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sexta-feira, 28 de março de 2025

CONTO: CAVALOS SELVAGENS - LYGIA FAGUNDES TELLES - COM GABARITO

 Conto: Cavalos selvagens

           Lygia Fagundes Telles

        O homem de grandes negócios fecha a pasta de zíper e tom o avião da tarde. O homem de negócios miúdos enche o bolso de miudezas e toma o ônibus da madrugada. A mulher elegante faz Cooper e sauna na quinta-feira. A mulher não elegante faz feira no sábado. A freira faz orações diariamente em horas certas. A prostituta faz o trottoir todos os dias em certas horas. O patriarca joga bridge e faz amor segundo o calendário. O operário joga bilhar e faz amor nos feriados. Homens, mulheres e crianças – todos com seus dias previstos e organizados: amanhã tem missa de sétimo dia, depois de amanhã tem casamento. Batizado na terça e, na quarta, macarronada, que a feijoada fica para sábado, comemoração prévia do futebol de domingo, vitória certa, ora sei!... As obedientes engrenagens da máquina funcionando com suas rodinhas ensinadas, umas de ouro, outras de aço, estas mais simples, mais complexas aquelas lá adiante, azeitadas para o movimento que é uma fatalidade, taque-taque taque-taque… Apáticos e não apáticos, convulsos e apaziguados, atentos e delirantes em pleno funcionamento num ritmo implacável.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiqW4pMBKTX_shbx8e65ecrB8dwWW8SDAD12NmiAdnOFjEUo0DQ38V_QAMsHVYGuE439d1PP6Y62weCNqyxDDrkFx7xzqk4xdB4Kcsq2uj_e6dCcY6A4e6Vqg6kSEGKGEqQexKGphdOO8Lg5W0KGdzYKdXT0J8faXBPiqvYR8P7RoKOtXGC5PYS7TWWwgE/s320/cavalosselvagens-240411195611-d94f9e7e-thumbnail.jpg


        Às vezes, por motivos obscuros ou claros, uma rodinha da engrenagem salta fora e fica desvairada além do tempo, do espaço – onde? A máquina prossegue no seu funcionamento que é uma condenação, apenas aquela rodinha já não faz parte dessa ordem. “É um desajustado” – diz o médico, o amigo íntimo, o primo, a mulher, a amante, o chefe. Há que readaptá-lo depressa à engrenagem familiar e social, apertar esses parafusos docemente frouxos. Se o desajustado é um adolescente, mais fácil reconduzi-lo com a ajuda psicólogos, analistas, padres, orientadores, educadores – mas por que ele ainda não está nos eixos? Por que tem que haver certas peças resistindo assim inconformadas? Não interessa curá-lo, mas neutralizá-lo, taque-taque taque-taque.

        Pronto, passou a crise? Todos concordam, ele está ótimo ou quase. Mas às vezes o olhar tem aquela expressão que ninguém alcança e volta o fervor antigo, cólera e gozo nos descompromissamentos e rupturas – aguda a lembrança violenta do cheiro de mato que recusa o asfalto, o elevador, a disciplina, ah! vontade de fugir sem olhar para trás, desatino e alegria de um cavalo selvagem, os fogosos cavalos de crina e narinas frementes, escapando do laço do caçador. Na história de Arthur Miller, eram os pobres cavalos selvagens destinados a uma fábrica que os transformaria num precioso produto enlatado. O instinto, só o instinto os advertia das armadilhas nas madrugadas. E fugiam galopando por montes, rios, vales – até quando?

        Inexperiência ou cansaço? Cavalos e homens acabam por voltar à engrenagem. Muitos esquecem mas alguns ainda se lembram e o olhar toma aquela expressão que ninguém entende, ânsia de liberdade. De paixão. Em fragmentos de tempo voltam a ser inabordáveis mas a máquina vigilante descobre os rebeldes e aciona o alarme, mais poderoso o apelo, taque-taque TAQUE-TAQUE! Inútil. Ei-los de novo desembestados: “Laçá-los é o mesmo que laçar um sonho”.

Lygia Fagundes Telles, A disciplina do amor. 2 ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980. p. 131-2.

Fonte: Português. Série novo ensino médio. Volume único. Faraco & Moura – 1ª edição – 4ª impressão. Editora Ática – 2000. São Paulo. p. 13-14.

Entendendo o conto:

01 – Qual é a metáfora central utilizada no conto "Cavalos Selvagens" para descrever a sociedade?

      A sociedade é comparada a uma máquina com engrenagens, representando a rotina e a padronização da vida cotidiana.

02 – O que representam os "cavalos selvagens" no contexto do conto?

      Os cavalos selvagens simbolizam a liberdade, o desejo de romper com a rotina e a resistência à conformidade social.

03 – Qual é a atitude da sociedade em relação àqueles que se desviam da norma?

      A sociedade busca "readaptar" os "desajustados", neutralizando sua individualidade e reconduzindo-os à engrenagem social.

04 – Como o conto aborda a questão da liberdade individual versus a conformidade social?

      O conto explora a tensão entre o desejo de liberdade e a pressão para se conformar às normas sociais, mostrando a luta entre a individualidade e a padronização.

05 – Qual é o significado da frase "Laçá-los é o mesmo que laçar um sonho"?

      Essa frase destaca a dificuldade de aprisionar o desejo de liberdade e a natureza intangível dos sonhos e aspirações individuais.

06 – De que forma Lygia Fagundes Telles usa a linguagem para transmitir a sensação de opressão e desejo de liberdade?

      A autora utiliza uma linguagem concisa e direta para descrever a rotina opressiva, intercalando com passagens poéticas que evocam a beleza e a intensidade da liberdade.

07 – Qual é a mensagem principal que Lygia Fagundes Telles busca transmitir com o conto "Cavalos Selvagens"?

      A mensagem principal é uma reflexão sobre a natureza da liberdade individual e a luta contra as forças da conformidade social, além de instigar o leitor a questionar a própria relação com a rotina e os desejos de liberdade.

 

 

domingo, 5 de janeiro de 2025

CONTO: AS CEREJAS - LYGIA FAGUNDES TELLES - COM GABARITO

 Conto: As cerejas

            Lygia Fagundes Telles

        Aquela gente teria mesmo existido? Madrinha tecendo a cortina de crochê com um anjinho a esvoaçar por entre rosas, a pobre Madrinha sempre afobada, piscando os olhinhos estrábicos, “vocês não viram onde deixei meus óculos?” A preta Dionísia a bater as claras de ovos em ponto de neve, a voz ácida contrastando com a doçura dos cremes, “esta receita é nova...” Tia Olívia enfastiada e lânguida, abanando-se com uma ventarola chinesa, a voz pesada indo e vindo ao embalo da rede, “fico exausta no calor...” Marcelo muito louro – porque não me lembro da voz dele? – agarrado à crina do cavalo, agarrado à cabeleira de tia Olívia, os dois tombando lividamente azuis sobre o divã. “Você levou as velas à tia Olívia?”, perguntou Madrinha lá embaixo. O relâmpago apagou-se. E no escuro que se fez, veio como resposta o ruído das cerejas se despencando no chão.

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjgxvdYnmwNHpLRbLf6M2LMVPyTp5ZKFIcbzutFclcpkw4Jjten1Oss3qaBiq1L_9QTiyRZOTSnnDwgl20qlOc3HqVcs20GIfuvXgDts8Gt82TPAdPNmccuWqkh2FCfXKN1v7pvBbmTU1c5y2S_BEX7v0wc_9yNuPHyjtZhhZAELVDy14InauUGEkYQL0A/s320/CEREJAS.jpg

        A casa em meio do arvoredo, o rio, as tardes como que suspensas na poeira do ar – desapareceu tudo sem deixar vestígios. Ficaram as cerejas, só elas resistiram com sua vermelhidão de loucura. Basta abrir a gaveta: algumas foram roídas por alguma barata e nessas o algodão estoura, empelotado, não, tia Olívia, não eram de cera, eram de algodão suas cerejas vermelhas.

        Ela chegou inesperadamente. Um cavaleiro trouxe o recado do chefe da estação pedindo a charrete para a visita que acabara de desembarcar.

        -- É Olívia! – exclamou Madrinha. – É a prima! Alberto escreveu dizendo que ela viria, mas não disse quando, ficou de avisar. Eu ia mudar as cortinas, bordar umas fronhas e agora!...Justo Olívia. Vocês não podem fazer ideia, ela é de tanto luxo e a casa aqui é tão simples, não estou preparada, meus céus! O que é que eu faço, Dionísia, me diga agora o que é que eu faço!

        Dionísia folheava tranquilamente um livro de receitas. Tirou um lápis da carapinha tosada e marcou a página com uma cruz.

        -- Como se já não bastasse esse menino que também chegou sem aviso...

        O menino era Marcelo. Tinha apenas dois anos mais do que eu, mas era tão alto e parecia tão adulto com suas belas roupas de montaria, que tive vontade de entrar debaixo do armário quando o vi pela primeira vez.

        -- Um calor na viagem! – gemeu tia Olívia em meio de uma onda de perfumes e malas. – E quem é este rapazinho?

        -- Pois este é o Marcelo, filho do Romeu – disse Madrinha. – Você não se lembra do Romeu? Primo-irmão do Alberto...

        Tia Olívia desprendeu do chapeuzinho preto dois grandes alfinetes de pérola em formado de pera. O galho de cerejas estremeceu no vértice do decote da blusa transparente. Desabotoou o casaco.

        -- Ah, minha querida, Alberto tem tantos parentes, uma família enorme! Imagine se vou me lembrar de todos com esta minha memória. Ele veio passar as férias aqui?

        Por um breve instante Marcelo deteve em tia Olívia o olhar frio. Chegou a esboçar um sorriso, aquele mesmo sorriso que tivera quando Madrinha, na sua ingênua excitação, nos apresentou a ambos, “pronto, Marcelo, aí está sua priminha, agora vocês poderão brincar juntos”. Ele então apertou um pouco os olhos. E sorriu.

        -- Não estranhe, Olívia, que ele é por demais arisco – segredou Madrinha ao ver que Marcelo saía abruptamente da sala. – Se trocou comigo meia dúzia de palavras, foi muito. Aliás, toda a gente de Romeu é assim mesmo, são todos muito esquisitos. Esquisitíssimos!

        Tia Olívia ajeitou com as mãos em concha o farto coque preso na nuca. Umedeceu os lábios com a ponta da língua.

        -- Tem charme...

        Aproximei-me fascinada. Nunca tinha visto ninguém como tia Olívia, ninguém com aqueles olhos pintados de verde e com aquele decote assim fundo.

        -- É de cera? – perguntei tocando-lhe uma das cerejas.

        Ela acariciou-me a cabeça com um gesto distraído. Senti bem de perto seu perfume.

        -- Acho que sim, querida. Por quê? Você nunca viu cerejas?

        -- Só na folhinha.

        Ela teve um risinho cascateante. No rosto muito branco a boca parecia um largo talho aberto, com o mesmo brilho das cerejas.

        -- Na Europa são tão carnudas, tão frescas.

        Marcelo também tinha estado na Europa com o avô. Seria isso? Seria isso que os fazia infinitamente superiores a nós? Pareciam feitos de outra carne e pertencer a um outro mundo tão acima do nosso, ah! como éramos pobres e feios. Diante de Marcelo e tia Olívia, só diante dos dois é que eu pude avaliar como éramos pequenos: eu, de unhas roídas e vestidos feitos por Dionísia, vestidos que pareciam as camisolas das bonecas de jornal que Simão recortava com a tesoura do jardim. Madrinha, completamente estrábica e tonta em meio das suas rendas e crochês. Dionísia, tão preta quanto enfatuada com as tais receitas secretas.

        -- Não quero é dar trabalho – murmurou tia Olívia dirigindo-se ao quarto. Falava devagar, andava devagar. Sua voz foi se afastando com a mansidão de um gato subindo a escada. – Cansei-me muito, querida. Preciso apenas de um pouco de sossego...

        Agora só se ouvia a voz de Madrinha que tagarelava sem parar: a chácara era modesta, modestíssima, mas ela haveria de gostar, por que não? O clima era uma maravilha e o pomar nessa época do ano estava coalhado de mangas. Ela não gostava de mangas? Não?...Tinha também bons cavalos se quisesse montar, Marcelo poderia acompanhá-la, era um ótimo cavaleiro, vivia galopando dia e noite. Ah, o médico proibira? Bem, os passeios a pé também eram lindos, havia no fim do caminho dos bambus um lugar ideal para piqueniques, ela não achava graça num piquenique?

        Fui para a varanda e fiquei vendo as estrelas por entre a folhagem da paineira. Tia Olívia devia estar sorrindo, a umedecer com a ponta da língua os lábios brilhantes. Na Europa eram tão carnudas... Na Europa.

        Abri a caixa de sabonete escondida sob o tufo de samambaia. O escorpião foi saindo penosamente de dentro. Deixei-o caminhar um bom pedaço e só quando ele atingiu o centro da varanda é que me decidi a despejar a gasolina. Acendi o fósforo. As chamas azuis subiram num círculo fechado. O escorpião rodou sobre si mesmo, erguendo-se nas patas traseiras, procurando uma saída. A cauda contraiu-se desesperadamente. Encolheu-se. Investiu e recuou em meio das chamas que se apertavam mais.

        -- Será que você não se envergonha de fazer uma maldade dessas? Voltei-me. Marcelo cravou em mim o olhar feroz. Em seguida, avançando para o fogo, esmagou o escorpião no tacão da bota.

        -- Diz que ele se suicida, Marcelo...

        -- Era capaz mesmo quando descobrisse que o mundo está cheio de gente como você.

        Tive vontade de atirar-lhe a gasolina na cara. Tapei o vidro.

        -- E não adianta ficar furiosa, vamos, olhe para mim! Sua boba. Pare de chorar e prometa que não vai mais judiar dos bichos.

         Encarei-o. Através das lágrimas ele pareceu-me naquele instante tão belo quanto um deus, um deus de cabelos dourados e botas, todo banhado de luar. Fechei os olhos. Já não me envergonhava das lágrimas, já não me envergonhava de mais nada. Um dia ele iria embora do mesmo modo imprevisto como chegara, um dia ele sairia sem se despedir e desapareceria para sempre. Mas isso também já não tinha importância. Marcelo, Marcelo! chamei. E só meu coração ouviu.

        Quando ele me tomou pelo braço e entrou comigo na sala, parecia completamente esquecido do escorpião e do meu pranto. Voltou-lhe o sorriso.

        -- Então é essa a famosa tia Olívia? Ah, ah, ah.

        Enxuguei depressa os olhos na barra da saia.

        -- Ela é bonita, não?

        Ele bocejou.

        -- Usa um perfume muito forte. E aquele galho de cerejas dependurado no peito. Tão vulgar.

        -- Vulgar?

        Fiquei chocada. E contestei, mas em meio da paixão com que a defendi, senti uma obscura alegria ao perceber que estava sendo derrotada.

        -- E, além do mais, não é meu tipo – concluiu ele voltando o olhar indiferente para o trabalho de crochê que Madrinha deixara desdobrado na cadeira. Apontou para o anjinho esvoaçando entre grinaldas. - Um anjinho cego.

        -- Por que cego? – protestou Madrinha descendo a escada. Foi nessa noite que perdeu os óculos. – Cada ideia, Marcelo!

        Ele debruçara-se na janela e parecia agora pensar em outra coisa.

        -- Tem dois buracos em lugar dos olhos.

        -- Mas crochê é assim mesmo, menino! No lugar de cada olho deve ficar uma casa vazia – esclareceu ela sem muita convicção. Examinou o trabalho. E voltou-se nervosamente para mim. – Por que não vai buscar o dominó para vocês jogarem uma partida? E vê se encontra meus óculos que deixei por aí.

        Quando voltei com o dominó, Marcelo já não estava na sala. Fiz um castelo com as pedras. E soprei-o com força. Perdia-o sempre, sempre. Passava as manhãs galopando como louco. Almoçava rapidamente e mal terminava o almoço, fechava-se no quarto e só reaparecia no lanche, pronto para sair outra vez. Restava-me correr ao alpendre para vê-lo seguir em direção à estrada, cavalo e cavaleiro tão colados um ao outro que pareciam formar um corpo só.

        Como um só corpo os dois tombaram no divã, tão rápido o relâmpago e tão longa a imagem, ele tão grande, tão poderoso, com aquela mesma expressão com que galopava como que agarrado à crina do cavalo, arfando doloridamente na reta final.

        Foram dias de calor atroz os que antecederam à tempestade. A ansiedade estava no ar. Dionísia ficou mais casmurra. Madrinha ficou mais falante, procurando disfarçadamente os óculos nas latas de biscoitos ou nos potes de folhagens, esgotada a busca em gavetas e armários. Marcelo pareceu-me mais esquivo, mais crispado. Só tia Olívia continuava igual, sonolenta e lânguida no seu negligê branco. Estendia-se na rede. Desatava a cabeleira. E com um movimento brando ia se abanando com a ventarola. Às vezes vinha com as cerejas que se esparramavam no colo polvilhado de talco. Uma ou outra cereja resvalava por entre o rego dos seios e era então engolida pelo decote.

        -- Sofro tanto com o calor...

        Madrinha tentava animá-la.

        -- Chovendo, Olívia, chovendo você verá como vai refrescar.

        Ela sorria umedecendo os lábios com a ponta da língua.

        -- Você acha que vai chover?

        -- Mas claro, as nuvens estão baixando, a chuva já está aí. E vai ser um temporal daqueles, só tenho medo é que apanhe esse menino lá fora. Você já viu menino mais esquisito, Olívia? Tão fechado não? E sempre com aquele arzinho de desprezo.

        -- É da idade, querida. É da idade.

        -- Parecido com o pai. Romeu também tinha essa mesma mania com cavalo.

        -- Ele monta tão bem. Tão elegante.

        Defendia-o sempre enquanto ele a atacava, mordaz, implacável: “É afetada, esnobe. E como representa, parece que está sempre no palco”. Eu contestava, mas de tal forma que o incitava a prosseguir atacando.

        Lembro-me de que as primeiras gotas de chuva caíram ao entardecer, mas a tempestade continuava ainda em suspenso, fazendo com que o jantar se desenrolasse numa atmosfera abafada. Densa. Pretextando dor de cabeça, tia Olívia recolheu-se mais cedo. Marcelo, silencioso como de costume, comeu de cabeça baixa. Duas vezes deixou cair o garfo.

        -- Vou ler um pouco – despediu-se assim que nos levantamos.

        Fui com Madrinha para a saleta. Um raio estalou de repente. Como se esperasse por esse sinal, a casa ficou completamente às escuras enquanto a tempestade desabava.

        -- Queimou o fusível! – gemeu Madrinha. – Vai, filha, vai depressa buscar o maço de velas, mas leva primeiro ao quarto de tia Olívia. E fósforos, não esqueça os fósforos!

        Subi a escada. A escuridão era tão viscosa, que se eu estendesse a mão poderia senti-la amoitada como um bicho por entre os degraus. Tentei acender a vela mas o vento me envolveu. Escancarou-se a porta do quarto. E em meio do relâmpago que rasgou a treva, vi os dois corpos completamente azuis, tombando enlaçados no divã.

        Afastei-me cambaleando. Agora as cerejas se despencavam sonoras como enormes bagos de chuva caindo de uma goteira. Fechei os olhos. Mas a casa continuava a rodopiar desgrenhada e lívida com os dois corpos rolando na ventania.

        -- Levou as velas para a tia Olívia? - perguntou Madrinha.

        Desabei num canto, fugindo da luz do castiçal aceso em cima da mesa.

        -- Ninguém respondeu, ela deve estar dormindo.

        -- E Marcelo?

        -- Não sei, deve estar dormindo também.

        Madrinha aproximou-se com o castiçal.

        -- Mas que é que você tem, menina? Está doente? Não está com febre? Hem?! Sua testa está queimando... Dionísia, traga uma aspirina, esta menina está com um febrão, olha aí!

        Até hoje não sei quantos dias me debati esbraseada, a cara vermelha, os olhos vermelhos, escondendo-me debaixo das cobertas para não ver por entre clarões de fogo milhares de cerejas e escorpiões em brasa, estourando no chão.

        -- Foi um sarampo tão forte – disse Madrinha ao entrar certa manhã no quarto. – E como você chorava, dava pena ver como você chorava! Nunca vi um sarampo doer tanto assim.

        Sentei-me na cama e fiquei olhando uma borboleta branca pousada no pote de avencas da janela. Voltei-me em seguida para o céu limpo. Havia um passarinho cantando na paineira. Madrinha então disse:

        -- Marcelo foi-se embora ontem à noite, quando vi, já estava de mala pronta, sabe como ele é. Veio até aqui se despedir, mas você estava dormindo tão profundamente.

        Dois dias depois, tia Olívia partia também. Trazia o costume preto e o chapeuzinho com os alfinetes de pérola espetados no feltro. Na blusa branca, bem no vértice do decote, o galho de cerejas.

        Sentou-se na beirada da minha cama.

        -- Que susto você nos deu, querida – começou com sua voz pesada. – Pensei que fosse alguma doença grave. Agora está boazinha, não está?

        Prendi a respiração para não sentir seu perfume.

        -- Estou.

        -- Ótimo! Não te beijo porque ainda não tive sarampo – disse ela calçando as luvas. Riu o risinho cascateante. – E tem graça eu pegar nesta altura doença de criança?

        Cravei o olhar nas cerejas que se entrechocavam sonoras, rindo também entre os seios. Ela desprendeu-as rapidamente.

        -- Já vi que você gosta, pronto, uma lembrança minha.

        -- Mas ficam tão lindas aí – lamentou Madrinha. – Ela nem vai poder usar, bobagem, Olívia, leve suas cerejas!

        -- Comprarei outras.

        Durante o dia seu perfume ainda pairou pelo quarto. Ao anoitecer, Dionísia abriu as janelas. E só ficou o perfume delicado da noite.

        -- Tão encantadora a Olívia – suspirou Madrinha sentando-se ao meu lado com sua cesta de costura. – Vou sentir falta dela, um encanto de criatura. O mesmo já não posso dizer daquele menino. Romeu também era assim mesmo, o filho saiu igual. E só às voltas com cavalos, montando em pelo, feito índio. Eu quase tinha um enfarte quando via ele galopar.

        Exatamente um ano depois ela repetiria, num outro tom, esse mesmo comentário ao recebera carta onde Romeu comunicava que Marcelo tinha morrido de uma queda de cavalo.

        -- Anjinho cego, que ideia! – prosseguiu ela desdobrando o crochê nos joelhos. – Já estou com saudades de Olívia, mas dele?

        Sorriu alisando o crochê com as pontas dos dedos. Tinha encontrado os óculos.

As cerejas. São Paulo: Atual, 1992. p. 4-15.

Fonte: Livro – Português: Linguagem, 2 / William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães, 11. Ed. Ensino médio – São Paulo: Saraiva, 2016. p. 164-172.

Entendendo o conto:

01 – Qual o significado das cerejas no conto?

      As cerejas representam a sensualidade, a maturidade e a passagem para a vida adulta. Elas são um símbolo da beleza, do desejo e do proibido, contrastando com a inocência da infância representada pela narradora.

02 – Qual o papel de Tia Olívia na história?

      Tia Olívia é uma figura enigmática e sedutora, que representa a sensualidade e a experiência. Ela serve como catalisador para a despertar da sexualidade da narradora e para a descoberta de um mundo adulto e complexo.

03 – Qual o significado da tempestade no conto?

      A tempestade simboliza a perturbação interior da narradora, a descoberta da sexualidade e a desilusão com a figura de Marcelo. É um momento de transformação e de passagem para uma nova fase da vida.

04 – Qual o papel de Marcelo na história?

      Marcelo representa a figura do adolescente rebelde e misterioso, que desperta o interesse e a paixão da narradora. Ele é um símbolo da sexualidade masculina e da descoberta do corpo.

05 – Qual a importância do ambiente da chácara na narrativa?

      A chácara é o cenário da descoberta da sexualidade e da passagem da infância para a adolescência. É um lugar isolado e protegido, onde a narradora pode experimentar novas sensações e emoções.

06 – Qual o significado da cegueira do anjinho de crochê?

      A cegueira do anjinho simboliza a inocência perdida e a descoberta da realidade, que muitas vezes é cruel e dolorosa. É uma metáfora para a perda da ingenuidade infantil.

07 – Qual a importância da linguagem utilizada por Lygia Fagundes Telles no conto?

      A linguagem de Lygia Fagundes Telles é rica em simbolismo e sugestões, criando uma atmosfera sensível e poética. As descrições detalhadas dos personagens e do ambiente contribuem para a construção de um universo rico e complexo.

08 – Quais os temas abordados no conto "As Cerejas"?

      O conto aborda temas como a passagem da infância para a adolescência, a descoberta da sexualidade, a complexidade das relações humanas, a perda da inocência e a busca pela identidade.

09 – Qual a importância do final do conto?

      O final do conto é ambíguo e deixa margem para diversas interpretações. A narradora, agora adulta, relembra sua experiência com nostalgia e melancolia, revelando a marca que a adolescência deixou em sua vida.

10 – Qual a relevância de "As Cerejas" na obra de Lygia Fagundes Telles?

      "As Cerejas" é um conto representativo da obra de Lygia Fagundes Telles, que se destaca por sua sensibilidade na abordagem de temas como a sexualidade, a mulher e a passagem do tempo. O conto revela a habilidade da autora em criar personagens complexos e em construir narrativas ricas em simbolismo.

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

CONTO: MYSTERIUM - LYGIA FAGUNDES TELLES - COM GABARITO

 Conto: Mysterium

           Lygia Fagundes Telles

        “Eu vi ainda debaixo do sol que a corrida não é para os mais ligeiros, nem a batalha para os mais fortes, nem o pão para os mais sábios, nem as riquezas para os mais inteligentes, mas tudo depende do tempo e do acaso.” 

(Eclesiastes) 

        Ao tempo e ao acaso eu acrescento o grão de imprevisto. E o grão da loucura, a razoável loucura que é infinita na nossa finitude. Vejo minha vida e obra seguindo assim por trilhos paralelos e tão próximos, trilhos que podem se juntar (ou não) lá adiante mas tudo sem explicação, não tem explicação. 

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEghtdfwsCTWFNPDPhGqkON7KBgkHt4CBtdTQe8BBiBkb4QW_8f8SwpXmyLhH-pIZIFTAY1oh-sy-6rKhVJUO-XvgEZhMrSXPYRCoq54Z3Nd5OtjDUEYm-HwSpnPR77pXQLa_wHcMZVSufdii83JYtFxf8ep1garbsqLuWuhPlP7gT69tyM_Vc-i95fgCzw/s320/IMPREVISTO.jpg


        Os leitores pedem explicações, são curiosos e fazem perguntas. Respondo. Mas se me estendo nas respostas, acabo por pular de um trilho para outro e começo a misturar a realidade com o imaginário, faço ficção em cima de ficção, Ah! Tanta vontade (disfarçada) de seduzir o leitor, esse leitor que gosta do devaneio. Do sonho. Queria estimular sua fantasia mas agora ele está pedindo lucidez, quer a luz da razão.

        Não gosto de teorizar porque na teoria acabo por me embrulhar feito um caramelo em papel transparente, me dê um tempo! Eu peço. Quero ficar fria, espera. Espera que estou me aventurando na busca das descobertas. “Devagar já é pressa!”, disse Guimarães Rosa. Preciso agora atravessar o cipoal dos detalhes e são tantos! E tamanha a minha perplexidade diante do processo criador, Deus! Os indevassáveis signos e símbolos. Ainda assim, avanço em meio da névoa, quero ser clara em meio desse claro que de repente ficou escuro, estou perdida? 

        Mais perguntas, como nasce um conto? E um romance? Recorro a uma certa aula distante (Antônio Candido) onde aprendi que num texto literário há sempre três elementos: a ideia, o enredo e a personagem. A personagem, que pode ser aparente ou inaparente, não importa. Que pode ser única ou se repetir, tive uma personagem que recorreu à máscara para não ser descoberta, quis voltar num outro texto e usou disfarce, assim como faz qualquer ser humano para mudar de identidade. 

        Na tentativa de reter o questionador, acabo por inventar uma figuração na qual a ideia é representada por uma aranha. A teia dessa aranha seria o enredo. A trama. E a personagem, o inseto que chega naquele voo livre e acaba por cair na teia da qual não consegue fugir, enleado pelos fios grudentos. Então desce (ou sobe) a aranha e nhac! Prende e suga o inseto até abandoná-lo vazio. Oco. 

        O questionador acha a imagem meio dramática mas divertida, consegui fazê-lo sorrir? Acho que sim. Contudo, há aquele leitor desconfiado, que não se deixou seduzir porque quer ver as personagens em plena liberdade e nessa representação elas estão como que sujeitas a uma destinação. A uma condenação. E cita Jean-Paul Sartre que pregava a liberdade também para as personagens, ah! Odiosa essa fatalidade dos seres humanos (inventados ou não) caminhando para o bem e para o mal. Sem mistura.

        Começo a me sentir prisioneira dos próprios fios que fui inventar, melhor voltar às divagações iniciais onde vejo (como eu mesma) o meu próximo também embrulhado. Ou embuçado? Desembrulhando esse próximo, também vou me revelando e na revelação, me deslumbro para me obumbrar novamente nesta viragem-voragem do ofício. 

TELLES, Lygia Fagundes. Durante aquele estranho chá: perdidos e achados. Rio de Janeiro: Editora Rocco, Rio: 2002.

Fonte: Português – José De Nicola – Ensino médio – Volume 1 – 1ª edição, São Paulo, 2009. Editora Scipione. p. 203-204.

Entendendo o conto:

01 – Qual a principal temática abordada no conto?

      A principal temática é o processo criativo da escrita. Lygia Fagundes Telles reflete sobre as dificuldades e os prazeres de escrever, a relação entre o autor e o leitor, e a natureza da ficção.

02 – Qual a importância da citação de Eclesiastes no início do conto?

      A citação de Eclesiastes introduz a ideia da incerteza e da imprevisibilidade da vida. Ela estabelece um paralelo com o processo criativo, que também é marcado pela incerteza e pela busca por significado.

03 – Qual a metáfora utilizada pela autora para representar o processo de criação?

      A autora utiliza a metáfora da aranha e da teia para representar o processo de criação. A aranha tece a trama, que seria o enredo, e o inseto capturado representaria a personagem. Essa metáfora sugere que o escritor captura e manipula elementos da realidade para criar suas histórias.

04 – Qual a importância da interação entre o autor e o leitor para Lygia Fagundes Telles?

      A interação entre o autor e o leitor é fundamental para Lygia Fagundes Telles. Ela destaca a curiosidade dos leitores e a necessidade de explicar o processo criativo. Ao mesmo tempo, ela questiona a possibilidade de oferecer explicações definitivas e completas sobre a criação literária.

05 – Como a autora aborda a questão da liberdade e do destino nas personagens?

      A autora apresenta diferentes perspectivas sobre a liberdade e o destino das personagens. Por um lado, a metáfora da aranha e da teia sugere que as personagens estão presas a uma trama pré-determinada. Por outro lado, a autora reconhece a importância da liberdade e da autonomia das personagens.

06 – Qual a relação entre o conto e a vida real?

      O conto estabelece uma relação entre o processo criativo e a vida real. A autora utiliza elementos da realidade para construir suas histórias, mas também reconhece a importância da imaginação e da ficção. A busca por significado tanto na vida quanto na literatura é um tema central do conto.

07 – Qual a principal mensagem do conto "Mysterium"?

      A principal mensagem do conto é que o processo criativo é um mistério. Não há uma fórmula única para criar uma obra de arte, e cada escritor utiliza suas próprias ferramentas e estratégias. A escrita é uma jornada de descoberta e de autoconhecimento.

 

 

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

CONTO: DEZEMBRO NO BAIRRO - LYGIA FAGUNDES TELLES - COM GABARITO

 Conto: Dezembro no bairro

            Lygia Fagundes Telles

        O cinema no porão da nossa casa não tinha dado certo porque antes mesmo do intervalo o Pedro Piolho pôs-se a berrar que não estava enxergando nada, que aquilo tudo era uma grandessíssima porcaria. Queria o dinheiro de volta. Os outros meninos também começaram a vaiar, ameaçando quebrar as cadeiras. Foi quando apareceu minha mãe mandando que toda a gente calasse a boca. E exigindo que devolvêssemos o dinheiro das entradas. Proibiu ainda que fizéssemos outras sessões iguais. E levou a cesta de pão que eu segurava no colo, estava combinado que no intervalo eu devia sair anunciando “Balas, bombons, chocolates”!... Embora houvesse na cesta apenas um punhado de rebuçados de Lisboa. Caramelo; bala.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEishgbDhC_7MvJHtYs1hqfTiQSFbY2gZ4h6Faw0wLNmup6p9J2sDdkkqU6XDtRiPcQWVFul6QbAPDXxfk4MFeaNP9QmtyXSbGkKvM3cYV2SIUwTcfEUk1DUxjFAnl78XxmLpTVFkf_mHqVBvOgJAwE9KBg4gaV9zb_e82a8Mokj7AKiS_4q_lGFtQVFdrw/s320/PORAO.jpg


        — Você não presta como chefe — disse meu irmão ao Maneco. — Com que dinheiro agora vamos fazer o presépio? Eu avisei que o projetor não estava funcionando. Não avisei?

        Maneco era o filho do Marcolino, um vagabundo do bairro. Magro e encardido, tinha os cabelos mais negros que já vi em minha vida.

        — Mas só falta comprarmos o céu — retrucou o Maneco. — Papel de seda azul para o céu e o papel prateado para as estrelas, eu já disse que faço as estrelas. Não fiz da outra vez?

        — Não quero saber de nada. Agora o chefe sou eu.

        — É o que vamos decidir lá fora — ameaçou Maneco avançando para o meu irmão.

        Foram para a rua. Em silêncio seguimos todos atrás. A luta travou-se debaixo da árvore, uma luta desigual porque meu irmão, que era um touro de forte, logo de saída atirou Maneco no chão e montou em cima. Mordeu-lhe o peito.

        — Pede água! Pede água!

        Foi aí que apareceu o Marcolino. Agarrou o filho pelos cabelos, sacudiu-o no ar e deu-lhe um bofetão que o fez rodopiar até se estender no meio da calçada.

        — Em casa a gente conversa melhor — disse o homem apertando o cinto das calças.

        A noite estava escura, mas mesmo assim pudemos ver que ele estava bêbado.

        — Vamos embora, anda!

        Maneco limpou na mão o sangue do nariz. Seus cabelos formavam uma espécie de capacete negro caindo na testa até as sobrancelhas. Fechou no peito a camisa rasgada e seguiu o pai.

        — Os meninos já entraram? — perguntou minha mãe quando me viu chegar.

        — Estão se lavando lá no tanque. Ela ouvia uma novela no rádio. E cerzia meias.

        — Que é que vocês estavam fazendo?

        — Nada...

        — O Maneco estava com vocês?

        — Só um pouco, foi embora logo.

        — Esse menino é doente e essa doença pega, já avisei mil vezes! Não mandei se afastarem dele, não mandei?

        Um pobre de um menino pesteado e com o pai daquele jeito...

        — É que o céu do nosso presépio queimou, mãe! Não sei quem acendeu aquela vela e o céu pegou fogo. O Natal está chegando e só ele é que sabe cortar as estrelas, só ele é que sabe.

        — Vocês andam impossíveis! Continuem assim e veremos se vai ter presente no sapato.

        Já sabíamos que o Papai Noel era ela. Ou então, o pai, quando calhava de voltar das suas viagens antes do fim do ano. Mas ambos insistiam em continuar falando no santo que devia descer pela lareira, a tal lareira que por sinal nunca tivemos. Então a gente achava melhor entrar no jogo com a maior cara-de-pau do mundo. Eu chegava ao ponto de escrever bilhetinhos endereçados a Papai Noel pedindo-lhe tudo o que me passava pela cabeça. Minha mãe lia os bilhetes, guardava-os de novo no envelope e não dizia nada. Já meus irmãos, mais audaciosos, tentavam forçar o cadeado da cômoda onde ela ia escondendo os presentes: enfiavam pontas de faca nas frestas das gavetas, cheiravam as frestas, trocavam ideias sobre o que podia caber lá dentro e se torciam de rir com as obscenidades que prometiam escrever nas suas cartas. Mas quando chegava dezembro, nas vésperas da grande visita, ficavam delicadíssimos. Faziam aquelas caras de piedade e engraxavam furiosamente os sapatos porque estava resolvido que Papai Noel deixaria uma barata no sapato que não estivesse brilhando. Nesse Natal pensamos em ganhar algum dinheiro com o tal cinema no porão. Mas o projetor não projetava nada, foi aquele vexame. Restava agora o recurso do presépio com entrada paga, eu ficaria na porta chamando os possíveis visitantes com minha bata de procissão e asas de anjo.

        — E o céu? — lembrou meu irmão lançando um olhar desconfiado na direção de Maneco. — Como vai ser o céu?

        Estávamos sentados nos degraus de pedra da escadaria da igreja. Meus irmãos tinham ido me buscar depois da aula de catecismo e agora tratávamos dos nossos assuntos, tão pasmados quanto as moscas estateladas em nosso redor, tomando sol. Pareciam tão inertes que davam a impressão de que poderíamos segurá-las pelas asas. Mas sabíamos que nenhum de nós prenderia qualquer uma delas assim naquela aparente abstração.

        — Eu já prometi que faço as estrelas, dou o papel prateado das estrelas — disse Maneco riscando com a ponta da unha as pernas magras, com marcas de cicatrizes. Baixou a cara amarela. — Já andei tirando areia de uma construção, está num caixotinho lá em casa, uma areia branca, limpa. Tem areia à beça.

        — Então você dá o papel.

        — Dou o prateado das estrelas, estrela tem que ser prateada. O papel azul do céu é com vocês que já estou dando muito.
Confabulamos em voz baixa. E ficou decidido que no dia seguinte iríamos catar alguma coisa num palacete vago da avenida Angélica, na hora em que o vigilante devia sair para almoçar. Mas o Maneco não apareceu. Durante três dias esperamos por ele.

        — Ficou com medo — disse meu irmão. — É um covarde, uma besta.

        O Polaquinho protestou: — Mas ele está doente, não pode nem se levantar. Meu pai acha que ele vai morrer logo.

        — Não interessa, prometeu e não cumpriu, é um covarde. Vamos nós e pronto.

        Entramos pela janela dos fundos, que estava aberta, enfiamos numa sacola de feira todas as lâmpadas e maçanetas de porta que pudemos desatarraxar e fugimos antes que o vigilante voltasse. Quando chegamos em casa, fomos retos para o porão e abrimos a sacola. A verdade é que longe do palacete, isoladas dos grandes lustres de cristal e daquelas portas trabalhadas, as lâmpadas e maçanetas tinham perdido todo o prestígio: vistas assim de perto, não passavam de maçanetas gastas. É de um monte de lâmpadas empoeiradas e que talvez não se acendessem nunca. Esfreguei na palma da mão a mais escura delas: e se fosse a lâmpada mágica de Aladim? O que eu pediria ao esfumaçado gênio de calças bufantes e argolas de ouro?

        — Depressa, gente, depressa! Tem um Papai Noel lá na loja do Samuel —anunciou o Marinho chegando quase sem fôlego.

        — Um Papai Noel de verdade? Na loja do Samuel? Deixe de mentira...

        — Mentira nada! Venham depressa que ele está lá com a barba branca, a roupa vermelha, juro que é verdade!

        — Um Papai Noel na loja do Samuel, a loja mais mambembe do bairro?

        — Se for mentira, você me paga — ameaçou o Polaquinho encostando o punho fechado no queixo do Marinho.

        — Quero ficar cego se estou mentindo!

        Esse mesmo juramento ele fazia quando contava as piores mentiras. Mas o fato é que já estávamos há muito tempo ali parados diante da sacola aberta, sem nos ocorrer um destino a dar àquilo tudo. Era preciso fazer outra coisa. Fomos atrás do Marinho, que ia falando na maior agitação, descrevendo o capuz vermelho, a bata debruada de algodão branco, como aparecia nas ilustrações. Quando dobramos a esquina, ficamos de boca aberta, olhando: lá estava ele de carne e osso, a sepavonear de um lado para outro sob o olhar radiante de Samuel, na porta da loja. Fomos nos aproximando devagar. Sacudindo um pequeno sino dourado, o Papai Noel alisava a barba postiça e dizia gracinhas ao filho de um tipo que parecia ter dinheiro.

         — Não quer encomendar nada a este Papai Noel? Vamos, queridinho, faça seu pedido... Uma bola? Um patinete?

        — Estou conhecendo esse cara — resmungou o Polaquinho apertando os olhos. — Já vi ele em algum lugar...

        Sentindo-se observado, o homem deu-nos as costas enquanto estendia a mão enluvada na direção do menino. Fizemos a volta até vê-lo de frente. Foi o bastante para o homem esquivar-se de novo, fingindo arrumar os brinquedos dependurados na porta. Essa segunda manobra alertou-nos. Fomos nos aproximando assim com ar de quem não estava querendo nada. O queixo e a boca não se podiam ver sob o emaranhado do algodão da barba. O gorro vermelho também escondia toda a cabeça. Mas, e aqueles ombros curvos e aquele jeito assim balanceado de andar?  Era um conhecido, sem dúvida. Mas quem? E por que nos evitava, por quê? Penso agora que se ele não tivesse disfarçado tanto, não teríamos desconfiado de nada: seria mais um Papai Noel como dezenas de outros que víamos andando pela cidade. Mas aquela preocupação de se esconder acabou por denunciá-lo. Ficamos na maior excitação: ele estava com medo. Nunca nos sentimos tão poderosos.

        — Esse filho-da-mãe é aqui do bairro — cochichou meu irmão. — Dou minha cabeça a cortar como ele é daqui do bairro.
Polaquinho olhava agora para os pés dele, para aqueles sapatos deformados sob as perneiras de oleado preto fingindo bota. Os sapatos! Aqueles sapatos velhos, sapatos de andarilho, eram a própria face do homem. Jamais sapato algum acabou por adquirir tão fielmente as feições do dono: era o pai de Maneco.

        — Marcolino!

        Ele voltou-se como se tivesse sido golpeado pelas costas.

        Desatamos a rir e a gritar, era o malandro do Marcolino fazendo de Papai Noel, era o Marcolino!...

        — Marcolino, eh! Marcolino!... Tira a barba, Marcolino!

        A alegria da descoberta nos fez delirantes, pulávamos e cantávamos aos gritos, fazendo roda, de mãos dadas, "Mar-co-li-no! Mar-co-li-no! Em vão ele tentou prosseguir representando o seu papel. Rompendo o frágil disfarce do algodão e dos panos, sentimos sua vergonha. Sua raiva. Duas velhas da casa vizinha abriram a janela e ficaram olhando e rindo.

        — Molecada suja! — gritou o Samuel saindo da loja. Sacudiu os punhos fechados. — Fora daqui seus ladrõezinhos! Fora!

        Fugimos. Para voltar em seguida mais exaltados, com Firpo que apareceu de repente correndo e latindo feito louco, investindo às cegas por entre nossas pernas. Gritávamos compassadamente, com todas as forças: — Mar-co-li-no! Mar-co-li-no!...Ele então arrancou a barba. Arrancou o gorro, arrancou a bata e atirou tudo no chão. Pôs-se a pisotear em cima, a pisotear tão furiosamente que o Samuel não pensou sequer em impedir, ficou só ali parado, olhando. E dessa vez o homem não tinha bebido, era raiva mesmo, uma raiva tamanha que chegou a nos assustar, quando vimos sua cara amarfanhada, branca. Em meio ao susto que nos fez calar, ocorreu-me pela primeira vez o quanto o Maneco era parecido com o pai quando ficava assim furioso, ah, eram iguais aqueles capacetes de cabelo desabando até as sobrancelhas negras. Quando se cansou de pular em cima da fantasia, foi-se embora naquele andar gingado, a fralda da camisa fora da calça, os sapatões esparramados. Samuel entrou de novo na loja. Fecharam-se as janelas. Firpo saiu correndo, levando a carapuça vermelha nos dentes, enquanto o vento espalhava o algodão da barba por todo o quarteirão. Polaquinho apanhou alguns fiapos e grudou-os com cuspe no queixo, mas ninguém achou graça. Voltamos à nossa sacola de maçanetas e lâmpadas. No dia seguinte, um outro Papai Noel mais baixo e mais gordo passeava diante da loja. Olhou-nos com ar ameaçador, mas seguimos firmes, esse nós não conhecíamos. Depois do jantar, meu irmão instalou-se em cima da árvore na calçada, diante da nossa casa. Abriu a folhagem e ficou olhando lá de cima.

        — Boca-de-forno!

        — Forno! — repetimos fazendo continência.

        — Fareis tudo o que o vosso mestre mandar?

        — Faremos com muito gosto!

        — Quero que vocês entrem no porão do Maneco, gritem duas vezes Mar-co-li-no! Mar-co-li-no! e voltem correndo. Já!

        Saímos em disparada pela rua afora. O portão do cortiço estava apenas cerrado. Duas pretas gordas conversavam refesteladas em cadeiras na calçada. Empurramos devagarinho a portinhola carcomida. Entramos. E paramos assustados no meio do porão de paredes encardidas e trastes velhos amontoados nos cantos. Sabíamos que eles eram pobres, mas assim desse jeito? Maneco estava sozinho, deitado num colchão com a palha saindo por entre os remendos. Mal teve tempo de esconder qualquer coisa debaixo do lençol. Tinha na mão uma tesoura, devia estar cortando o papel que escondeu. Brincadeira em que uma criança, o "mestre", distribui tarefas para as outras. Sob a luz débil da lamparina em cima do caixotinho ele me pareceu completamente amarelo, o cabelo negro mais crescido fechando-lhe a cara.

        — Seus traidores! — gritou com voz rouca. — Que é que vocês querem aqui, seus traidores! Traidores!

        Morreu na semana seguinte, foi essa a última vez que o vimos. Fomos saindo em silêncio e de cabeça baixa. Só eu olhei ainda para trás. Ele fungava por entre as lágrimas enquanto procurava esconder debaixo do lençol a ponta de uma estrela de papel prateado.

Lygia Fagundes Telles.

Entendendo o conto:

01 – Quem é o protagonista do conto?

      O protagonista é uma criança narradora, não especificamente nomeada.

02 – Qual é o problema principal enfrentado pelos personagens no conto?

      Eles enfrentam dificuldades financeiras e tentam organizar um presépio para ganhar dinheiro, mas as coisas não saem como planejado.

03 – Quem é Maneco?

      Maneco é o filho de Marcolino, um vagabundo do bairro, e ele se envolve com as crianças na tentativa de fazer um presépio.

04 – Por que o cinema no porão da casa não foi bem-sucedido?

      O Pedro Piolho e outros meninos começaram a reclamar durante a exibição, causando tumulto, o que levou à interrupção da sessão.

05 – O que os personagens tentam fazer para arrecadar dinheiro no período de Natal?

      Eles tentam organizar um presépio com entrada paga para ganhar dinheiro.

06 – Como os personagens descobrem a identidade do Papai Noel na loja do Samuel?

      Eles reconhecem que o Papai Noel disfarçado é na verdade o pai de Maneco, Marcolino, devido aos sapatos que ele usa.

07 – Por que o Marcolino se disfarça de Papai Noel?

      Não é explicitamente mencionado no conto, mas provavelmente é uma tentativa de ganhar dinheiro durante a temporada de Natal.

08 – Qual é a reação das crianças ao descobrir a identidade do Papai Noel?

      Eles começam a gritar o nome de Marcolino e riem dele, fazendo-o tirar o disfarce.

09 – O que acontece com Maneco no desfecho do conto?

      Ele morre na semana seguinte após a última interação com as crianças, tentando esconder a ponta de uma estrela de papel prateado debaixo do lençol.

10 – Como o conto retrata a visão das crianças sobre o Natal e a figura do Papai Noel?

      Mostra que as crianças têm uma mistura de crença e desconfiança em relação ao Papai Noel, sabendo que é uma invenção, mas ao mesmo tempo se envolvendo nas tradições e expectativas natalinas.