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sexta-feira, 17 de novembro de 2023

CONTO: DEZEMBRO NO BAIRRO - LYGIA FAGUNDES TELLES - COM GABARITO

 Conto: Dezembro no bairro

            Lygia Fagundes Telles

        O cinema no porão da nossa casa não tinha dado certo porque antes mesmo do intervalo o Pedro Piolho pôs-se a berrar que não estava enxergando nada, que aquilo tudo era uma grandessíssima porcaria. Queria o dinheiro de volta. Os outros meninos também começaram a vaiar, ameaçando quebrar as cadeiras. Foi quando apareceu minha mãe mandando que toda a gente calasse a boca. E exigindo que devolvêssemos o dinheiro das entradas. Proibiu ainda que fizéssemos outras sessões iguais. E levou a cesta de pão que eu segurava no colo, estava combinado que no intervalo eu devia sair anunciando “Balas, bombons, chocolates”!... Embora houvesse na cesta apenas um punhado de rebuçados de Lisboa. Caramelo; bala.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEishgbDhC_7MvJHtYs1hqfTiQSFbY2gZ4h6Faw0wLNmup6p9J2sDdkkqU6XDtRiPcQWVFul6QbAPDXxfk4MFeaNP9QmtyXSbGkKvM3cYV2SIUwTcfEUk1DUxjFAnl78XxmLpTVFkf_mHqVBvOgJAwE9KBg4gaV9zb_e82a8Mokj7AKiS_4q_lGFtQVFdrw/s320/PORAO.jpg


        — Você não presta como chefe — disse meu irmão ao Maneco. — Com que dinheiro agora vamos fazer o presépio? Eu avisei que o projetor não estava funcionando. Não avisei?

        Maneco era o filho do Marcolino, um vagabundo do bairro. Magro e encardido, tinha os cabelos mais negros que já vi em minha vida.

        — Mas só falta comprarmos o céu — retrucou o Maneco. — Papel de seda azul para o céu e o papel prateado para as estrelas, eu já disse que faço as estrelas. Não fiz da outra vez?

        — Não quero saber de nada. Agora o chefe sou eu.

        — É o que vamos decidir lá fora — ameaçou Maneco avançando para o meu irmão.

        Foram para a rua. Em silêncio seguimos todos atrás. A luta travou-se debaixo da árvore, uma luta desigual porque meu irmão, que era um touro de forte, logo de saída atirou Maneco no chão e montou em cima. Mordeu-lhe o peito.

        — Pede água! Pede água!

        Foi aí que apareceu o Marcolino. Agarrou o filho pelos cabelos, sacudiu-o no ar e deu-lhe um bofetão que o fez rodopiar até se estender no meio da calçada.

        — Em casa a gente conversa melhor — disse o homem apertando o cinto das calças.

        A noite estava escura, mas mesmo assim pudemos ver que ele estava bêbado.

        — Vamos embora, anda!

        Maneco limpou na mão o sangue do nariz. Seus cabelos formavam uma espécie de capacete negro caindo na testa até as sobrancelhas. Fechou no peito a camisa rasgada e seguiu o pai.

        — Os meninos já entraram? — perguntou minha mãe quando me viu chegar.

        — Estão se lavando lá no tanque. Ela ouvia uma novela no rádio. E cerzia meias.

        — Que é que vocês estavam fazendo?

        — Nada...

        — O Maneco estava com vocês?

        — Só um pouco, foi embora logo.

        — Esse menino é doente e essa doença pega, já avisei mil vezes! Não mandei se afastarem dele, não mandei?

        Um pobre de um menino pesteado e com o pai daquele jeito...

        — É que o céu do nosso presépio queimou, mãe! Não sei quem acendeu aquela vela e o céu pegou fogo. O Natal está chegando e só ele é que sabe cortar as estrelas, só ele é que sabe.

        — Vocês andam impossíveis! Continuem assim e veremos se vai ter presente no sapato.

        Já sabíamos que o Papai Noel era ela. Ou então, o pai, quando calhava de voltar das suas viagens antes do fim do ano. Mas ambos insistiam em continuar falando no santo que devia descer pela lareira, a tal lareira que por sinal nunca tivemos. Então a gente achava melhor entrar no jogo com a maior cara-de-pau do mundo. Eu chegava ao ponto de escrever bilhetinhos endereçados a Papai Noel pedindo-lhe tudo o que me passava pela cabeça. Minha mãe lia os bilhetes, guardava-os de novo no envelope e não dizia nada. Já meus irmãos, mais audaciosos, tentavam forçar o cadeado da cômoda onde ela ia escondendo os presentes: enfiavam pontas de faca nas frestas das gavetas, cheiravam as frestas, trocavam ideias sobre o que podia caber lá dentro e se torciam de rir com as obscenidades que prometiam escrever nas suas cartas. Mas quando chegava dezembro, nas vésperas da grande visita, ficavam delicadíssimos. Faziam aquelas caras de piedade e engraxavam furiosamente os sapatos porque estava resolvido que Papai Noel deixaria uma barata no sapato que não estivesse brilhando. Nesse Natal pensamos em ganhar algum dinheiro com o tal cinema no porão. Mas o projetor não projetava nada, foi aquele vexame. Restava agora o recurso do presépio com entrada paga, eu ficaria na porta chamando os possíveis visitantes com minha bata de procissão e asas de anjo.

        — E o céu? — lembrou meu irmão lançando um olhar desconfiado na direção de Maneco. — Como vai ser o céu?

        Estávamos sentados nos degraus de pedra da escadaria da igreja. Meus irmãos tinham ido me buscar depois da aula de catecismo e agora tratávamos dos nossos assuntos, tão pasmados quanto as moscas estateladas em nosso redor, tomando sol. Pareciam tão inertes que davam a impressão de que poderíamos segurá-las pelas asas. Mas sabíamos que nenhum de nós prenderia qualquer uma delas assim naquela aparente abstração.

        — Eu já prometi que faço as estrelas, dou o papel prateado das estrelas — disse Maneco riscando com a ponta da unha as pernas magras, com marcas de cicatrizes. Baixou a cara amarela. — Já andei tirando areia de uma construção, está num caixotinho lá em casa, uma areia branca, limpa. Tem areia à beça.

        — Então você dá o papel.

        — Dou o prateado das estrelas, estrela tem que ser prateada. O papel azul do céu é com vocês que já estou dando muito.
Confabulamos em voz baixa. E ficou decidido que no dia seguinte iríamos catar alguma coisa num palacete vago da avenida Angélica, na hora em que o vigilante devia sair para almoçar. Mas o Maneco não apareceu. Durante três dias esperamos por ele.

        — Ficou com medo — disse meu irmão. — É um covarde, uma besta.

        O Polaquinho protestou: — Mas ele está doente, não pode nem se levantar. Meu pai acha que ele vai morrer logo.

        — Não interessa, prometeu e não cumpriu, é um covarde. Vamos nós e pronto.

        Entramos pela janela dos fundos, que estava aberta, enfiamos numa sacola de feira todas as lâmpadas e maçanetas de porta que pudemos desatarraxar e fugimos antes que o vigilante voltasse. Quando chegamos em casa, fomos retos para o porão e abrimos a sacola. A verdade é que longe do palacete, isoladas dos grandes lustres de cristal e daquelas portas trabalhadas, as lâmpadas e maçanetas tinham perdido todo o prestígio: vistas assim de perto, não passavam de maçanetas gastas. É de um monte de lâmpadas empoeiradas e que talvez não se acendessem nunca. Esfreguei na palma da mão a mais escura delas: e se fosse a lâmpada mágica de Aladim? O que eu pediria ao esfumaçado gênio de calças bufantes e argolas de ouro?

        — Depressa, gente, depressa! Tem um Papai Noel lá na loja do Samuel —anunciou o Marinho chegando quase sem fôlego.

        — Um Papai Noel de verdade? Na loja do Samuel? Deixe de mentira...

        — Mentira nada! Venham depressa que ele está lá com a barba branca, a roupa vermelha, juro que é verdade!

        — Um Papai Noel na loja do Samuel, a loja mais mambembe do bairro?

        — Se for mentira, você me paga — ameaçou o Polaquinho encostando o punho fechado no queixo do Marinho.

        — Quero ficar cego se estou mentindo!

        Esse mesmo juramento ele fazia quando contava as piores mentiras. Mas o fato é que já estávamos há muito tempo ali parados diante da sacola aberta, sem nos ocorrer um destino a dar àquilo tudo. Era preciso fazer outra coisa. Fomos atrás do Marinho, que ia falando na maior agitação, descrevendo o capuz vermelho, a bata debruada de algodão branco, como aparecia nas ilustrações. Quando dobramos a esquina, ficamos de boca aberta, olhando: lá estava ele de carne e osso, a sepavonear de um lado para outro sob o olhar radiante de Samuel, na porta da loja. Fomos nos aproximando devagar. Sacudindo um pequeno sino dourado, o Papai Noel alisava a barba postiça e dizia gracinhas ao filho de um tipo que parecia ter dinheiro.

         — Não quer encomendar nada a este Papai Noel? Vamos, queridinho, faça seu pedido... Uma bola? Um patinete?

        — Estou conhecendo esse cara — resmungou o Polaquinho apertando os olhos. — Já vi ele em algum lugar...

        Sentindo-se observado, o homem deu-nos as costas enquanto estendia a mão enluvada na direção do menino. Fizemos a volta até vê-lo de frente. Foi o bastante para o homem esquivar-se de novo, fingindo arrumar os brinquedos dependurados na porta. Essa segunda manobra alertou-nos. Fomos nos aproximando assim com ar de quem não estava querendo nada. O queixo e a boca não se podiam ver sob o emaranhado do algodão da barba. O gorro vermelho também escondia toda a cabeça. Mas, e aqueles ombros curvos e aquele jeito assim balanceado de andar?  Era um conhecido, sem dúvida. Mas quem? E por que nos evitava, por quê? Penso agora que se ele não tivesse disfarçado tanto, não teríamos desconfiado de nada: seria mais um Papai Noel como dezenas de outros que víamos andando pela cidade. Mas aquela preocupação de se esconder acabou por denunciá-lo. Ficamos na maior excitação: ele estava com medo. Nunca nos sentimos tão poderosos.

        — Esse filho-da-mãe é aqui do bairro — cochichou meu irmão. — Dou minha cabeça a cortar como ele é daqui do bairro.
Polaquinho olhava agora para os pés dele, para aqueles sapatos deformados sob as perneiras de oleado preto fingindo bota. Os sapatos! Aqueles sapatos velhos, sapatos de andarilho, eram a própria face do homem. Jamais sapato algum acabou por adquirir tão fielmente as feições do dono: era o pai de Maneco.

        — Marcolino!

        Ele voltou-se como se tivesse sido golpeado pelas costas.

        Desatamos a rir e a gritar, era o malandro do Marcolino fazendo de Papai Noel, era o Marcolino!...

        — Marcolino, eh! Marcolino!... Tira a barba, Marcolino!

        A alegria da descoberta nos fez delirantes, pulávamos e cantávamos aos gritos, fazendo roda, de mãos dadas, "Mar-co-li-no! Mar-co-li-no! Em vão ele tentou prosseguir representando o seu papel. Rompendo o frágil disfarce do algodão e dos panos, sentimos sua vergonha. Sua raiva. Duas velhas da casa vizinha abriram a janela e ficaram olhando e rindo.

        — Molecada suja! — gritou o Samuel saindo da loja. Sacudiu os punhos fechados. — Fora daqui seus ladrõezinhos! Fora!

        Fugimos. Para voltar em seguida mais exaltados, com Firpo que apareceu de repente correndo e latindo feito louco, investindo às cegas por entre nossas pernas. Gritávamos compassadamente, com todas as forças: — Mar-co-li-no! Mar-co-li-no!...Ele então arrancou a barba. Arrancou o gorro, arrancou a bata e atirou tudo no chão. Pôs-se a pisotear em cima, a pisotear tão furiosamente que o Samuel não pensou sequer em impedir, ficou só ali parado, olhando. E dessa vez o homem não tinha bebido, era raiva mesmo, uma raiva tamanha que chegou a nos assustar, quando vimos sua cara amarfanhada, branca. Em meio ao susto que nos fez calar, ocorreu-me pela primeira vez o quanto o Maneco era parecido com o pai quando ficava assim furioso, ah, eram iguais aqueles capacetes de cabelo desabando até as sobrancelhas negras. Quando se cansou de pular em cima da fantasia, foi-se embora naquele andar gingado, a fralda da camisa fora da calça, os sapatões esparramados. Samuel entrou de novo na loja. Fecharam-se as janelas. Firpo saiu correndo, levando a carapuça vermelha nos dentes, enquanto o vento espalhava o algodão da barba por todo o quarteirão. Polaquinho apanhou alguns fiapos e grudou-os com cuspe no queixo, mas ninguém achou graça. Voltamos à nossa sacola de maçanetas e lâmpadas. No dia seguinte, um outro Papai Noel mais baixo e mais gordo passeava diante da loja. Olhou-nos com ar ameaçador, mas seguimos firmes, esse nós não conhecíamos. Depois do jantar, meu irmão instalou-se em cima da árvore na calçada, diante da nossa casa. Abriu a folhagem e ficou olhando lá de cima.

        — Boca-de-forno!

        — Forno! — repetimos fazendo continência.

        — Fareis tudo o que o vosso mestre mandar?

        — Faremos com muito gosto!

        — Quero que vocês entrem no porão do Maneco, gritem duas vezes Mar-co-li-no! Mar-co-li-no! e voltem correndo. Já!

        Saímos em disparada pela rua afora. O portão do cortiço estava apenas cerrado. Duas pretas gordas conversavam refesteladas em cadeiras na calçada. Empurramos devagarinho a portinhola carcomida. Entramos. E paramos assustados no meio do porão de paredes encardidas e trastes velhos amontoados nos cantos. Sabíamos que eles eram pobres, mas assim desse jeito? Maneco estava sozinho, deitado num colchão com a palha saindo por entre os remendos. Mal teve tempo de esconder qualquer coisa debaixo do lençol. Tinha na mão uma tesoura, devia estar cortando o papel que escondeu. Brincadeira em que uma criança, o "mestre", distribui tarefas para as outras. Sob a luz débil da lamparina em cima do caixotinho ele me pareceu completamente amarelo, o cabelo negro mais crescido fechando-lhe a cara.

        — Seus traidores! — gritou com voz rouca. — Que é que vocês querem aqui, seus traidores! Traidores!

        Morreu na semana seguinte, foi essa a última vez que o vimos. Fomos saindo em silêncio e de cabeça baixa. Só eu olhei ainda para trás. Ele fungava por entre as lágrimas enquanto procurava esconder debaixo do lençol a ponta de uma estrela de papel prateado.

Lygia Fagundes Telles.

Entendendo o conto:

01 – Quem é o protagonista do conto?

      O protagonista é uma criança narradora, não especificamente nomeada.

02 – Qual é o problema principal enfrentado pelos personagens no conto?

      Eles enfrentam dificuldades financeiras e tentam organizar um presépio para ganhar dinheiro, mas as coisas não saem como planejado.

03 – Quem é Maneco?

      Maneco é o filho de Marcolino, um vagabundo do bairro, e ele se envolve com as crianças na tentativa de fazer um presépio.

04 – Por que o cinema no porão da casa não foi bem-sucedido?

      O Pedro Piolho e outros meninos começaram a reclamar durante a exibição, causando tumulto, o que levou à interrupção da sessão.

05 – O que os personagens tentam fazer para arrecadar dinheiro no período de Natal?

      Eles tentam organizar um presépio com entrada paga para ganhar dinheiro.

06 – Como os personagens descobrem a identidade do Papai Noel na loja do Samuel?

      Eles reconhecem que o Papai Noel disfarçado é na verdade o pai de Maneco, Marcolino, devido aos sapatos que ele usa.

07 – Por que o Marcolino se disfarça de Papai Noel?

      Não é explicitamente mencionado no conto, mas provavelmente é uma tentativa de ganhar dinheiro durante a temporada de Natal.

08 – Qual é a reação das crianças ao descobrir a identidade do Papai Noel?

      Eles começam a gritar o nome de Marcolino e riem dele, fazendo-o tirar o disfarce.

09 – O que acontece com Maneco no desfecho do conto?

      Ele morre na semana seguinte após a última interação com as crianças, tentando esconder a ponta de uma estrela de papel prateado debaixo do lençol.

10 – Como o conto retrata a visão das crianças sobre o Natal e a figura do Papai Noel?

      Mostra que as crianças têm uma mistura de crença e desconfiança em relação ao Papai Noel, sabendo que é uma invenção, mas ao mesmo tempo se envolvendo nas tradições e expectativas natalinas.

sábado, 14 de maio de 2022

CONTO: NATAL NA BARCA - LYGIA FAGUNDES TELLES - COM GABARITO

 Conto: Natal na Barca

            Lygia Fagundes Telles

        Não quero nem devo lembrar aqui por que me encontrava naquela barca. Só sei que em redor tudo era silêncio e treva. E que me sentia bem naquela solidão. Na embarcação desconfortável, tosca, apenas quatro passageiros. Uma lanterna nos iluminava com sua luz vacilante: um velho, uma mulher com uma criança e eu.

        O velho, um bêbado esfarrapado, deitara-se de comprido no banco, dirigira palavras amenas a um vizinho invisível e agora dormia. A mulher estava sentada entre nós, apertando nos braços a criança enrolada em panos. Era uma mulher jovem e pálida. O longo manto escuro que lhe cobria a cabeça dava-lhe o aspecto de uma figura antiga.

        Pensei em falar-lhe assim que entrei na barca. Mas já devíamos estar quase no fim da viagem e até aquele instante não me ocorrera dizer-lhe qualquer palavra. Nem combinava mesmo com uma barca tão despojada, tão sem artifícios, a ociosidade de um diálogo. Estávamos sós. E o melhor ainda era não fazer nada, não dizer nada, apenas olhar o sulco negro que a embarcação ia fazendo no rio.

        Debrucei-me na grade de madeira carcomida. Acendi um cigarro. Ali estávamos os quatro, silenciosos como mortos num antigo barco de mortos deslizando na escuridão. Contudo, estávamos vivos. E era Natal.

        A caixa de fósforos escapou-me das mãos e quase resvalou para o. rio. Agachei-me para apanhá-la. Sentindo então alguns respingos no rosto, inclinei-me mais até mergulhar as pontas dos dedos na água.

        — Tão gelada — estranhei, enxugando a mão.

        — Mas de manhã é quente.

        Voltei-me para a mulher que embalava a criança e me observava com um meio sorriso. Sentei-me no banco ao seu lado. Tinha belos olhos claros, extraordinariamente brilhantes. Reparei que suas roupas (pobres roupas puídas) tinham muito caráter, revestidas de uma certa dignidade.

        — De manhã esse rio é quente — insistiu ela, me encarando.

        — Quente?

        — Quente e verde, tão verde que a primeira vez que lavei nele uma peça de roupa pensei que a roupa fosse sair esverdeada. É a primeira vez que vem por estas bandas?

        Desviei o olhar para o chão de largas tábuas gastas. E respondi com uma outra pergunta:

        — Mas a senhora mora aqui perto?

        — Em Lucena. Já tomei esta barca não sei quantas vezes, mas não esperava que justamente hoje…

        A criança agitou-se, choramingando. A mulher apertou-a mais contra o peito. Cobriu-lhe a cabeça com o xale e pôs-se a niná-la com um brando movimento de cadeira de balanço. Suas mãos destacavam-se exaltadas sobre o xale preto, mas o rosto era sereno.

        — Seu filho?

        — É. Está doente, vou ao especialista, o farmacêutico de Lucena achou que eu devia ver um médico hoje mesmo. Ainda ontem ele estava bem mas piorou de repente. Uma febre, só febre… Mas Deus não vai me abandonar.

        — É o caçula?

        Levantou a cabeça com energia. O queixo agudo era altivo mas o olhar tinha a expressão doce.

        — É o único. O meu primeiro morreu o ano passado. Subiu no muro, estava brincando de mágico quando de repente avisou, vou voar! E atirou-se. A queda não foi grande, o muro não era alto, mas caiu de tal jeito…

        Tinha pouco mais de quatro anos.

        Joguei o cigarro na direção do rio e o toco bateu na grade, voltou e veio rolando aceso pelo chão. Alcancei-o com a ponta do sapato e fiquei a esfregá-lo devagar. Era preciso desviar o assunto para aquele filho que estava ali, doente, embora. Mas vivo.

        — E esse? Que idade tem?

        — Vai completar um ano. — E, noutro tom, inclinando a cabeça para o ombro: — Era um menino tão alegre. Tinha verdadeira mania com mágicas. Claro que não saía nada, mas era muito engraçado… A última mágica que fez foi perfeita, vou voar! disse abrindo os braços. E voou.

        Levantei-me. Eu queria ficar só naquela noite, sem lembranças, sem piedade. Mas os laços (os tais laços humanos) já ameaçavam me envolver. Conseguira evitá-los até aquele instante. E agora não tinha forças para rompê-los.

        — Seu marido está à sua espera?

        — Meu marido me abandonou.

        Sentei-me e tive vontade de rir. Incrível. Fora uma loucura fazer a primeira pergunta porque agora não podia mais parar, ah! aquele sistema dos vasos comunicantes.

        — Há muito tempo? Que seu marido…

        — Faz uns seis meses. Vivíamos tão bem, mas tão bem. Foi quando ele encontrou por acaso essa antiga namorada, me falou nela fazendo uma brincadeira, a Bila enfeiou, sabe que de nós dois fui eu que acabei ficando mais bonito? Não tocou mais no assunto. Uma manhã ele se levantou como todas as manhãs, tomou café, leu o jornal, brincou com o menino e foi trabalhar. Antes de sair ainda fez assim com a mão, eu estava na cozinha lavando a louça e ele me deu um adeus através da tela de arame da porta, me lembro até que eu quis abrir a porta, não gosto de ver ninguém falar comigo com aquela tela no meio… Mas eu estava com a mão molhada. Recebi a carta de tardinha, ele mandou uma carta. Fui morar com minha mãe numa casa que alugamos perto da minha escolinha. Sou professora.

        Olhei as nuvens tumultuadas que corriam na mesma direção do rio. Incrível. Ia contando as sucessivas desgraças com tamanha calma, num tom de quem relata fatos sem ter realmente participado deles. Como se não bastasse a pobreza que espiava pelos remendos da sua roupa, perdera o filhinho, o marido, via pairar uma sombra sobre o segundo filho que ninava nos braços. E ali estava sem a menor revolta, confiante. Apatia? Não, não podiam ser de uma apática aqueles olhos vivíssimos, aquelas mãos enérgicas. Inconsciência? Uma certa irritação me fez andar.

        — A senhora é conformada.

        — Tenho fé, dona. Deus nunca me abandonou.

        — Deus — repeti vagamente.

        — A senhora não acredita em Deus?

        — Acredito — murmurei. E ao ouvir o som débil da minha afirmativa, sem saber por quê, perturbei-me. Agora entendia. Aí estava o segredo daquela segurança, daquela calma. Era a tal fé que removia montanhas…

        Ela mudou a posição da criança, passando-a do ombro direito para o esquerdo. E começou com voz quente de paixão:

        — Foi logo depois da morte do meu menino. Acordei uma noite tão desesperada que saí pela rua afora, enfiei um casaco e saí descalça e chorando feito louca, chamando por ele! Sentei num banco do jardim onde toda tarde ele ia brincar. E fiquei pedindo, pedindo com tamanha força, que ele, que gostava tanto de mágica, fizesse essa mágica de me aparecer só mais uma vez, não precisava ficar, se mostrasse só um instante, ao menos mais uma vez, só mais uma! Quando fiquei sem lágrimas, encostei a cabeça no banco e não sei como dormi. Então sonhei e no sonho Deus me apareceu, quer dizer, senti que ele pegava na minha mão com sua mão de luz. E vi o meu menino brincando com o Menino Jesus no jardim do Paraíso. Assim que ele me viu, parou de brincar e veio rindo ao meu encontro e me beijou tanto, tanto… Era tamanha sua alegria que acordei rindo também, com o sol batendo em mim.

        Fiquei sem saber o que dizer. Esbocei um gesto e em seguida, apenas para fazer alguma coisa, levantei a ponta do xale que cobria a cabeça da criança. Deixei cair o xale novamente e voltei-me para o rio. O menino estava morto. Entrelacei as mãos para dominar o tremor que me sacudiu. Estava morto. A mãe continuava a niná-lo, apertando-o contra o peito. Mas ele estava morto.

        Debrucei-me na grade da barca e respirei penosamente: era como se estivesse mergulhada até o pescoço naquela água. Senti que a mulher se agitou atrás de mim

        — Estamos chegando — anunciou.

        Apanhei depressa minha pasta. O importante agora era sair, fugir antes que ela descobrisse, correr para longe daquele horror. Diminuindo a marcha, a barca fazia uma larga curva antes de atracar. O bilheteiro apareceu e pôs-se a sacudir o velho que dormia:

        – Chegamos!… Ei! chegamos!

        Aproximei-me evitando encará-la.

        — Acho melhor nos despedirmos aqui — disse atropeladamente, estendendo a mão.

        Ela pareceu não notar meu gesto. Levantou-se e fez um movimento como se fosse apanhar a sacola. Ajudei-a, mas ao invés de apanhar a sacola que lhe estendi, antes mesmo que eu pudesse impedi-lo, afastou o xale que cobria a cabeça do filho.

        — Acordou o dorminhoco! E olha aí, deve estar agora sem nenhuma febre.

        — Acordou?!

        Ela sorriu:

        — Veja…

        Inclinei-me. A criança abrira os olhos — aqueles olhos que eu vira cerrados tão definitivamente. E bocejava, esfregando a mãozinha na face corada. Fiquei olhando sem conseguir falar.

        — Então, bom Natal! — disse ela, enfiando a sacola no braço.

        Sob o manto preto, de pontas cruzadas e atiradas para trás, seu rosto resplandecia. Apertei-lhe a mão vigorosa e acompanhei-a com o olhar até que ela desapareceu na noite.

        Conduzido pelo bilheteiro, o velho passou por mim retomando seu afetuoso diálogo com o vizinho invisível. Saí por último da barca. Duas vezes voltei-me ainda para ver o rio. E pude imaginá-lo como seria de manhã cedo: verde e quente. Verde e quente.

TELLES, Lygia Fagundes. Contos brasileiros 2. São Paulo: Ática, 2002.

Fonte: Livro – Viva Português 2° – Ensino médio – Língua portuguesa – 1ª edição 1ª impressão – São Paulo – 2011. Ed. Ática. p. 113-7.

Entendendo o conto:

01 – Releia os quatro primeiros parágrafos do conto. Em que estado se encontra a narradora-personagem no início da história?

      Ela está só e sente-se bem nessa solidão.

02 – A narradora parece disposta a estabelecer algum tipo de contato com a outra passageira? Copie trechos do conto que justifiquem sua resposta.

      Não, ela não parece disposta a estabelecer contato. “Pensei em falar-lhe assim que entrei na barca. Mas já devíamos estar quase no fim da viagem e até aquele instante não me ocorrera dizer-lhe qualquer palavra. Nem combinava mesmo com uma barca tão despojada, tão sem artifícios, a ociosidade de um diálogo. Estávamos sós. E o melhor ainda era não fazer nada, não dizer nada, [...]”.

03 – Releia:

        “Levantei-me. Eu queria ficar só naquela noite, sem lembranças, sem piedade. Mas os laços (os tais laços humanos) já ameaçavam me envolver. Conseguira evitá-los até aquele instante. E agora não tinha forças para rompê-los.”

a)   Quais são “os tais laços humanos” a que a narradora se refere?

São os vínculos afetivos que se estabelecem entre as pessoas levando-as a compartilhar sentimentos e, também, a preocuparem-se umas com as outras, a sentirem piedade, etc.

b)   Que motivos poderiam levar a narradora a querer evitar os laços humanos?

Pode-se pensar que a narradora tenha passado por algo que a tenha desgastado emocionalmente, deixando-a esvaziada dos recursos internos que permitem a uma pessoa ter piedade e solidarizar-se com outra sem sucumbir ao sofrimento alheio.

04 – A narradora se surpreende com a reação da mulher às desgraças que vivera.

a)   O que a narradora acha mais surpreendente na forma como a mulher encara seus sofrimentos?

Ela surpreende-se com a calma, a ausência de revolta, a confiança, a fé na religião.

b)   O que essa surpresa revela sobre o modo como a própria narradora enxerga os eventos da vida?

Provavelmente ela mesma não é uma pessoa que aceita com calma e confiança os sofrimentos e as dificuldades da vida.

c)   Em relação à forma de encarar as dificuldades da vida, as duas personagens são opostas. Explique essa oposição.

A mulher com a criança enxerga a vida positivamente, tem esperanças, acredita em Deus. A narradora é mais negativa, mais cética, menos confiante.

05 – Outras oposições marcam a construção desse conto, algumas evidenciadas nos acontecimentos, outras simbólicas. Releia:

        “[...] Ali estávamos os quatro, silenciosos como mortos num antigo barco de mortos deslizando na escuridão. Contudo, estávamos vivos. E era Natal.”

a)   Esse trecho fala da mesma oposição que a autora apresenta no título do conto. Que posição é essa?

A oposição entre vida (“estávamos vivos. E era Natal”) e morte (“como mortos num antigo barco de mortos”).

b)   Essa oposição é recuperada por um extremamente significado no conto e que tem início quando a narradora levanta o xale que cobre o bebê. Que evento é esse?

A narradora acredita que o menino está morto, fica aflita e deseja se afastar. Chegando ao destino, porém, a moça mostra o filho vivo, acordado e corado.

06 – Antes da conversa com a mulher, a paisagem que a narradora descreve é escura e fria. Veja:

        “[...] Ali estávamos os quatro, silenciosos como mortos num antigo barco de mortos deslizando na escuridão. [...]”.

        “[...] Sentindo então alguns respingos no rosto, inclinei-me mais até mergulhar as pontas dos dedos na água.

        — Tão gelada — estranhei, enxugando a mão.”

Compare com o final do conto:

        “[...] Duas vezes voltei-me ainda para ver o rio. E pude imaginá-lo como seria de manhã cedo: verde e quente. Verde e quente.”.

Se o escuro e o frio podem ser associados à morte (ausência de luz e de calor) e se no final do conto a narradora já consegue imaginar o rio verde e quente, por qual transformação podemos dizer que ela passou?

      Podemos interpretar a transformação da personagem como uma espécie de renascimento para a vida ou para a esperança, ideia reforçada por outros elementos do conto.

 

 

 

 

domingo, 27 de setembro de 2020

CONTO: O ENCONTRO - LYGIA FAGUNDES TELLES - COM GABARITO

 Conto:  O encontro

                      Lygia Fagundes Telles

  Em redor, o vasto campo. Mergulhado em névoa branda, o verde era pálido e opaco. Contra o céu, erguiam-se os negros penhascos tão retos que pareciam recortados a faca. Espetado na ponta da pedra mais alta, o sol espiava através de uma nuvem.

“Onde, meu Deus?! - perguntava a mim mesma - Onde vi esta mesma paisagem, numa tarde assim igual?”

Era a primeira vez que eu pisava naquele lugar. Nas minhas andanças pelas redondezas, jamais fora além do vale. Mas nesse dia, sem nenhum cansaço, transpus a colina e cheguei ao campo. Que calma! E que desolação. Tudo aquilo - disso estava bem certa - era completamente inédito para mim. Mas por que então o quadro se identificava, em todas as minúcias, a uma imagem semelhante lá nas profundezas de minha memória? Voltei-me para o bosque que se estendia à minha direita. Esse bosque eu também já conhecera com sua folhagem cor de brasa dentro de uma névoa dourada. “Já vi tudo isto, já vi... Mas onde? E quando?”

Fui andando em direção aos penhascos. Atravessei o campo. E cheguei à boca do abismo cavado entre as pedras.

Um vapor denso subia, como um hálito daquela garganta de cujo fundo insondável, vinha um remotíssimo som de água corrente. Àquele som eu também conhecia. Fechei os olhos. “Mas se nunca estive aqui! Sonhei, foi isso? Percorri em sonho estes lugares e agora os encontro, palpáveis, reais? Por uma dessas extraordinárias coincidências teria eu antecipado aquele passeio enquanto dormia?”

Sacudi a cabeça, não, a lembrança - tão antiga quanto viva - escapava da inconsistência de um simples sonho. Ainda uma vez fixei o olhar no campo enevoado, nos penhascos enxutos. A tarde estava silenciosa e quieta. Contudo, por detrás daquele silêncio, no fundo daquela quietude eu sentia qualquer coisa de sinistro. Voltei-me para o sol que sangrava como um olho empapando de vermelho a nuvenzinha que o cobria. Invadiu-me a obscura sensação de estar próxima de um perigo. Mas que perigo era esse e em que consistia?

Dirigi-me ao bosque. E se fugisse? Seria fácil fugir, não? Meu coração se apertou, inquieto. Fácil, sem dúvida, mas eu prosseguia implacável como se não restasse mesmo outra coisa a fazer senão avançar. “Vá-se embora depressa, depressa!” - a razão ordenava enquanto uma parte do meu ser, mergulhada numa espécie de encantamento, se recusava a voltar.

Uma luz dourada filtrava-se por entre a folhagem do bosque que parecia petrificado. Não havia a menor brisa soprando por entre as folhas enrijecidas, numa tensão de expectativa.

“A expectativa está só em mim” - pensei, triturando entre os dedos uma folha avermelhada. Veio-me então a certeza absoluta de já ter feito várias vezes esse gesto enquanto pisava naquele -mesmo chão que arfava sob os meus sapatos. Enveredei por entre as árvores. - “E nunca estive aqui, nunca estive aqui” - fui repetindo a aspirar o cheiro frio da terra. Encostei-me a um tronco e por entre uma nesga da folhagem vislumbrei o céu pálido. Era como se o visse pela última vez.

“A cilada” - pensei diante de uma teia que brilhava suspensa entre dois galhos. No centro, a aranha. Aproximei-me: era uma aranha ruiva e atenta, à espera. Sacudi violentamente o galho e desfiz a teia que pendeu em farrapos. Olhei em redor, assombrada. E a teia para a qual eu caminhava, quem? quem iria desfaze-la? Lembrei-me do sol, lúcido como a aranha. Então enfurnei as mãos nos bolsos, endureci os maxilares e segui pela vereda.

“Agora vou encontrar uma pedra fendida ao meio.” E cheguei a rir, entretida com aquele estranho jogo de reconhecimento: lá estava a grande pedra golpeada, com tufos de erva brotando na raiz da fenda. “Se for agora por este lado, vou encontrar um regato.” Apressei-me. O regato estava seco mas os pedregulhos limosos indicavam que provavelmente na próxima primavera a água voltaria a correr por ali.

Apanhei um pedregulho. Não, não estava sonhando. Nem podia ter sonhado, mas em que sonho podia caber uma paisagem tão minuciosa? Restava ainda uma hipótese: e se eu estivesse sendo sonhada? Perambulava pelo sonho de alguém, mais real do que se estivesse vivendo. Por que não? Daí o fato estranhíssimo de reconhecer todos os segredos do bosque, segredos que eram apenas do conhecimento da pessoa que me captara em seu sonho. “Faço parte de um sonho alheio” - disse e espetei um espinho no dedo. Gracejava mas a verdade é que crescia minha inquietação: “se for prisioneira de um sonho, agora escapo.” Uma gota de sangue escorreu pela minha mão, a dor tão real quanto a paisagem.

Um pássaro cruzou meu caminho num voo tumultuado. O grito que soltou foi tão dolorido que cheguei a vacilar num desfalecimento, e se fugisse? E se fugisse? Voltei-me para o caminho percorrido, labirinto sem - esperança. “Agora é tarde!” - murmurei e minha voz avivou em mim um último impulso de fuga. “Por que tarde?”

A folha que resvalou pela minha cabeça era a seca advertência que colhi no ar e fechei na mão, que eu não buscasse esclarecer o mistério, que não pedisse explicações para o absurdo daquela tarde tão inocente na sua aparência. Tinha apenas que aceitar o inexplicável até que o nó se desatasse, na hora exata.

Enveredei por entre dois carvalhos. Ia de cabeça baixa, o coração pesado mas as passadas eram enérgicas, impelida por uma energia que não sabia de onde vinha. “Agora vou encontrar uma fonte. Sentada ao lado, está uma moça.”

Ao lado da fonte, estava a moça vestida com um estranho traje de amazona. Tinha no rosto muito branco uma expressão tão ansiosa que era evidente estar à espera de alguém. Ao ouvir meus passos, animou-se para cair em seguida no maior desalento.

Aproximei-me. Ela lançou-me um olhar desinteressado e cruzou as mãos no, regaço.

- Pensei que fosse outra pessoa, estou esperando uma pessoa...

Sentei-me numa pedra verde de musgo, olhando em silêncio seu traje completamente antiquado: vestia uma jaqueta de veludo preto e uma extravagante saia rodada que lhe chegava até a ponta das botinhas de amarrar. Emergindo da gola alta da jaqueta destacava-se a gravata de renda branca, presa com um broche de ouro em forma de bandolim. Atirado no chão, aos seus pés, o chapéu de veludo com uma pluma vermelha.

Fixei-me naquela fisionomia devastada. “Já vi esta moça, mas onde foi? E quando?...” Dirigi-me a ela sem o menor constrangimento, como se a conhecesse há muitos anos.

- Você mora aqui perto?

- Em Valburgo - respondeu sem levantar a cabeça.

Mergulhara tão profundamente nos próprios pensamentos, que parecia desligada de tudo, aceitando minha presença sem nenhuma surpresa, não notando sequer o disparatado contraste de nossas roupas. Devia ter chorado. E agora ali estava numa patética exaustão, as mãos abandonadas no regaço, alguns anéis de cabelo caindo pelo rosto. Nunca criatura alguma me pareceu tão desesperada, tão tranquilamente desesperada, se é que cabia tranquilidade no desespero. Perdera toda a esperança e decidira resignar-se. Mas sentia-se a fragilidade naquela resignação.

- Valburgo, Valburgo... - fiquei repetindo. O nome não me era desconhecido. E não me lembrava de nenhum lugar com esse nome em toda aquela região.

- Fica logo depois do vale. Não conhece Valburgo?

- Conheço - respondi prontamente. Tinha agora a certeza de que esse lugar não existia mais.

Com um gesto indiferente, ela tentou prender o cabelo que desabava do penteado alto. Afrouxou ansiosamente o laço da gravata, como se lhe faltasse o ar. O bandolim de ouro pendeu, repuxando a renda. “Esse broche... Mas já não vi esse mesmo broche nessa mesma gravata?!”

- Eu esperava uma pessoa - disse com esforço, voltando o olhar dolorido para o cavalo preso a um tronco.

- Gustavo?

Esse nome escapou-me com tamanha espontaneidade que me assustei, era como se estivesse sempre em minha boca, aguardando aquele instante para ser dito.

- Gustavo - repetiu ela e sua voz era um eco. Gustavo.

Encarei-a. Mas por que ele não tinha vindo? “E nem virá, nunca mais. Nunca mais.”

Fixei obstinadamente o olhar naquela desconcertante personagem de um antiquíssimo álbum de retratos. Álbum que eu já folheara muitas vezes, muitas. Pressentia agora um drama com cenas entremeadas de discussões tão violentas, lágrimas. A cena esboçou-se esfamadamente nas minhas raízes, cena que culminou naquela noite das vozes exasperadas. De homens. De inimigos. Alguém fechou as janelas da pequena sala frouxamente iluminada por um candelabro. Procurei distinguir o que diziam quando através da vidraça embaçada vi delinear-se a figura de um velho magro, de sobrecasaca preta, batendo furiosamente a mão espalmada na mesa enquanto parecia dirigir-se a uma máscara de cera que flutuava na penumbra.

Moveu-se a máscara entrando na zona de luz. Gustavo! Era Gustavo. A mão do velho continuou batendo na mesa e eu não podia me despregar dessa mão tão familiar com suas veias azuis se enroscando umas nas outras numa rede de fúria. Nos punhos de renda de sua camisa destacavam-se com uma nitidez atrozos rubis de suas abotoaduras. Um dos homens avançou. Foi Gustavo? Ou o velho? A garrucha avançou também e a cena explodiu em, meio de um clarão. Antes do negrume total vi por último as -abotoaduras brilhando irregulares como gotas de sangue.

Senti o coração confranger-se de espanto, “quem foi que atirou, quem foi?!” Apertei os nós dos dedos contra os olhos. -Era quase insuportável a violência com que o sangue me golpeava as fontes.

- Você devia voltar para casa.

- Que casa? - perguntou ela abrindo as mãos.

Olhei para suas mãos. Subi o olhar até seu rosto e fiquei sem saber o que dizer: era parecidíssima com alguém que eu conhecia tanto.

- Por que não vai procurá-lo? - lembrei-me de perguntar. Mas não esperei resposta. A verdade é que ela também suspeitava de que estava tudo acabado.

Escurecia. Uma névoa roxa - e que eu não sabia se vinha do céu ou do chão - parecia envolvê-la numa aura. Achei-a impregnada da mesma falsa calmaria da paisagem.

- Vou-me embora - disse apanhando o chapéu.

Sua voz chegou-me aos ouvidos bastante próxima. Mas singularmente longínqua. Levantei-me. Nesse instante, soprou um vento gelado com tamanha força que me vi enrolada numa verdadeira nuvem de folhas secas e poeira. A ramaria vergou num descabelamento desatinado. Verguei também tapando a cara com as mãos. Quando consegui abrir os olhos ela já estava montada. O mesmo vento que despertara o bosque, com igual violência arrancou-a daque­la apatia: palpitava em cima do cavalo tão elétrico quanto as folhas vermelhas rodopiando em redor. Espicaçado, o animal batia com os cascos nos pedregulhos, desgrenhado, indócil. Quis retê-la..

- Há ainda uma coisa!

Ela então voltou-se para mim. A pluma vermelha de seu chapéu debatia-se como uma labareda em meio da ventania. Seus olhos eram agora dois furos na face de um tom acinzentado de pedra.

- Há ainda uma coisa - repeti agarrando as rédeas do cavalo. Ela arrancou as rédeas das minhas mãos e chicoteou o cavalo. Recuei. Aquela chicotada atingiu em cheio o mistério. Desatou-se o nó na explosão da tempestade. Meus cabelos se eriçaram. Era comigo que ela se parecia! Aquele rosto era o meu.

- Eu fui você - balbuciei. - Num outro tempo eu fui você! - quis gritar e minha voz saiu despedaçada. Tão simples tudo, por que só agora entendi?... O bosque, a aranha, o bandolim de ouro pendendo da gravata, a pluma do chapéu, aquela pluma que minhas mãos tantas vezes alisaram... E Gustavo? Estremeci. Gustavo! A saleta esfumaçada, se fez nítida. Lembrei-me do que tinha acontecido. E do que ia acontecer.

- Não! - gritei, puxando de novo as rédeas. Um raio chicoteou o bosque com a mesma força com que ela chicoteou o cavalo. Ele empinou, imenso, negro, os olhos saltados, arrancando-se das minhas mãos. Estatelada, vi-o fugir por entre as árvores.

Fui atrás. O vento me cegava. Espinhos me esfrangalhavam a roupa. Mas eu corria, corria alucinadamente na tentativa de impedir o que já sabia inevitável. Guiava-me a pluma vermelha que ora desaparecia, ora ressurgia por entre as árvores, flamejante na escuridão. Por duas vezes senti o cavalo tão próximo que poderia tocá-lo se estendesse a mão. Depois o galope foi se apagando até ficar apenas o uivo do vento.

Assim que atingi o campo, desabei de joelhos. Um relâmpago estourou e por um segundo, por um brevíssimo segundo, consegui vislumbar ao longe a pluma debatendo-se ainda. Então gritei, gritei com todas as forças que me restavam. E tapei os ouvidos para não ouvir o eco de meu grito misturar-se ao ruído pedregoso de cavalo e cavaleira se despencando no abismo.

 

ENTENDENDO O CONTO

 1)   O texto “O Encontro” é um texto:

(A) poético.

(B) narrativo.

(C) jornalístico.

(D) dissertativo.

(E) descritivo.

 

    2) Na frase ―Já vi tudo isso, já vi...Mas onde?, o uso das reticências sugere

       (A) impaciência.

       (B) impossibilidade.

       (C) incerteza.

       (D) irritação.

 

   3)  No trecho, ―Mas por que então o quadro se identificava, em todas as minúcias, a uma imagem semelhante lá nas profundezas da minha memória? o termo destacado significa

       (A) colina.

       (B) detalhes.

       (C) partes.

       (D) redondeza.

 

4) Como o leitor é inserido nessa história?

       Por meio da descrição do ambiente pela visão da própria protagonista.

 

5) Cite um trecho que mostra o modo como a protagonista vê e precebe a paisagem ao seu redor.

       “[...] os negros penhascos tão retos que pareciam retos que pareciam recortados a faca. Espetado na ponta da pedra mais alta, o sol espiava através de uma nuvem.” (TELLES, 1998, p.69)

 

6) Como a autora narra a história?

     Narra em detalhes o que acontece com ela... é uma narrativa fantástica, cheia de realidade e sonhos.

 

7) Cite alguns versos onde ocorre a figura de linguagem de personificação.

     “...Voltei-me para o sol que sangrava...”

     “A tarde estava silenciosa e quieta”.

     “...E cheguei à boca do abismo cavado entre as pedras.”

        8) No decorrer da narrativa, a personagem-protagonista cria uma espécie de jogo do reconhecimento de que forma?

             Através de uma tensão entre a possiblidade de a personagem estar prevendo o futuro(previsões) ou lembrando-se do passado(reminiscência). Muitas são as previsões (ou seriam lembranças?) que a personagem faz.

 

       9) Qual é o ponto alto dessa narrativa?

            O momento do encontro da personagem com seu duplo e do reconhecimento do seu eu em um outro, em que a personagem descobre o porquê da familiarização com o lugar e com a moça de traje antiquado.

 

     10) Que trecho revela que a protagonista entende tudo que estava acontecendo?

           “...tão simples tudo, por que só agora entendi? (...) lembrei-me do que tinha acontecido e do ia acontecer”.