Mostrando postagens com marcador CRÔNICA. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador CRÔNICA. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 19 de setembro de 2025

CRÔNICA: O BANHO - FRAGMENTO - CLARICE LISPECTOR - COM GABARITO

 Crônica: O Banho – Fragmento

              Clarice Lispector

        [...]

        Antes estava fechada, opaca. Mas, quando me levan­tei, foi como se tivesse nascido da água. Saí molha­da, a roupa colada à pele, os cabelos brilhantes, sol­tos. Qualquer coisa agitava-se em mim e era certa­mente meu corpo apenas. Mas num doce milagre tudo se torna transparente e isso era certamente mi­nha alma também. Nesse instante eu estava verda­deiramente no meu interior e havia silêncio. Só que meu silêncio, compreendi, era um pedaço do silên­cio do campo. E eu não me sentia desamparada.

 

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjozuBsQPF6oeMIukpkim4qkhBqmbIwk6Zh-tQtTzr5PPw7z5Oyyz03iy9OadlunsSvoeQ4njcSV325Uxztyu_s5hrOqFQ4N8umHXlbauzvFFvgORtRVWaQ05rDgfrsl3l7zfyI7xjx4k5djAqhqQ9FUObOSRaORSEEmI3Pve8ZuYMlHkXJk8eTieIcCl8/s320/nilo-amazonas-1.bx_.jpg 

O cavalo de onde eu caíra esperava-me junto ao rio. Montei-o e voei pelas encostas que a sombra já inva­dia e refrescava. Freei as rédeas, passei a mão pelo pescoço latejante e quente do animal. Continuei a passo lento, escutando dentro de mim a felicidade, alta e pura como um céu de verão. Alisei meus bra­ços, onde ainda escorria a água. Sentia o cavalo vivo perto de mim, uma continuação do meu corpo. Am­bos respirávamos palpitantes e novos. Uma cor maciamente sombria deitara-se sobre as campinas mor­nas do último sol e a brisa leve voava devagar. É preciso que eu não esqueça, pensei, que fui feliz, que estou sendo feliz mais do que se pode ser. Mas es­queci, sempre esqueci.

        Eu estava sentada na Catedral, numa espera distraída e vaga. Respirava opressa o perfume roxo e frio das imagens. E, subitamente, antes que pu­desse compreender o que se passava, como um cataclisma, o órgão invisível desabrochou em sons cheios, trêmulos e puros. Sem melodia, quase sem música, quase apenas vibração. As paredes compridas e as altas abóbadas da igreja recebiam as notas e devol­viam-nas sonoras, nuas e intensas. Elas transpassavam-me, entrecruzavam-se dentro de mim, enchiam meus nervos de estremecimentos, meu cérebro de sons. Eu não pensava pensamentos, porém música. Insensivelmente, sob o peso do cântico, escorreguei do banco, ajoelhei-me sem rezar, aniquilada. O órgão emudeceu com a mesma subitaneidade com que ini­ciara, como uma inspiração. Continuei respirando baixinho, o corpo vibrando ainda aos últimos sons que restavam no ar num zumbido quente e translú­cido. E era tão perfeito o momento que eu nada te­mia nem agradecia e não caí na ideia de Deus. Que­ro morrer agora, gritava alguma coisa dentro de mim liberta, mais do que sofrendo. Qualquer ins­tante que sucedesse àquele seria mais baixo e vazio. Queria subir e só a morte, como um fim, me daria o auge sem a queda. As pessoas se levantavam ao meu redor, movimentavam-se. Ergui-me, caminhei para a saída, frágil e pálida.

Clarice Lispector – Literatura comentada. São Paulo, Nova Cultural, 1988.

Fonte: Português – 1º grau – Descobrindo a gramática 8. Gilio Giacomozzi; Gildete Valério; Cláudia Reda Fenga. São Paulo. FTD, 1992. p. 8.

Entendendo a crônica:

01 – Como a narradora se sentia antes de tomar banho e como sua percepção de si mesma muda após o ato?

      Antes de tomar banho, a narradora se sentia "fechada, opaca". Após o banho, ela descreve um sentimento de renascimento, como se tivesse "nascido da água". Ela passa a se sentir mais conectada com o próprio corpo e com a natureza ao seu redor.

02 – Qual é a relação da narradora com a natureza após o banho, e o que o cavalo representa nesse momento?

      A narradora se sente em total sintonia com a natureza, percebendo seu silêncio como parte do silêncio do campo. O cavalo, do qual ela havia caído, a esperava e se torna uma "continuação do meu corpo", simbolizando a renovação e a sensação de liberdade.

03 – No segundo momento da crônica, o que acontece na Catedral que provoca uma reação intensa na narradora?

      Na Catedral, um órgão invisível começa a tocar de forma súbita, com sons cheios e vibrantes, que não se assemelhavam a uma melodia. Essa música a transpassa e a faz se ajoelhar, sentindo-se aniquilada e tomada por uma emoção avassaladora.

04 – Após a música na Catedral, qual é o desejo mais profundo da narradora e por que ela se sente assim?

      A narradora deseja morrer naquele exato momento, porque o instante era tão perfeito que qualquer outro momento que o sucedesse seria "mais baixo e vazio". A morte seria a única forma de preservar o auge daquela experiência sem ter que enfrentar a "queda" de volta à realidade comum.

05 – O texto apresenta duas experiências extremas: o banho na natureza e o som do órgão na Catedral. Qual é a emoção central que a narradora busca e que ambas as experiências, de certa forma, proporcionam?

      A emoção central que a narradora busca é a plenitude, um momento de felicidade e de conexão profunda consigo mesma e com o mundo. Tanto o banho quanto a música do órgão a levam a um estado de êxtase onde ela se sente completa, liberta e em perfeita sintonia, seja com a natureza ou com o sublime do som.

 

 

CRÔNICA: JAGUATIRICAS A BORDO - FERNANDO SABINO - COM GABARITO

 Crônica: JAGUATIRICAS A BORDO

              Fernando Sabino

        De repente, em pleno voo a caminho de Lisboa, passa por mim um comissário de bordo carregando uma jaguatirica.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg-AnuPJMJHKQxe8XsHMbc49ggGQLC21Gsr7lXjwWf3pzNz9DEmyu7ysjwlK17laMPFVGQiv9ujmwU2L2MoEmQEAjk4_1_QTN9peN63Z9ziH8v_KhHBeOdoEq1ZLCVC2cjM48HpyrjdZbEaSBWGJTnE71V-w2O3Z4JT8jz7Ri0-lzJDuJgTGWs_y1vo1mw/s320/JAGUA.jpg


        Os demais passageiros dormem na penumbra do avião, eu também cochilava ainda há pouco. Estarei sonhando? Nada disso, já vem o homem de volta com o bicho no colo.

        -- Que bicho é esse? – pergunto.            

        -- Uma jaguatirica – responde ele simplesmente, erguendo o felino nos braços para que eu o veja de perto: – filhote ainda. Parece um gato, não parece?

        -- Tira isso pra lá! – reajo, encolhendo-me na poltrona. – Parece uma jaguatirica.

        -- Pois é uma jaguatirica.       

        -- Você me disse.

        Penso comigo: nada mais perecido com uma jaguatirica do que uma jaguatirica. A longa viagem dentro da noite, os passageiros dormindo, tudo conspira para me deixar vagamente idiota, os passageiros flutuando no ar.

        -- E posso saber o que está fazendo essa sua jaguatirica aqui no avião? – pergunto, cauteloso.

        -- Não é minha não – explica ele: – É de um passageiro. Trouxe do Pará, vai levar para morar com ele em Lisboa. A minha deixei no Rio, lá no meu apartamento, um amigo da comida pra ela enquanto viajo.
        -- A sua o quê?

        -- A minha jaguatirica.

        -- Ah! Quer dizer que você também tem uma.

        -- Tenho. Por que? O senhor não gosta de jaguatiricas?

        -- Gosto, gosto... Eu não sabia é que estava na moda ter jaguatiricas. Confesso que no momento não tenho nenhuma.

        -- Quem é que não gosta? – torna ele, entusiasmado, procurando conter a fera, que se mexe ameaçadoramente nos seus braços. – Um amigo meu lá em Teresópolis tem um leãozinho, mas leão dá muito trabalho, o senhor não acha?

        -- Sem dúvida – concordo, sacudindo a cabeça: – Cortar as unhas, pentear a juba, essa coisa toda...

        -- Jaguatirica não: mandei fazer umas luvas, embaixo é peludinho, em cima é de náilon. Para não arranhar o sinteco, sabe? Eu mesmo dou banho nela, é divertido, acredite.

        -- Eu acredito – torno a concordar, sem grande entusiasmo.

        -- Não tem perigo nenhum – insiste ele: – De morder, que eu digo. Só morde quando está com raiva. Pode é arranhar sem querer. Mas não aparo as unhas dela, acho uma pena.

        -- Realmente, seria uma pena.

        Ele continua a dissertar animadamente sobre o assunto:

        -- Esse cara, por exemplo, vai se dar mau com a jaguatirica dele. Porque, como o senhor sabe, jaguatirica não pode viver só com o dono. Chega uma hora lá, tem de casar, não é isso mesmo?

        -- Isso mesmo: não vai ser fácil arranjar em Lisboa um jaguatirica.

        -- É o que eu estou dizendo: como é que ele vai casar a bichinha? Já tive uma que era solteira, foi ficando maluca, acabei tendo de matar a tiro, uma pena.

        Como ele não diz mais nada, olhando embevecido a jaguatirica, me arrisco a perguntar:

        -- Isso aí não é uma espécie de onça não?

        -- Não é não: é uma espécie de jaguatirica mesmo.

        E ele acrescenta, procurando me tranquilizar:

        -- Pode ter certeza de uma coisa: bicho nenhum come gente a não ser que esteja com muita fome. Com fome até o homem é capaz de tudo, inclusive de comer gente. Ouça o que estou lhe dizendo. Ouço o que ele está me dizendo, nos confraternizamos à base do nosso amor às jaguatiricas, e volto a cochilar.

O gato sou eu. Rio de Janeiro, Record, 1984.

Fonte: Português – 1º grau – Descobrindo a gramática 8. Gilio Giacomozzi; Gildete Valério; Cláudia Reda Fenga. São Paulo. FTD, 1992. p. 80.

Entendendo a crônica:

01 – Qual a situação inicial que causa a surpresa do narrador?

      O narrador, em pleno voo noturno para Lisboa, é surpreendido ao ver um comissário de bordo passando com uma jaguatirica no colo.

02 – Como o comissário descreve a jaguatirica para o narrador?

      O comissário diz que é um filhote e o ergue para que o narrador veja de perto, comparando-o a um gato. No entanto, o narrador reage com medo, afirmando que o animal "parece uma jaguatirica".

03 – A jaguatirica que está no avião pertence a quem e para onde está indo?

      O comissário explica que o animal pertence a um passageiro que o trouxe do Pará e o está levando para morar com ele em Lisboa.

04 – O que o narrador descobre sobre a relação do comissário com as jaguatiricas?

      O narrador descobre que o comissário também tem uma jaguatirica em seu apartamento no Rio de Janeiro. Isso o surpreende, e ele confessa que não sabia que "estava na moda ter jaguatiricas".

05 – Quais são os cuidados que o comissário tem com sua jaguatirica, de acordo com o texto?

      O comissário explica que fez luvas especiais para a jaguatirica, com pelinho por baixo e náilon por cima, para não arranhar o sinteco. Ele também diz que ele mesmo dá banho no animal e não apara suas unhas.

06 – Qual o problema que o comissário aponta para o passageiro que leva a jaguatirica para Lisboa?

      O comissário aponta que o passageiro terá dificuldades em Lisboa, pois "jaguatirica não pode viver só com o dono". O animal precisa casar, e o comissário questiona como o passageiro vai arranjar um par para a jaguatirica na nova cidade. Ele ainda relata um caso anterior em que teve que matar uma jaguatirica que ficou "maluca" por ser solteira.

07 – Qual a última afirmação que o comissário faz para o narrador?

      A última afirmação do comissário é que "bicho nenhum come gente a não ser que esteja com muita fome". Ele compara o comportamento do animal ao do ser humano, dizendo que "com fome até o homem é capaz de tudo, inclusive de comer gente".

 

CRÔNICA: TERESA - FRAGMENTO - ÁLVARO CARDOSO GOMES - COM GABARITO

 Crônica: Teresa – Fragmento

              Álvaro Cardoso Gomes

        A Teresa voltou da praia, e estive a pique de lhe dizer que queria acabar nosso namoro. Mas ela estava tão contente, contando as novidades, que terminei ficando com dó e adiei a decisão. Sem contar que o sol lhe tinha feito muito bem. Os olhos da Teresa pareciam mais bonitos com a pele bronzeada.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhpWg4f87xdm780z98beQwIQiMzAThV0flRN3um5qOscg8VSV0JAw6z7juykphmKoAcKPpI11JoWsAlXfj87x-F04P8ZApJkIjRNEGyOeEtKZ7anP5_13Z4bm9PYMhepSnVHT_2OUv84guVrxxVbZD8FnIrpTJXPgSx_4B3eOl6MJnaIKNN6NZm30vnD8c/s320/PRAIA.jpg


        A Teresa não parava de falar, e eu só escutando, com vontade de estar longe dali. Mas chegou uma hora em que ela percebeu que eu estava triste e perguntou por quê.

        -- Estou triste por sua causa.

        -- Por minha causa? Por quê?

        Hesitei um pouco. Dizia ou não dizia que não gostava mais dela?

        -- Estava com saudades.

        Na hora em que disse aquilo, me senti o pior sujeito do mundo. Mas o que podia fazer, se já tinha falado?

        -- Mas eu estou aqui, Sérgio.

        -- Pois é, você voltou.

        -- O que você está querendo dizer com isto?

        -- Nada, Teresa, nada...

        -- Serginhooô...

        O difícil era que a Teresa não entendia nada do que lhe dizia. Ainda por cima, vinha com aquele jeito enjoado de dizer “Serginhooô”, que me deixava com mais raiva. Mas ela logo esqueceu do que estávamos falando e começou a contar do biquíni que havia comprado, das praias de Santos, do novo carro do pai etc. E eu com a cabeça em outro lugar, só pensando na Cybelle e nas coisas que ela tinha me dito. “Você tem razão, garota, eu não presto mesmo. Não mereço você”, falei baixinho.

        -- O que foi que você disse? – Teresa me perguntou.

        -- Nada não...

        Fiquei torcendo para que ela dissesse que eu não estava prestando atenção na conversa. Seria mais um motivo para uma briga. E dessa vez eu terminaria com aquele namoro que já me chateava. Mas a Teresa não disse nada e continuou a falar de Santos, dos passeios na praia. E eu ali a seu lado com a cabeça nas nuvens, que tomavam a forma da Cybelle, do corpo da Cybelle, do sorriso da Cybelle. “Tão bela...”

        -- Serginho, você ficou maluco?

        -- Maluco por quê?

        -- Você não para de falar sozinho.

        Olhei bem para a Teresa, para aqueles olhos verdes, e dei-lhe um beijo.

        -- Tem razão, Teresa, estou completamente maluco.

        Amor & cuba-libre. São Paulo, FTD, 1980.

Fonte: Português – 1º grau – Descobrindo a gramática 8. Gilio Giacomozzi; Gildete Valério; Cláudia Reda Fenga. São Paulo. FTD, 1992. p. 82.

Entendendo a crônica:

01 – Qual era a intenção inicial de Sérgio, o narrador, no início do texto?

      A intenção inicial de Sérgio era terminar o namoro com Teresa.

02 – Por que Sérgio adia sua decisão de terminar com Teresa?

      Ele adia a decisão porque ela estava muito feliz, contando as novidades da praia. Ele sentiu dó e achou que o sol a tinha deixado ainda mais bonita, com a pele bronzeada e os olhos mais bonitos.

03 – Quando Teresa percebe a tristeza de Sérgio, o que ele responde de forma evasiva?

      Quando Teresa pergunta por que ele está triste, Sérgio hesita em dizer a verdade e, em vez disso, responde que estava com saudades dela.

04 – Quem é Cybelle e qual o papel dela na história?

      Cybelle é a pessoa em quem Sérgio está pensando o tempo todo. Ele tem uma conversa mental com ela, dizendo que não a merece, e a imagina como se estivesse nas nuvens, mostrando que está apaixonado por ela e por isso quer terminar o namoro com Teresa.

05 – O que Teresa estava fazendo enquanto Sérgio estava com a cabeça em outro lugar?

      Teresa estava falando sem parar sobre sua viagem à praia, contando sobre o biquíni que comprou, as praias de Santos e o carro novo do pai dela.

06 – O que Sérgio fala baixinho que surpreende Teresa?

      Sérgio fala baixinho: "Você tem razão, garota, eu não presto mesmo. Não mereço você". Ele estava falando consigo mesmo, pensando em Cybelle, mas Teresa ouve a fala.

07 – No final da crônica, o que acontece entre Sérgio e Teresa?

      Teresa percebe que ele está "maluco" por falar sozinho. Sérgio a olha, dá um beijo nela e concorda que está "completamente maluco". O texto termina sem que ele de fato termine o namoro, deixando a decisão em aberto.

 

quinta-feira, 14 de agosto de 2025

CRÔNICA: PARA MARIA DA GRAÇA - PAULO MENDES CAMPOS - COM GABARITO

 Crônica: Para Maria da Graça

              Paulo Mendes Campos

        Agora, que chegaste à idade avançada de 15 anos, Maria da Graça, eu te dou este livro: Alice no País das Maravilhas.

        Este livro é doido, Maria. Isto é: o sentido dele está em ti.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgYGgECNacZ9r1Wpbp127zluI7lBDNcDnibFyNnERd-XWVGICeuTGCCEXUl2rO29GjCKUCdmZF2WdOWhD6FBLqRfexPVhyoy1986-h_tCcuVibRCXDPKPJDA1_Irrf3Q_Yo8lSjKn8Am2w7HMd1KqK46JWumDUXvtueutgyLQ1Ag_V3g8V0xUWBLFMc0Aw/s1600/CRONICA.jpg


        Escuta: se não descobrires um sentido na loucura acabarás louca. Aprende, pois, logo de saída para a grande vida, a ler este livro como um simples manual do sentido evidente de todas as coisas, inclusive as loucas. Aprende isso a teu modo, pois te dou apenas umas poucas chaves entre milhares que abrem as portas da realidade.

        A realidade, Maria, é louca.

        Nem o papa, ninguém no mundo, pode responder sem pestanejar à pergunta que Alice faz à gatinha: "Fala a verdade, Dinah, já comeste um morcego?".

        Não te espantes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou pior, isso acontece muitas vezes por ano. "Quem sou eu no mundo?" Essa indagação perplexa é o lugar-comum de cada história de gente. Quantas vezes mais decifrares essa charada, tão entranhada em ti mesma como os teus ossos, mais forte ficarás. Não importa qual seja a resposta; o importante é dar ou inventar uma resposta. Ainda que seja mentira.

        A sozinhez (esquece essa palavra que inventei agora sem querer) é inevitável. Foi o que Alice falou no fundo do poço: "Estou tão cansada de estar aqui sozinha!". O importante é que ela conseguiu sair de lá, abrindo a porta. A porta do poço! Só as criaturas humanas (nem mesmo os grandes macacos e os cães amestrados) conseguem abrir uma porta fechada, e vice-versa, isto é, fechar uma porta bem aberta.

        Somos todos tão bobos, Maria. Praticamos uma ação trivial, e temos a presunção petulante de esperar dela grandes consequências. Quando Alice comeu o bolo, e não cresceu de tamanho, ficou no maior dos espantos. Apesar de ser isso o que acontece, geralmente, às pessoas que comem bolo.

        Maria, há uma sabedoria social ou de bolso; nem toda sabedoria tem de ser grave.

        A gente vive errando em relação ao próximo e o jeito é pedir desculpas sete vezes por dia: "Oh, I beg your pardon!". Pois viver é falar de corda em casa de enforcado. Por isso te digo, para a tua sabedoria de bolso: se gostas de gato, experimenta o ponto de vista do rato. Foi o que o rato perguntou a Alice: "Gostaria de gatos se fosses eu?".

        Os homens vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios, na política, nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na literatura, até amigos, até irmãos, até marido e mulher, até namoradas, todos vivem apostando corrida. São competições tão confusas, tão cheias de truques, tão desnecessárias, tão fingindo que não é, tão ridículas muitas vezes, por caminhos tão escondidos, que quando os atletas chegam exaustos a um ponto, costumam perguntar: "A corrida terminou! Mas quem ganhou?". É bobice, Maria da Graça, disputar uma corrida se a gente não irá saber quem venceu. Se tiveres de ir a algum lugar, não te preocupes a vaidade fatigante de ser a primeira a chegar. Se chegares sempre aonde quiseres, ganhaste.

        Disse o ratinho: "Minha história é longa e triste!". Ouvirás isso milhares de vezes. Como ouvirás a terrível variante: "Minha vida daria um romance". Ora, como todas as vidas vividas até o fim são longas e tristes, e como todas as vidas dariam romances, pois o romance é só o jeito de contar uma vida, foge, polida mas energicamente, dos homens e das mulheres que suspiram e dizem "Minha vida daria um romance!" Sobretudo dos homens. Uns chatos irremediáveis, Maria.

        Os milagres sempre acontecem na vida de cada um e na vida de todos. Mas, ao contrário do que se pensa, os melhores e mais fundos milagres não acontecem de repente, mas devagar, muito devagar. Quero dizer o seguinte: a palavra depressão cairá de moda mais cedo ou mais tarde. Como talvez seja mais tarde, prepara-te para a visita do monstro, e não te desesperes ao triste pensamento de Alice: "Devo estar diminuindo de novo". Em algum lugar há cogumelos que nos fazem crescer novamente.

        E escuta esta parábola perfeita: Alice tinha diminuído tanto de tamanho que tomou um camundongo por um hipopótamo. Isso acontece muito, Mariazinha. Mas não sejamos ingênuos, pois o contrário também acontece. E é um outro escritor inglês que nos fala mais ou menos assim: o camundongo que expulsamos ontem passou a ser hoje um terrível rinoceronte. É isso mesmo. A alma da gente é uma máquina complicada que produz durante a vida uma quantidade imensa de camundongos que parecem hipopótamos e de rinocerontes que parecem camundongos.

        O jeito é rir no caso da primeira confusão e ficar bem disposto para enfrentar o rinoceronte que entrou em nossos domínios disfarçado de camundongo. E como tomar o pequeno por grande e o grande por pequeno é sempre meio cômico, nunca devemos perder o bom humor.

        Toda pessoa deve ter três caixas para guardar humor: uma caixa grande para humor mais ou menos barato que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para humor que a gente precisa ter quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma; por fim, uma caixinha preciosa, muito escondida, para as grandes ocasiões. Chamo de grandes ocasiões os momentos perigosos em que estamos cheios de dor ou de vaidade, em que sofremos a tentação de achar que fracassamos ou triunfamos, em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas. Cuidado, Maria, com as grandes ocasiões.

        Por fim, mais uma palavra de bolso: às vezes uma pessoa se abandona de tal forma ao sofrimento, com uma tal complacência, que tem medo de não poder sair de lá. A dor também tem seu feitiço, e este se vira contra o enfeitiçado. Por isso Alice, depois de ter chorado um lago, pensava: "Agora serei castigada, afogando-me em minhas próprias lágrimas".

        Conclusão: a própria dor deve ter a sua medida. É feio, é imodesto, é vão, é perigoso ultrapassar a fronteira de nossa dor, Maria da Graça.

Extraído de: Para gostar de ler (volume 4 – crônicas) Rubem Braga, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, São Paulo, Ática/Edição Didática.

Fonte: Programa de Formação de Professores Alfabetizadores. Coletânea de textos – Módulo 1. p. 288-289.

Entendendo a crônica:

01 – Qual é o presente que o narrador oferece a Maria da Graça, e o que ele simboliza?

      O narrador presenteia Maria da Graça com o livro "Alice no País das Maravilhas". Este livro não é apenas uma história, mas um símbolo e um guia para que Maria da Graça aprenda a "ler este livro como um simples manual do sentido evidente de todas as coisas, inclusive as loucas". Ele representa uma chave para compreender a realidade complexa, por vezes absurda, e para encontrar significado naquilo que parece sem sentido.

02 – Segundo o narrador, qual é a principal lição que Maria da Graça deve aprender sobre a "loucura" da realidade?

      A principal lição que Maria da Graça deve aprender é que "a realidade, Maria, é louca" e que é essencial descobrir um sentido nessa loucura para não acabar louca. O narrador enfatiza que, ao invés de se espantar com o mundo irreconhecível, ela deve aprender a decifrar a "charada" da existência e a inventar suas próprias respostas, mesmo que "seja mentira", para se fortalecer.

03 – Como a crônica aborda a questão da identidade e do autoconhecimento?

      A crônica aborda a questão da identidade através da indagação "Quem sou eu no mundo?", que o narrador descreve como o "lugar-comum de cada história de gente". Ele sugere que, quanto mais vezes Maria da Graça decifrar essa charada, mais forte ela se tornará. A crônica enfatiza que a resposta não é tão importante quanto o ato de dar ou inventar uma resposta, indicando que o autoconhecimento é um processo contínuo de construção pessoal.

04 – O que o narrador sugere sobre a "sabedoria de bolso" e como ela se relaciona com as interações sociais?

        A "sabedoria de bolso" é descrita como uma sabedoria prática e menos "grave", focada na convivência social. O narrador sugere a importância de pedir desculpas frequentemente ("Oh, I beg your pardon!") e de exercitar a empatia, tentando ver o mundo do ponto de vista do outro, como exemplificado pela pergunta do rato a Alice: "Gostaria de gatos se fosses eu?". Essa sabedoria visa à leveza e à compreensão nas relações humanas.

05 – Qual é a crítica do narrador em relação às "corridas" e competições na vida adulta?

      O narrador critica as competições incessantes e muitas vezes fúteis da vida adulta, sejam elas no trabalho, na política, nas artes ou mesmo nas relações pessoais. Ele as descreve como "confusas, cheias de truques, desnecessárias, fingindo que não é, ridículas". A crítica central é que muitas vezes as pessoas competem sem um propósito claro, e o mais importante não é ser o primeiro a chegar, mas sim chegar "aonde quiseres", independentemente da posição em relação aos outros.

06 – Como o conceito de "milagres" é redefinido pelo narrador na crônica?

      O narrador redefine o conceito de "milagres", afirmando que eles sempre acontecem na vida, mas "não acontecem de repente, mas devagar, muito devagar". Ele sugere que os verdadeiros e mais profundos milagres são processos lentos e graduais. Essa visão contrasta com a expectativa comum de eventos súbitos e espetaculares, incentivando Maria da Graça a reconhecer as transformações lentas e importantes em sua vida.

07 – O que significa a metáfora das "três caixas para guardar humor" e qual a importância da "caixinha preciosa"?

      A metáfora das "três caixas para guardar humor" representa a necessidade de gerenciar o humor em diferentes situações da vida. A caixa grande é para o humor cotidiano; a média, para o humor pessoal, que permite rir de si mesma e perdoar-se. A "caixinha preciosa" é a mais importante e escondida, reservada para as "grandes ocasiões", ou seja, os momentos de dor ou vaidade extrema, em que se sente o fracasso ou o triunfo. Ela é crucial para manter o equilíbrio e o bom humor nessas situações de vulnerabilidade, evitando a autodestruição ou o excesso de presunção.

 

CRÔNICA: O RÁDIO APAIXONADO - MOACYR SCLIAR - COM GABARITO

 Crônica: O rádio apaixonado

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj2cbEg5fuEWJ4Jd9C4TzTnjg_lgh7RuRz8jPW5jCXkd8yNPl_HO3ILChiRUM-lW3w-_IJeA-Id9ae1lary1M-fl1mtbuyiAnUTya_QZ22xJ6SHFeJPkiSlBS9l7_hBUODamE8Pr5jshG5wlmSTlWe67eQ_kpmg1fD6438Vg68xU9Vy0bljnpcdVS9Bmkk/s320/Pinterest(1).png

               Moacyr Scliar

        MINHA QUERIDA DONA, sei que você anda se queixando de mim, publicamente, até. Você não pode imaginar o sofrimento que isto me causa, mesmo porque você provavelmente acha que rádios são objetos inanimados, sem vida própria.

        Você está enganada. Ao menos no meu caso, você está enganada. Ao contrário do que você pensa, tenho sentimentos, tenho emoções. É em nome desses sentimentos e dessas emoções que lhe falo agora, tanto em AM como em FM. Na verdade, eu nem tinha tomado conhecimento de minha própria existência, até que fui instalado em seu carro.

        Você estava muito feliz; tinham lhe dito que minha marca é ótima, e que você contaria com um som maravilhoso para lhe ajudar no estresse que é esse trânsito. E, eu colocado no meu lugar, você me acariciou, você tocou os meus botões. Senti um verdadeiro choque, eu que já deveria estar acostumado com eletricidade. Você fez de mim um ser vivo.

        Vivo e apaixonado. Daquele momento em diante, passei a ansiar por sua presença. Era para você que eu queria transmitir as melodias que recebia por meio de tantas canções. Você ao volante, minha felicidade era completa. Acontece que você não se deu conta disso, ou fingiu que não se dava conta disso. Você me ligava, você sintonizava uma emissora qualquer e pronto, voltava à sua vidinha. Pior: tratava-se de uma vidinha partilhada. Amigas embarcavam em seu carro. Amigos também. Você conversando com um homem, aquilo me dava ciúmes, ciúmes terríveis.

        O Bentinho, do Machado de Assis, aquele que desconfiava da Capitu, não sofreu tanto.

        Lá pelas tantas eu tinha ciúmes até do seu MP4.

        Agora: o que poderia eu fazer? Humanos têm como demonstrar seus ciúmes, têm como descarregar a frustração. Mas eu sou um rádio, um bom rádio, mas rádio, de qualquer maneira. A mim não estava facultado fazer cenas. Recorri, então, àquilo que estava a meu alcance: o som.

        Quando você estava com alguém de quem eu não gostava, eu aumentava meu volume – e volume, você sabe, é coisa que não me falta – até chegar a níveis insuportáveis, uma avalanche de decibéis. E aí, subitamente me calava. Para lembrar a você que o silêncio também fala, especialmente o silêncio dos traídos. Ah, sim, e queimei o seu MP4. Tinha de queimar: era ele ou eu.

        Você foi se queixar com um técnico, achando que eu estava desconfigurado. Num certo sentido você está certa: estou desconfigurado, estou desfigurado, estou perturbado – mas tudo isso por causa do sofrimento que você me causou.

        Querida dona, estas são minhas derradeiras palavras, antes de sair definitivamente do ar, antes do silêncio final. Minha última mensagem é esta: nunca brinque com os sentimentos de um rádio apaixonado. Você vai ter, no mínimo, surpresas desagradáveis.

SCLIAR, Moacyr. O rádio apaixonado. In: SCLIAR, Moacyr. Histórias que os jornais não contam. 3. ed. Porto Alegre: L&M Editores, 2018.p.14-16. (Adaptado).

Entendendo a crônica:

01 – Qual é a premissa inusitada que o narrador da crônica apresenta?

      A premissa inusitada é que o narrador é um rádio de carro que possui sentimentos e emoções, contrariando a percepção de sua dona de que ele é apenas um objeto inanimado.

02 – Como o rádio descreve o momento em que se tornou "vivo e apaixonado" por sua dona?

      O rádio descreve o momento como um "choque" elétrico, ocorrido quando a dona o instalou no carro e o acariciou e tocou seus botões, fazendo-o sentir-se vivo e despertar sua paixão.

03 – Quais são os principais motivos de ciúme do rádio em relação à sua dona?

      Os principais motivos de ciúme do rádio são a presença de amigas e, principalmente, de outros homens no carro da dona, além de ter ciúme até do MP4 dela.

04 – De que forma o rádio expressa sua frustração e ciúmes, já que não pode fazer cenas como os humanos?

      O rádio recorre ao som para expressar sua frustração e ciúmes. Ele aumentava o volume a níveis insuportáveis quando a dona estava com alguém de quem não gostava e, em seguida, calava-se subitamente para lembrá-la que "o silêncio também fala". Ele também queimou o MP4.

05 – Qual é a analogia que o rádio faz com um personagem da literatura brasileira?

      O rádio se compara a Bentinho, de Machado de Assis, aquele que desconfiava de Capitu, para ilustrar a intensidade de seu sofrimento com o ciúme.

06 – Qual a condição atual do rádio e qual sua última mensagem para a dona?

      O rádio está "desconfigurado, desfigurado, perturbado" pelo sofrimento e está prestes a "sair definitivamente do ar". Sua última mensagem é um alerta: "nunca brinque com os sentimentos de um rádio apaixonado. Você vai ter, no mínimo, surpresas desagradáveis."

07 – Qual o tom geral da crônica, considerando a personificação do rádio e suas "queixas" para a dona?

      O tom geral da crônica é bem-humorado e irônico, apesar de o rádio expressar sentimentos de sofrimento e ciúme. A personificação de um objeto inanimado com emoções humanas cria uma situação cômica e reflexiva sobre as relações e a negligência afetiva.

 

CRÔNICA: O BOM E O MAU - CARLOS HEITOR CONY - COM GABARITO

 Crônica: O bom e o mau

              Carlos Heitor Cony

        Se me perguntarem (ninguém me pergunta nada há muito tempo) o que mais me irrita atualmente e o que mais me gratifica, eu responderei que é o computador. Na verdade, fica difícil imaginar a vida profissional sem ele, seus recursos de memória e arquivo, a capacidade de fazer correções, eliminar ou acrescentar palavras e parágrafos.

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiJUzbNTraRpfZmnP2jmMHjPzhQFfCBliXl2rOEjNiM6SMIrCtzIBqpLXpYLroDBN5ZwaLLbkq5MDMzBIR9QnJtgvBqrbh1Bg4M0bQuqgbCG1gesxMXUjMyLALIPrVoMDi24L_M7g1jyE4bIm9BrKQlHzed9wumntiUxBORycO6yq9S8mM_580x3uFC78M/s1600/lossy-page1-250px-Carlos_Heitor_Cony_autografa_seu_livro_%E2%80%9CO_ato_e_o_fato%E2%80%9D,_1964.tif.jpg


        É também irritante, sobretudo com os programas cada vez mais avançados que bolam para os usuários. Não sei qual foi o gênio que programou os dias da semana (segunda, terça, quarta etc.) com maiúsculas. Não os uso assim, e toda vez que começo a escrever "na segunda fila" ou "ter ou não ter, eis a questão" sou obrigado a eliminar a maiúscula, pois o computador, para melhor e mais rapidamente me servir, acha que eu vou escrever o que não quero nem preciso escrever.

        Acho que já contei esta história. Se contei, conto-a outra vez, pois ela expressa exatamente o que o computador pode nos dar de bom e ruim. Um escritor norte-americano escreveu um romance em que o personagem principal teria o nome de Julieta. Um amigo, que leu os originais, achou que o nome italianado não combinava com a mocinha do oeste dos Estados Unidos, que devia se chamar Bárbara, Carol ou Kate.

        O autor concordou e usando o recurso do "replace", ordenou que toda a vez que aparecesse a palavra "Julieta", fosse ela substituída pela palavra "Bárbara". Mandou o original assim emendado para a editora e quando recebeu o primeiro exemplar de sua obra, verificou que os seus personagens haviam ido ao teatro assistir a uma peça de Shakespeare intitulada "Romeu e Bárbara".

        Ao computador pode-se aplicar aquele pensamento do cão de Quincas Borba, que para facilitar as coisas, tinha o mesmo nome do dono: "Nada é completamente bom, nada é completamente mau".

CONY, Carlos Heitor. In: Manuel da Costa Pinto (Org.). Crônica brasileira contemporânea: antologia de crônicas. São Paulo: Salamandra, 2005. p. 30-31.

Fonte: Língua Portuguesa: Singular & Plural. Laura de Figueiredo; Marisa Balthasar e Shirley Goulart – 6º ano – Moderna. 2ª edição, São Paulo, 2015. p. 266.

Entendendo a crônica:

01 – O que o autor Carlos Heitor Cony aponta como a coisa que mais o irrita e mais o gratifica atualmente?

      O autor aponta o computador como a coisa que mais o irrita e, ao mesmo tempo, mas o gratifica.

02 – Quais são os principais benefícios do computador, de acordo com o cronista?

      Os principais benefícios do computador, segundo Cony, são seus recursos de memória e arquivo, e a capacidade de fazer correções, eliminar ou acrescentar palavras e parágrafos, tornando a vida profissional muito mais fácil.

03 – Qual é um dos aspectos "irritantes" do computador mencionados pelo autor, relacionado aos programas?

      Um dos aspectos irritantes é a autocorreção e sugestão de escrita dos programas. Cony se irrita com o fato de o computador, por exemplo, escrever os dias da semana com maiúsculas, forçando-o a fazer correções constantes para o que ele realmente quer escrever.

04 – Qual a história que Carlos Heitor Cony utiliza para ilustrar os lados bom e ruim do computador?

      Cony conta a história de um escritor norte-americano que, ao decidir mudar o nome de sua personagem principal de "Julieta" para "Bárbara", usou o recurso "replace" no computador. O problema é que o programa substituiu todas as ocorrências da palavra "Julieta", resultando na infame peça "Romeu e Bárbara", demonstrando uma falha cômica do uso indiscriminado da ferramenta.

05 – Que citação de Quincas Borba o autor usa para resumir sua visão sobre o computador?

      Para resumir sua visão sobre o computador, o autor aplica o pensamento do cão de Quincas Borba: "Nada é completamente bom, nada é completamente mau".

 

CRÔNICA: NA CONTRAMÃO DA HISTÓRIA - MOACYR SCLIAR - COM GABARITO

 Crônica: Na Contramão da História

              Moacyr Scliar

        Ao entrar na rodovia ficou surpreso em ver um carro vindo em sua direção – e aquela era uma pista de mão única. Acenou nervosamente para o motorista para que desviasse, e aí nova surpresa: o homem também lhe acenava, com o mesmo propósito. Passaram um ao lado do outro, de raspão. “Contramão!”, ele gritou indignado. O motorista do outro carro também gritou: “Contramão!”.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiRcmU1jK0Rml9QbGqRmK6xpuamXW4k3TjCe0nYc5q4UQLrf5kjNrAVqFzTizpS0JsMomIeZtMSGEEEiRiNEzcQtWhHOKIcc1D7b1_pDsQ_3o7ORpdR8whqn2frNHu40MtUsE3LMtU1cSpR24K4vRxHqnl3vCN2axCx9AxsLg6-0nqsiZjurhQCLjDgn74/s320/ilus_contra_m-396780.jpg


        Ele mal se refizera do susto quando, de novo, avistou um veículo – um caminhão – igualmente em sentido contrário ao seu. E logo uma moto, uma van, e carros de passeio, e um ônibus – todos na contramão. Meu Deus, ele se perguntava, o que está acontecendo? Será que todo mundo enlouqueceu nesta rodovia, neste estado, neste país?

        A dúvida então lhe ocorreu: não seria ele o errado? Não estaria ele na contramão?

        Não. Ele não estava na contramão, disso tinha absoluta certeza. Conhecia bem aquela rodovia, era um caminho habitual para ele. Teria havido, sem que ele soubesse, uma inversão de pistas? Talvez, mas isso não lhe tirava a razão. Uma alteração tão significativa deveria ter sido previamente divulgada; e teria sido necessário colocar avisos na rodovia.

        Não. Ele estava certo, e continuaria em seu rumo, mesmo que todos os outros fizessem o contrário. Não seria a primeira vez na História que tal aconteceria. Afinal, Galileu Galilei tinha sido condenado pela Inquisição por dizer que a Terra girava em torno do Sol, quando todos afirmavam o contrário. Enfrentara corajosamente o julgamento, sem mudar de opinião. E ele não mudaria de pista. Continuaria dirigindo e fazendo sinais para os imprudentes até que todos se dessem conta da verdade.

        Não demorou muito e foi detido pela polícia. O que ele aceitou com resignação. A conspiração não era só dos motoristas, era das autoridades, dos seres humanos em geral. Um dia, porém, a Verdade apareceria naquela estrada. Avançando celeramente, e na mesma mão em que ele estava.

Moacyr Scliar. Folha de São Paulo.

Entendendo a crônica:

01 – Qual a situação inicial que causa surpresa e indignação ao protagonista da crônica?

      O protagonista fica surpreso e indignado ao ver um carro vindo em sua direção em uma rodovia de mão única, e mais ainda quando outros veículos, como caminhão, moto, van e ônibus, também aparecem no sentido contrário.

02 – Que dúvida surge na mente do protagonista diante do grande número de veículos na contramão?

      A dúvida que lhe ocorre é se não seria ele o errado, se não estaria ele mesmo na contramão, em vez de todos os outros motoristas.

03 – Com que figura histórica o protagonista se compara para justificar sua convicção de estar certo?

      Ele se compara a Galileu Galilei, que foi condenado pela Inquisição por defender que a Terra girava em torno do Sol, mesmo quando todos afirmavam o contrário. Ele usa essa comparação para reforçar sua decisão de não mudar de rumo.

04 – Como o protagonista interpreta sua detenção pela polícia no final da crônica?

      Ele aceita a detenção com resignação, interpretando-a como parte de uma conspiração não apenas dos motoristas, mas também das autoridades e dos seres humanos em geral.

05 – Qual é a principal mensagem ou reflexão que a crônica "Na Contramão da História" pretende transmitir?

      A crônica é uma alegoria sobre a teimosia, a convicção individual e a resistência contra a maioria, mesmo quando essa maioria parece estar equivocada. Ela explora a ideia de que, por vezes, a verdade pode parecer estar na "contramão" do que a maioria acredita ou pratica.

 

CRÔNICA: MINHA MÃE - NIKI DE SAINT PHALLE - COM GABARITO

 Crônica: Minha Mãe

               Niki de Saint Phalle

        Quando nasci, a 29 de outubro de 1930, em Paris, o cordão umbilical estava enrolado duas vezes em meu pescoço. Você me contou que o doutor me salvou deslizando a mão entre o cordão umbilical e meu pescoço. Senão eu teria nascido estrangulada.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgHlisfOipJDqD8fEJ8QtcymdRlvho6D4tnQNPE_AoKKU-3jsxtrobUQa2I1o6X47VreCIrNJQq_PJCsDvNMzKBg7bkWCw22wyNcHv9ye1iMbb1li9PaStW6vHX0_bhYqcb5Cx6JuVKuZWwRXRxtqjuK4FZ9Kl0C0J_HdLAXtvHlTqGVRReBxUqlmjntYE/s320/capa-materia-signo-escorpiao.jpg


        Desde o princípio, o perigo esteve presente. Eu aprenderia a amar o perigo, o risco, a ação. Toda a vida eu seria torturada pela asma e por problemas respiratórios.

        Meu signo é Escorpião, com ascendente em Escorpião. Todo um programa para vencer obstáculos, para amar os obstáculos.

        Você me disse ainda que, em meu nascimento, você perdeu todo o dinheiro no craque da Bolsa de Nova Iorque. E, enquanto me esperava, descobriu a primeira infidelidade de meu pai. Eu trazia aborrecimentos.

        Eu tinha três meses quando fomos separadas. Você foi para Nova Iorque e me mandou para a casa de meus avós, em Nièvre. Lá passei meus primeiros três anos. Minha mãe, minha mãe, onde está você? Por que me deixou? Você nunca vai voltar? Tudo é minha culpa. Cada mulher se transforma em Você, Mamãe, Mamãe. Eu não preciso de você. Saberei viver sem você.

        Sua péssima opinião sobre mim, minha mãe, foi extremamente dolorosa e útil. Aprendi a só contar comigo. A opinião dos outros não me importava. Isso me deu imensa liberdade. A liberdade de ser eu mesma. Eu rejeitaria seu sistema de valores e inventaria o meu. Muito cedo, decidi tornar-me uma heroína. Quem eu seria? George Sand, Joana D'Arc? Napoleão de saias? Com quinze anos, ganhei o prêmio de poesias. Quem sabe eu escreveria?

        O que quer que eu fizesse no futuro, queria que fosse difícil, excitante, grandioso.

        Eu não me pareceria com você, minha mãe. Você aceitou o que lhe tinha sido transmitido por seus pais: a religião, os papéis masculino e feminino, as ideias sobre a sociedade e a segurança.

        Eu passaria minha vida questionando. Ficaria apaixonada pelo ponto de interrogação. Por você conquistei o mundo. Você era quem me faltava. Sou uma lutadora. O que teria feito de uma mãe me afogando de amor? Quando eu tinha vinte e cinco anos e vivia com Harry Mathews, algumas vezes você me visitava em meu atelier. Você escondia os olhos com as mãos, sobretudo para não ver minhas horríveis pinturas... Deus, como era estimulante!

        Você detestava o Harry. Um dia, viu-o passar o aspirador no apartamento e pensou que ele me roubava o papel de mulher. Você não podia compreender.

        Você era muito linda, minha mãe. Sua beleza e seu charme (quando queria usá-los) eram mágicos.

        Você poderia ter sido uma grande atriz, minha mãe. Como era teatral!

        Lembre-se da primeira vez que lhe apresentei Jean Tinguely. Nós nos encontramos no Coupole para almoçar. Você fechou seus olhos magníficos e disse tragicamente: "Não posso comer com o amante de minha filha... Por que você não pode ficar com o seu marido e ter um amante em segredo como todo mundo?".

        Isso divertiu muitíssimo Jean, mas eu deixei a mesa, furiosa. A partir desse momento, a cada vez que via Jean, ele flertava com você e você adorava isso. Você nunca foi a grande santa que pretendia ser. Lembro-me muito bem de seus amantes, quando eu era adolescente. Havia um ruivo, jornalista, sedutor, que eu odiava com todas as minhas forças.

        Para você, tudo deveria ficar escondido.

        Quanto a mim, eu me mostraria. Mostraria tudo. Meu coração, minhas emoções. Verde-vermelho-amarelo-azul-violeta. Ódio, amor, riso, medo, ternura.

        Gostaria que você ainda estivesse aqui, minha mãe. Gostaria de tomá-la pelas mãos e lhe mostrar o Jardim do Tarô. Bem que você poderia não ter mais uma opinião tão negativa sobre mim. Quem sabe?

        Minha mãe, obrigada. Que vida tediosa eu teria tido sem você. Sinto saudades.

Niki de Saint Phalle. Catálogo da Exposição de Niki de Saint Phalle, São Paulo, Pinacoteca, 1997.

Fonte: Letra e Vida. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos – Módulo 3 – CENP – São Paulo – 2005. p. 228-229.

Entendendo a crônica:

01 – Qual evento no nascimento da autora prefigura sua personalidade e os desafios que enfrentaria?

      O cordão umbilical enrolado duas vezes em seu pescoço ao nascer, quase a estrangulando, prefigura que o perigo esteve presente desde o início, e que ela aprenderia a "amar o perigo, o risco, a ação", além de ser torturada por problemas respiratórios.

02 – Como a separação precoce da mãe e a "péssima opinião" dela sobre a autora impactaram seu desenvolvimento?

      A separação e a opinião negativa da mãe foram, ironicamente, "extremamente dolorosas e úteis". Elas a fizeram aprender a contar apenas consigo mesma, a não se importar com a opinião alheia, o que lhe deu "imensa liberdade" para ser quem era e inventar seu próprio sistema de valores, decidindo muito cedo tornar-se uma "heroína".

03 – Quais são as principais diferenças que a autora destaca entre sua personalidade e a de sua mãe?

      A autora se descreve como alguém que questionaria tudo, apaixonada pelo "ponto de interrogação", uma "lutadora" que "mostraria tudo" (emoções, cores). Sua mãe, por outro lado, é descrita como alguém que aceitou os valores tradicionais (religião, papéis de gênero, ideias sobre sociedade e segurança) e preferia manter as coisas "escondidas".

04 – Como a mãe de Niki de Saint Phalle reagiu às pinturas da filha e ao relacionamento dela com Harry Mathews?

      A mãe detestava as pinturas da filha, chegando a esconder os olhos para não vê-las, o que a autora achava "estimulante". Em relação a Harry Mathews, a mãe o detestava por vê-lo passar o aspirador, interpretando que ele "roubava o papel de mulher" da filha, sem conseguir compreender a dinâmica do casal.

05 – Apesar das tensões e das diferenças, qual é a atitude final de Niki de Saint Phalle em relação à sua mãe, expressa no último parágrafo?

      Apesar de todas as dificuldades e desaprovações, a atitude final de Niki de Saint Phalle é de gratidão e saudade. Ela reconhece a influência da mãe em sua vida, afirmando que teria tido uma "vida tediosa" sem ela, e expressa o desejo de que a mãe ainda estivesse presente para ver seu trabalho e talvez mudar sua opinião negativa.