sua igual,
como se dinheiro, alta sociedade, casamento com paulista rico e comendador do
Papa pudessem consertar quem nasceu torta, rebelde a códigos, leis e respeito
humano, sem régua nem compasso.
Rio de
Janeiro. Record. 1977. p. 92-5.
Entendendo o romance:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Grado:
graúdo, importante.
·
Nojo: luto.
·
Inolvidável: inesquecível.
·
Sílfide: feminino de silfo, o mesmo que gênio do ar; figura vaporosa.
·
Marineti:
ônibus.
02 – Seguindo a tradição da
literatura oral nordestina, o texto é apresentado pelo narrador. A
apresentação, em destaque, é feita de modo imparcial ou deixa transparecer
opiniões do narrador? Justifique.
A apresentação
evidencia as opiniões do narrador, como se nota nas expressões “confuso
desembarque” e “viúva alegre”.
03 – Sant’Ana do Agreste é
uma cidade pequena, de hábitos provincianos. Quando deixou a cidade, Tieta era
apenas uma moça simples e namoradeira.
a)
Que fato ligado à chegada de Tieta demonstra
o provincianismo da cidade?
A recepção preparada para Tieta, uma pessoa “importante”: com a
presença de todos os “grados” da cidade, honrarias, flores, ladainha ensaiada;
o pai à frente, depois os familiares, depois, as demais pessoas do povo.
b)
Levante hipóteses: Se Tieta era uma pessoa
comum antes de partir da cidade, por qual razão ela tem uma recepção tão
especial na sua volta?
Porque todos pensam que ela se tornou milionária ao se casar com um
industrial paulista.
04 – Por influência de
Perpétua, todos da família esperam Tieta de luto pesado. Até o Padre, com uma
ladainha adaptada, preparara uma homenagem para a viúva em nojo e dor.
Entretanto, Tieta não aparece em trajes de luto.
a)
De acordo com o texto, por que isso ocorreu?
Tieta se esquecera desse “detalhe”.
b)
Como as pessoas reagem a esse fato?
Justifique com um exemplo.
As pessoas se espantam, e o Padre fica confuso, não sabendo se dá ou
não o sinal para os meninos cantarem a ladainha.
c)
Que significado tem esse fato para Perpétua,
considerando-se o juízo que vinha fazendo da irmã distante?
Perpétua percebe que a irmã não mudara seu jeito de ser.
05 – Releia estes dois
fragmentos:
“Um
frouxo de riso sobe dentro dela, não consegue contê-lo, estremece,
incontrolável som a romper-lhe a boca, apenas tem tempo de encobrir o rosto com
as mãos, antes de saltar.”
“Será ela? Peto fica em dúvida. Não
pode ser, a tia deve estar de luto, véu fúnebre tapando o rosto, igual à mãe,
não pode ser de maneira alguma essa artista de cinema, Gina Lollobrigida. Na
porta, sobre o degrau, majestosa, Antonieta Esteves – Antonieta Esteves
Cantarelli, faça o favor, exige Perpétua.”
a)
O primeiro fragmento, o que se depreende da
personalidade de Tieta?
Tieta é irreverente e livre; não se prende às normas sociais.
b)
De acordo com o segundo fragmento, Perpétua
insiste em acrescentar ao nome da irmã o sobrenome do falecido: Cantarelli. O
que esse fato possibilita depreender a respeito da personalidade dessa
personagem?
Perpétua é interesseira; faz questão de vincular o nome da irmã ao
de um suposto industrial rico.
06 – Como se caracteriza a
linguagem empregada no texto?
É simples e
direta, com palavras e expressões populares, como “dia gordo”; “foguetório”;
“cantou em suas costas”; etc.
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