domingo, 5 de maio de 2019

ROMANCE: SÃO BERNARDO 2 - (FRAGMENTO) - GRACILIANO RAMOS - COM GABARITO

Romance: São Bernardo 2 – (Fragmento)     
                  Graciliano Ramos

        Conheci que Madalena era boa em demasia, mas não conheci tudo de uma vez. Ela se revelou pouco a pouco, e nunca se revelou inteiramente. A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida agreste, que me deu uma alma agreste.
        E, falando assim, compreendo que perco o tempo. Com efeito, se me escapa o retrato moral de minha mulher, para que serve esta narrativa? Para nada, mas sou forçado a escrever.
        Quando os grilos cantam, sento-me aqui à mesa da sala de jantar, bebo café, acendo o cachimbo. Às vezes as ideias não vêm, ou vêm muito numerosas – e a folha permanece meio escrita, como estava na véspera. Releio algumas linhas, que me desagradam. Não vale a pena tentar corrigi-las. Afasto o papel.
        Emoções indefiníveis me agitam – inquietação terrível, desejo doido de voltar, tagarelar novamente com Madalena, como fazíamos todos os dias, a esta hora. Saudade? Não, não é isto: é desespero, raiva, um peso enorme no coração.
        Procuro recordar o que dizíamos. Impossível. As minhas palavras eram apenas palavras, e as dela tinham alguma coisa que não consigo exprimir. Para senti-las melhor, eu apagava as luzes, deixava que a sombra nos envolvesse até ficarmos dois vultos indistintos na escuridão.
        Lá fora os sapos arengavam, o vento gemia, as árvores do pomar tornavam-se massas negras.
        -- Casimiro!
        Cassimiro Lopes estava no jardim, acocorado ao pé da janela, vigiando.
        -- Casimiro!
        A figura de Cassimiro Lopes aparece à janela, os sapos gritam, o vento sacode as árvores, apenas visíveis na treva. Maria das Dores entra e vai abrir o comutador. Detenho-a: não quero luz.
        O tique-taque do relógio diminui, os grilos começam a cantar. E Madalena surge no lado de lá da mesa. Digo baixinho:
        -- Madalena!
        A voz dela me chega aos ouvidos. Não, não é aos ouvidos. Também já não a vejo com os olhos.
        Estou encostado à mesa, as mãos cruzadas. Os objetos fundiram-se, e não enxergo sequer a toalha branca.
        -- Madalena...
        A voz de Madalena continua a acariciar-me. Que diz ela? Pede-me naturalmente que mande algum dinheiro a mestre Caetano. Isto me irrita, mas a irritação é diferente das outras, é uma irritação antiga, que me deixa inteiramente calmo. Loucura estar uma pessoa ao mesmo tempo zangada e tranquila. Mas estou assim. Irritado contra quem? Contra mestre Caetano. Não Obstante ele ter morrido, acho bom que vá trabalhar. Mandrião!
        A toalha reaparece, mas não sei se é esta toalha sobre que tenho as mãos cruzadas ou a que estava aqui há cinco anos.
        Rumor do vento, dos sapos, dos grilos. A porta do escritório abre-se de manso, os passos de seu Ribeiro afastam-se. Uma coruja pia na torre da igreja. Terá realmente piado a coruja? Será a mesma que piava há dois anos? Talvez seja até o mesmo pio daquele tempo.
      Agora seu Ribeiro está conversando com Dona Glória no salão. Esqueço que eles me deixaram e que esta casa está quase deserta.
        -- Casimiro!
        Penso que chamei Casimiro Lopes. A cabeça dele, com o chapéu de couro de sertanejo, assoma de quando em quando à janela, mas ignoro se a visão que me dá é atual ou remota.
        Agitam-se em mim sentimentos inconciliáveis: encolerizo-me e enterneço-me; bato na mesa e tenho vontade de chorar.

                                   São Bernardo. Rio de Janeiro, Record, 1983.

Entendendo o romance:
01 – De acordo com o texto, o que significa as palavras abaixo:
·        Arengar: discursar.
·        Mandrião: preguiçoso, vadio.
·        Assomar: aparecer.

02 – Nessa passagem de São Bernardo, o narrador-personagem, Paulo Honório, sente-se bloqueado para continuar sua história e, ao mesmo tempo, não consegue parar de escrever. Na sua opinião:
a)   Por que não consegue prosseguir?
Por lhe escapar o retrato moral de sua mulher, Madalena.

b)   Por que não consegue parar?
Por um estado emocional pesado e confuso, repleto de lembranças que precisam se externar.

03 – Que frase do texto sintetiza o sentimento de culpa de Paulo Honório?
      “A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida agreste, que me deu uma alma agreste.”

04 – De acordo com o texto:
a)   Do que Paulo Honório sente-se culpado?
Paulo Honório sente-se culpado por não ter compreendido Madalena e por ter provocado o seu suicídio.

b)   Que características de Paulo Honório apontam sua culpabilidade, tendo em vista as diferenças entre ele e Madalena? Cite uma passagem do texto que exemplifique sua resposta.
O autoritarismo e a prepotência, diante da bondade e da solidariedade de Madalena. Uma passagem do texto que exemplifica esta resposta é a referência a mestre Caetano, a quem ela lhe pede que ajude, mas que ele manda trabalhar.

c)   No trecho onde se encontra a referência a mestre Caetano, há fragmentos que indicam a confusão mental do narrador-personagem, perdido entre o passado e o presente, entre reafirmar o seu autoritarismo e reconhecer-lhe a estupidez. Identifique esses fragmentos.
Paulo Honório se diz irritado, mas é uma “irritação antiga”, que o deixa “inteiramente calmo”. Em seguida diz que, embora mestre Caetano tenha morrido, acha “bom que vá trabalhar”.

05 – Ao longo do texto, qual a função das menções à noite, ao barulho dos sapos, ao vento sacudindo as árvores e ao pio da coruja, enfim, aos elementos da natureza, tendo em vista o caráter de rememoração da narrativa de Paulo Honório?
      A função das menções aos elementos da natureza é trazer o passado ao presente, fazer com que aquele reapareça por meio da reprodução mental dos mesmos rumores, da mesma atmosfera, vivenciados no passado.

06 – Identifique no texto lido:
a)   Duas personagens que ainda se encontram no presente de Paulo Honório.
Casimiro Lopes e Maria das Dores.

b)   Três personagens que só existem no passado e nas lembranças de Paulo Honório.
Madalena, mestre Caetano e seu Ribeiro.

c)   A personagem que atravessa ambos os tempos. Caracterize o seu estado de espírito e cite dois momentos do texto em que fica mais explicita a confusão que estabelece entre o presente e o passado.
A personagem que atravessa ambos os tempos é Paulo Honório; seu estado de espírito é de saudade, remorso, raiva, solidão, angustia, confusão mental. Os momentos podem ser: “A voz dela me chega aos ouvidos. Não, não é aos ouvidos...”; “Os objetos fundiram-se...”; ou “Terá realmente piado a coruja? Será a mesma que piava há dois anos?”

07 – Releia o trecho que se inicia com a exclamação: “--- Madalena!”, até o momento em que Paulo Honório chama por Casimiro. Comente a presença de Madalena e de seu Ribeiro, considerando a frase “Os objetos fundiram-se, e não enxergo sequer a toalha branca”.
      Em seu desespero e solidão, Paulo Honório evoca tão intensamente as personagens de seu passado que elas se tornam presentes, como fantasmas que o visitassem. A voz de Madalena parece chegar aos ouvidos, e a imagem, aos olhos, mas são alucinações. A toalha branca representa a realidade atual, que se apaga em sua visão. Mesmo quando reaparece, ele não sabe se é a toalha que está sob suas mãos ou a que ali estivera há cinco anos.

08 – Transcreva duas passagens metalinguísticas do texto.
      “Com efeito, se me escapa o retrato moral de minha mulher, para que serve esta narrativa? Para nada, mas sou forçado a escrever”; “Às vezes as ideias não vem, ou vem muito numerosas – e a folha permanece meio escrita, como estava na véspera.” Etc.


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