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sexta-feira, 28 de março de 2025

CRÔNICA: OS TATUADORES - (FRAGMENTO) - JOÃO DO RIO - COM GABARITO

 Crônica: Os tatuadores – Fragmento

              João do Rio

        – Quer marcar?

        Era um petiz de doze anos talvez. A roupa em frangalhos, os pés nus, as mãos pouco limpas e um certo ar de dignidade na pergunta. O interlocutor, um rapazola louro, com uma dourada carne de adolescente, sentado a uma porta, indagou:

        – Por quanto?

        – É conforme – continuou o petiz. É inicial ou coroa?

        – É um coração!

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjuANIqLYU7t601cMiIMBlJvHoqcOwwZa9FuI3OX9-Zu20DxmoxehJXHIpMjEy_y1mdsdMI2M8GJ-vrJRtlfTHG1dqgdfyyY0SoiNqfrKdkdOPpIOBhy2xj7OD5KkUjonMSYHiOpezUdZr1lkQ-nCJWJ1dNQmCJ8OdIKWprzaJh2T53cw_yvNr-0pYJVpo/s320/CORA%C3%87%C3%83O.jpg


        – Com nome dentro?

        O rapaz hesitou. Depois:

        – Sim, com nome: Maria Josefina.

        – Fica tudo por uns seis mil réis.

        Houve um momento em que se discutiu o preço, e o petiz estava inflexível, quando vindo do quiosque da esquina um outro se acercou.

        – Ó moço, faço eu; não escute embromações!

        – Pagará o que quiser, moço.

        O rapazola sorria. Afinal resignou-se, arregaçou a manga da camisa de meia, pondo em relevo a musculatura do braço. O petiz tirou do bolso três agulhas amarradas, um pé de cálix com fuligem e começou o trabalho. Era na Rua Clapp, perto do cais, no século XX... A tatuagem! Será então verdade a frase de Gautier: "O mais bruto homem sente que o ornamento traça uma linha indelével de separação entre ele e o animal, e quando não pode enfeitar as próprias roupas recama a pele"?

        A palavra tatuagem é relativamente recente. Toda a gente sabe que foi o navegador Loocks que a introduziu no ocidente, e esse escrevia tattou, termo da Polinésia de tatou ou to tahou, desenho. Muitos dizem mesmo que a palavra surgiu no ruído perceptível da agulha da pele: tac, tac. Mas como é ela antiga! O primeiro homem, decerto, ao perder o pelo, descobriu a tatuagem. [...]

        Os tatuadores têm várias maneiras de tatuar: por picadas, incisão, por queimadura subepidérmica. As conhecidas entre nós são incisivas nos negros que trouxeram a tradição da África e, principalmente, as por picadas que se fazem com três agulhas amarradas e embebidas em graxa, tinta, anil ou fuligem, pólvora, acompanhando o desenho prévio. O marcador trabalha como as senhoras bordam.

        Lombroso diz que a religião, a imitação, o ócio, a vontade, o espírito de corpo ou de seita, as paixões nobres, as paixões eróticas e o atavismo são as causas mantenedoras dessa usança. Há uma outra – a sugestão do ambiente. Hoje toda a classe baixa da cidade é tatuada – tatuam-se marinheiros, e em alguns corpos há o romance imageográfico de inversões dramáticas; tatuam-se soldados, vagabundos, criminosos, barregãs, mas também portugueses chegados da aldeia com a pele sem mancha, que influência do meio obriga a incrustar no braço coroas do seu país.

        Andei com o Madruga três longos meses pelos meios mais primitivos, entre os atrasados morais, e nesses atrasados a camada que trabalha braçalmente, os carroceiros, os carregadores, os filhos dos carroceiros deixaram-se tatuar porque era bonito, e são no fundo incapazes de ir parar na cadeia por qualquer crime. A outra, a perdida, a maior, o oceano malandragem e da prostituição é que me proporcionou o ensejo de estudar ao ar livre o que se pode estudar na abafada atmosfera das prisões. A tatuagem tem nesse meio a significação do amor, do desprezo, do amuleto, posse, do preservativo, das ideias patrióticas do indivíduo, da sua qualidade primordial.

        Quase todos os rufiões e os rufistas do Rio têm na mão direita entre o polegar e o indicador, cinco sinais que significam as chagas. Não há nenhum que não acredite derrubar o adversário dando-lhe uma bofetada com a mão assim marcada. O marinheiro Joaquim tem um Senhor crucificado no peito e uma cruz negra nas costas. Mandou fazer esse símbolo por esperteza. Quando sofre castigos, os guardiões sentem-se apavorados e sem coragem de sová-lo.

        – Parece que estão dando em Jesus!

        A sereia dá lábia, a cobra atração, o peixe significa ligeireza na água, a âncora e a estrela o homem do mar, as armas da República ou da Monarquia a sua compreensão política. Pelo número de coroas da Monarquia que eu vi, quase todo esse pessoal é monarquista.

        Os lugares preferidos são as costas, as pernas, as coxas, os braços, as mãos. Nos braços estão em geral os nomes das amantes, frases inteiras, como por exemplo esta frase de um soldado de um regimento de cavalaria: viva o marechal de ferro!... desenhos sensuais, corações. O tronco é guardado para as coisas importantes, de saudade, de luxúria ou de religião. Hei de lembrar sempre o Madruga tatuando um funileiro, desejoso de lhe deixar uma estrela no peito.

        – No peito não! cuspiu o mulato, no peito eu quero Nossa Senhora!

        A sociedade, obedecendo à corrente das modernas ideias criminalistas, olha com desconfiança a tatuagem. O curioso é que – e esses estranhos problemas de psicologia talvez não sejam nunca explicados – o curioso é que os que se deixam tatuar por não terem mais que fazer, em geral, o elemento puro das aldeias portuguesas, o único quase incontaminável da baixa classe do Rio, mostram sem o menor receio os braços, enquanto os criminosos, os assassinos, os que já deixaram a ficha no gabinete de antropometria, fazem o possível para ocultá-los e escondem os desenhos do corpo como um crime. Por quê? Receio de que sejam sinais por onde se faça o seu reconhecimento? Isso com os da polícia talvez. Mas mesmo com pessoas, cujos intentos conhecem, o receio persiste, porque decerto eles consideram aquilo a marca de fogo da sociedade, de cuja tentação foram incapazes de fugir, levados pela inexorável fatalidade.

        Há tatuagens religiosas, de amor, de nomes, de vingança, de desprezo, de profissão, de beleza, de raça, e tatuagens obscenas.

        A vida no seu feroz egoísmo é o que mais nitidamente ideografa a tatuagem.

        As meretrizes e os criminosos nesse meio de becos e de facadas têm indeléveis ideias de perversidade e de amor. Um corpo desses, nu, é um estudo social. As mulheres mandam marcar corações com o nome dos amantes, brigam, desmancham a tatuagem pelo processo do Madruga, e marcam o mesmo nome no pé, no calcanhar.

        – Olha, não venhas com presepadas, meu macacuano. Tenho-te aqui, desgraça! E mostram ao malandro, batendo com o chinelo, o seu nome odiado.

        É a maior das ofensas: nome no calcanhar, roçando a poeira, amassado por todo o peso da mulher...

        [...].

RIO, João do. A alma encantadora das ruas. Org. de Raul Antelo. São Paulo, Companhia das Letras, 1997. p. 100-111.

Fonte: Português. Série novo ensino médio. Volume único. Faraco & Moura – 1ª edição – 4ª impressão. Editora Ática – 2000. São Paulo. p. 281.

Entendendo a crônica:

01 – Qual a origem da palavra "tatuagem", segundo o texto?

      A palavra "tatuagem" foi introduzida no ocidente pelo navegador Loocks, derivada do termo polinésio "tatou" ou "to tahou", que significa desenho. Alguns acreditam que a palavra surgiu do ruído da agulha na pele: "tac, tac".

02 – Quais os métodos de tatuagem mencionados no texto?

      O texto menciona três métodos principais: picadas, incisão e queimadura subepidérmica. No Brasil, as técnicas mais comuns são a incisão, trazida pelos africanos, e as picadas, feitas com três agulhas amarradas e embebidas em tinta.

03 – Quais as motivações para as tatuagens, de acordo com Lombroso?

      Lombroso lista várias motivações, incluindo religião, imitação, ócio, vontade, espírito de grupo, paixões nobres, paixões eróticas e atavismo. O texto também menciona a influência do ambiente como um fator relevante.

04 – Quem são os principais usuários de tatuagens na sociedade descrita no texto?

      A classe baixa da cidade, incluindo marinheiros, soldados, vagabundos, criminosos e prostitutas, são os principais usuários. Até mesmo portugueses recém-chegados adotam a prática.

05 – Qual a importância da tatuagem no mundo do crime, segundo o texto?

      No mundo do crime, a tatuagem tem diversos significados, como amor, desprezo, amuleto, posse, proteção, ideias patrióticas e qualidades pessoais.

06 – Como os criminosos escondem suas tatuagens?

      Criminosos escondem suas tatuagens por medo de serem reconhecidos pela polícia ou por vergonha, considerando-as marcas da sociedade que não conseguiram evitar.

07 – Quais os tipos de tatuagens mencionados no texto?

      O texto menciona tatuagens religiosas, de amor, com nomes, de vingança, de desprezo, de profissão, de beleza, de raça e tatuagens obscenas.

08 – Qual o significado da tatuagem para as meretrizes, de acordo com o texto?

      Para as meretrizes, a tatuagem é uma forma de expressar amor e ódio. Elas tatuam o nome dos amantes, apagam a tatuagem em caso de briga e tatuam o nome no calcanhar como forma de ofensa.

09 – Onde os marinheiros costumam fazer tatuagens e quais os seus significados?

      Os marinheiros costumam tatuar âncoras e estrelas, que simbolizam a vida no mar.

10 – Por que alguns criminosos tatuam símbolos religiosos?

      Alguns criminosos tatuam símbolos religiosos, como um Senhor crucificado, para intimidar os guardas e evitar castigos físicos.

 

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

CRÔNICA: UM MENDIGO ORIGINAL - JOÃO DO RIO - COM GABARITO

 Crônica: Um mendigo original

              João do Rio

        Morreu trasanteontem, às 7 da tarde, de uma congestão, o meu particular amigo, o mendigo Justino Antônio.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgEXFV9qnz49hYqOHcl2s1PbnzxmWGZ1JoEwK_SsatE_ZtOd53HLHasZ5hMxkj2dNhoyWuHvm5tpcwrzvFr6IyZedLD2DamnVDi1TLoxLhfqpaiasVXlV6jdpjiRMZeUFiZH1e5q-yaHy_IOa5tGKu8fRCDZVKfvZAo7hpFLywoLTyygG14XfTD8X9JCvI/s320/mendigo.png


        Era um homem considerável, sutil e sórdido, com uma rija organização cerebral que se estabelecia neste princípio perfeito: a sociedade tem de dar-me tudo quanto goza, sem abundância mais também sem o meu trabalho – princípio que não era socialista, mas era cumprido à risca pela prática rigorosa.

        A primeira vez que vi Justino Antônio num alfarrabista da Rua São José foi em dia de sábado. Tinha um fraque verde, as botas rotas, o cabelo empastado e uma barba de profeta, suja e cheia de lêndeas. Entrou, estendeu a mão ao alfarrabista.

        – Hoje, não tem.

        – Devo notar que há já dois sábados nada me dás.

        – Não seja importuno. Já disse.

        – Bem, não te zangues. Notei apenas porque a recusa não foi para sempre. Este cidadão, entretanto, vai ceder-me quinhentos réis.

        -- Eu!

        – Está claro. Fica com esta despesinha a mais: quinhentos réis aos sábados. É melhor dar a um pobre do que tomar um chope. Peço, porém, para notares que não sou um mordedor, sou mendigo, esmolo, esmolo há vinte anos. Tens diante de ti um mendigo autêntico.

        – E por que não trabalha?

        – Porque é inútil.

        Dei sorrindo a cédula. Justino não agradeceu, e quando o vimos pelas costas, o alfarrabista indignado prorrompeu contra o malandrim que com tamanho descaro arrancava os níqueis à algibeira alheia. Achei original Justino. Como mendigo era uma curiosa figura perdida em plena cidade, capaz de permitir um pouco de fantasia filosófica em torno de sua diogênica dignidade. Mas o mendigo desapareceu, e só um mês depois, ao sair de casa, encontrei-o à porta.

        – Deves-me dois mil-réis de quatro sábados, e venho ver se me arranjas umas horas usadas. Estas estão em petição de miséria.

        Fi-lo entrar, esperar à porta da saleta, forneci-lhe botas e dinheiro.

        – E se me desses o almoço?

        Mandei arranjar um prato farto, e com a gula de descrevê-lo, fui generoso.

        – Vem para a mesa.

        – A mesa e o talher são inutilidades. Não peço senão o que necessito no momento. Pode-se comer perfeitamente sem mesa e sem talher.

        Sentou-se num degrau da escada e comeu gravemente o pratarraz. Depois pediu água, limpou as mãos nas calças e desceu.

        – Espera aí, homem. Que diabo! Nem dizes obrigado.

        – É inútil dizer obrigado. Só deste o que falta não te faria. E deste por vontade. Talvez fosse até por interesse. Deste-me as botas velhas como quem compra um livro novo. Conheço-te.

        – Conheces-me?

        – Não te enchas, vaidoso. Eu conheço toda a gente. Até para o mês.

        – Queres um copo de vinho?

        – Não. Costumo embriagar-me às quintas; hoje é segunda.

        Confesso que o mendigo não me deixou uma impressão agradável. Mas era quanto possível novo, inédito, com a sua grosseria e as suas atitudes de Sócrates de ensinamentos. E diariamente lembrava a sua figura, a sua barba cheia de lêndeas... Uma vez vi-o na galeria da Câmara, na primeira fila, assistindo aos debates, e na mesma noite, entrando num teatro do Rocio, o empresário desolado disse-me:

        – Ah! não imaginas a vazante! É tal que mandei entrar o Justino.

        – Que Justino?

        – Não conheces? Um mendigo, um tipo muito interessante, que gosta de teatro. Chega à bilheteira e diz: "Hoje não arranjei dinheiro. Posso entrar?" A primeira vez que me vieram contar a pilhéria achei tanta graça que consenti. Agora, quando arranja dez tostões compra a senha sem dizer palavra e entra. Quando não arranja repete a frase e entra. Um que mal faz?

        Fui ver o curioso homem. Estava em pé em geral, prestando uma sinistra atenção às facécias de certo cômico.

        – Justino, por que não te sentas?

        – É inútil. Vejo bem de pé.

        – Mas o empresário...

        – Contento-me com a generosidade do empresário.

        – Mas na Câmara estava sentado.

        – Lá é a comunhão que paga.

        Insisti no interrogatório, a falar da peça, dos atores, dos prazeres, da vida, do Justino conservou-se mudo. No intervalo convidei-o a tomar uma soda, por não ser quinta-feira.

        – Soda é inútil. Estás a aborrecer-me. Vai embora.

        Outra qualquer pessoa ficaria indignadíssima. Eu curvei resignadamente a cabeça e acabei vexado.

        A voz daquele homem, branca, fria, igual, no mesmo tom, era inexorável.

        – É um tipo o teu espectador – disse ao empresário.

        – Ah! ... Ninguém lhe arranca palavra. Sabes que nunca me disse obrigado?

        Eu andava precisamente neste tempo a interrogar mendigos para um inquérito à vida da miséria urbana e alguns dos artigos já haviam aparecido. Dias depois, estando a comprar charutos, entra pela tabacaria adentro o homem estranho.

        – Queres um charuto?

        – Inútil. Só fumo às terças e aos domingos. Os charuteiros fornecem-me. Entrei para receber os meus dois mil-réis atrasados e para dizer que não te metas a escrever a meu respeito.

        – Por quê?

        – Porque abomino a minha pessoa em letra de forma, apesar de nunca a ter visto assim. Se fizeres a feia ação, sou forçado a brigar contigo, sempre que te encontrar.

        A perspectiva de rolar na via pública com um mendigo não me sorria. Justino faria tudo quanto dissera. Depois era um fenômeno de hipnose. Estava inteiramente dominado, escravizado àquela figura esfingética da lama urbana, não tinha forças para resistir à sua calma e fria vontade. Oh! ouvir esse homem! Saber-lhe a vida!

        Como certa vez entretanto, à 1 hora da manhã, atravessasse o equívoco e silencioso jardim do Rocio, vi uma altercação num banco. Era o tempo em que a polícia resolvera não deixar os vagabundos dormirem nos bancos. Na noite de luar, dois guardas civis batiam-se contra um vulto esquálido de grandes barbas. Acerquei-me. Era ele.

        – Vamos, seu vagabundo.

        – É inútil. Não vou.

        – Vai à força!

        – É inútil. Sabem o que é este banco para mim? A minha cama de verão há doze anos! De uma hora em diante, por direito de hábito, respeitam-na todos. Tenho visto passar muito guarda, muito suplente, muito delegado. Eles vão-se, eu fico. Nem tu, nem o suplente, nem o comissário, nem o delegado, nem o chefe serão capazes de me tirar esse direito. Moro neste banco há uma dúzia de anos. Boa-noite.

        Os civis iam fazer uma violência. Tive de intervir, convencê-los, mostrar autoridade, enquanto Justino, recostado e impassível, dizia:

        – Deixa. Eles levam-me, eu volto.

        Afinal os guardas acederam, e Justino deitou-se completamente.

        – Foi inútil. Não precisava. Mas eu sou teu amigo?

        – Meu amigo?

        – Certo. Nunca te pedi nada que te pudesse fazer falta e nunca te menti. Fica certo. Sou o teu melhor amigo, sou o melhor amigo de toda a gente.

        – E não gostas de ninguém.

        – Não é preciso gostar para ser amigo. Amigo é o que não sacrifica.

        E desde então comecei a sacrificar-me voluntariamente por ele, a correr à polícia quando o sabia preso, a procurá-lo quando o não via e desesperado porque não aceitava mais de dois mil-réis da minha bolsa, e dizia, inexorável, a cada prova da minha simpatia:

        – É inútil, inteiramente inútil!

        Durante três anos dei-me com ele sem saber quantos anos tinha ou onde nascera. Nem isso. Apenas ao cabo de seis meses consegui saber que fumava aos domingos e às terças, embebedava-se às quintas, ia ao teatro às sextas e às segundas, e todo dia à Câmara. Nas noites de chuva dormia no chão! Numa hospedaria; em noites secas no seu banco. Nunca tomava banho, pedia pouco, e ao menor alarde de generosidade, limitava o alarde com o seu desolador: é inútil. Teria tido vida melhor? Fora rico, sábio? Amara? Odiara? Sofrera? Ninguém sabia! Um dia disse-lhe:

        – A tua vida é exemplar. És o Buda contemporâneo da Avenida.

        Ele respondeu:

        – É um erro servir de exemplo. Vivo assim porque entendo viver assim. Condensei apenas os baixos instintos da cobiça, exploração, depravação, egoísmo em que se debatem os homens se na consciência de uma vontade que se restringe e por isso é forte. Numa sociedade em que os parasitas tripudiam – é inútil trabalhar. O trabalho é de resto inútil. Resolvi conduzir-me sem ideias, sem interesse, no meio do desencadear de interesses confessados e inconfessáveis. Sou uma espécie de imposto mínimo, e por isso nem sou malandro, nem mendigo, nem um homem como qualquer – porque não quero mais do que isso.

        – E não amas?

        – Nem a mim mesmo porque é inútil. Desses interesses encadeados resolvi, em lugar de explorar a caridade ou outro gênero de comércio, tirar a percentagem mínima, e daí o ter vivido sem esforço com todos os prazeres da sociedade, sem invejas e sem excessos, despercebido como o invisível. Que fazes tu? Escreves? Tempo perdido com pretensões a tempo ganho. Que gozas tu? Teatros, jantares, festas em excesso nos melhores lugares. Eu gozo também quando tenho vontade, no dia de porcentagem no lugar que quero – o menor, o insignificante – os teatros e tudo quanto a cidade pode dar de interessante aos olhos. Apenas sem ser apontado e sem ter ódios.

        – Que inteligência a tua!

        – A verdadeira inteligência é a que se limita para evitar dissabores. Tu podes ter contrariedades. Eu nunca as tive. Nem as terei. Com o meu sistema, dispenso-me de sentir e de fingir, não preciso de ti nem de ninguém, retirando dos defeitos e das organizações más dos homens o subsídio da minha calma vida.

        – É prodigioso.

        – É um sistema, que serias incapaz de praticar, porque tu és como todos os outros, ambicioso e sensual.

        Quando soube da sua morte corri ao necrotério a fazer-lhe o enterro. Não era possível. Justino tinha deixado um bilhete no bolso pedindo que o enterrassem na vala comum "a entrada geral do espetáculo dos vermes".

        Saí desolado porque essa criatura fora a única que não me dera nem me tirara, e não chorara, e não sofrera e não gritara, amigo ideal de uma cidade inteira fazendo o que queria sem ir contra pessoa alguma, livre de nós como nós livres dele, a dez mil léguas de nós, posto que ao nosso lado.

        E também com certa raiva – por que não dizê-lo? – porque o meu interesse fora apenas o desejo teimoso de descobrir um segredo que talvez não tivesse.

        Enfim morreu. Ninguém sabia da sua vida, ninguém falou da sua morte. Um bem? Um mal?

        Nem uma nem outra coisa, porque, afinal, na vida tudo é inteiramente inútil...

João do Rio. Portal da crônica brasileira.

Entendendo a crônica:

01 – Quem era Justino Antônio na crônica?

      Justino Antônio era um mendigo peculiar e original que vivia sem esforço, explorando a generosidade da sociedade.

02 – Qual era o princípio central da vida de Justino Antônio?

      O princípio central de Justino era receber tudo da sociedade sem fazer esforço, vivendo à custa dos outros sem trabalhar.

03 – Como Justino se comportava diante da generosidade dos outros?

      Justino recebia generosidade sem agradecer, mantendo-se indiferente e dizendo que era inútil expressar gratidão.

04 – Qual era a atitude de Justino em relação ao trabalho?

      Ele considerava o trabalho inútil, optando por viver à margem da sociedade sem se envolver em atividades laborais.

05 – Por que o narrador se sentia atraído por Justino?

      O narrador achava Justino original e único por sua postura distante, grosseira e sua filosofia peculiar em relação à vida.

06 – Como Justino se relacionava com eventos culturais, como teatro?

      Ele frequentava o teatro, muitas vezes sem pagar, utilizando-se de frases como "Hoje não arranjei dinheiro. Posso entrar?" para conseguir acesso.

07 – Qual era a visão de Justino sobre amizade e relacionamentos?

      Justino considerava-se amigo das pessoas, mesmo não demonstrando afeto ou gratidão, e acreditava que não era necessário gostar para ser amigo.

08 – Como Justino justificava seu estilo de vida pouco convencional?

      Ele explicava que vivia dessa maneira para evitar conflitos, dissabores e não se submeter aos desejos e falhas humanas.

09 – Por que o narrador se sentiu desolado com a morte de Justino?

      O narrador ficou desolado porque Justino era a única pessoa que não exigia nada dele, não se envolvia emocionalmente e vivia livremente.

10 – Como Justino queria ser enterrado?

      Justino deixou um bilhete pedindo para ser enterrado na vala comum, chamando-a de "a entrada geral do espetáculo dos vermes", refletindo sua visão da futilidade da vida.

 

terça-feira, 20 de outubro de 2020

CONTO: O HOMEM DE CABEÇA DE PAPELÃO - PARTE II - JOÃO DO RIO - COM GABARITO

 Conto: O homem de cabeça de papelão – parte II

                 João do Rio  

        Nessas disposições, Antenor caminhava por uma rua no centro da cidade, quando os seus olhos descobriram a tabuleta de uma "relojoaria e outros maquinismos delicados de precisão". Achou graça e entrou. Um cavalheiro grave veio servi-lo.

        -- Traz algum relógio?

        -- Trago a minha cabeça.

        -- Ah! Desarranjada?

        -- Dizem-no, pelo menos.

        -- Em todo o caso, há tempo?

        -- Desde que nasci.

        -- Talvez imprevisão na montagem das peças. Não lhe posso dizer nada sem observação de trinta dias e a desmontagem geral. As cabeças como os relógios para regularem bem...

        Antenor atalhou:

        -- E o senhor fica com a minha cabeça?

        -- Se a deixar.

        -- Pois aqui a tem. Conserte-a. O diabo é que eu não posso andar sem cabeça...

        -- Claro. Mas, enquanto a arranjo, empresto-lhe uma de papelão.

        -- Regula?

        -- É de papelão! – explicou o honesto negociante. Antenor recebeu o número de sua cabeça, enfiou a de papelão e saiu para a rua.

        Dois meses depois, Antenor tinha uma porção de amigos, jogava o pôquer com o Ministro da Agricultura, ganhava uma pequena fortuna vendendo feijão bichado para os exércitos aliados. A respeitável mãe de Antenor via-o mentir, fazer mal, trapacear e ostentar tudo o que não era. Os parentes, porém, estimavam-no, e os companheiros tinham garbo em recordar o tempo em que Antenor era maluco.

        Antenor não pensava. Antenor agia como os outros. Queria ganhar. Explorava, adulava, falsificava. Maria Antônia tremia de contentamento vendo Antenor com juízo. Mas Antenor, logicamente, desprezou-a propondo um concubinato que o não desmoralizasse a ele. Outras Marias ricas, de posição, eram de opinião da primeira Maria. Ele só tinha de escolher. No centro operário, a sua fama crescia, querido dos patrões burgueses e dos operários irmãos dos spartakistas da Alemanha. Foi eleito deputado por todos e, especialmente, pelo presidente da República – a quem atacou logo, pois para a futura eleição o presidente seria outro. A sua ascensão só podia ser comparada à dos balões. Antenor esquecia o passado, amava a sua terra. Era o modelo da felicidade. Regulava admiravelmente.

        Passaram-se assim anos. Todos os chefes políticos do País do Sol estavam na dificuldade de concordar no nome do novo senador, que fosse o expoente da norma, do bom senso. O nome de Antenor era cotado. Então Antenor passeava de automóvel pelas ruas centrais, para tomar pulso à opinião, quando os seus olhos deram na tabuleta do relojoeiro e lhe veio a memória.

        -- Bolas! E eu que esqueci! A minha cabeça está ali há tempo... Que acharia o relojoeiro? É capaz de tê-la vendido para o interior. Não posso ficar toda vida com uma cabeça de papelão!

        Saltou. Entrou na casa do negociante. Era o mesmo que o servira.

        -- Há tempos deixei aqui uma cabeça.

        -- Não precisa dizer mais. Espero-o ansioso e admirado da sua ausência, desde que ia desmontar a sua cabeça.

        -- Ah! – fez Antenor.

        -- Tem-se dado bem com a de papelão?

        -- Assim...

        -- As cabeças de papelão não são más de todo. Fabricações por séries. Vendem-se muito.

        -- Mas a minha cabeça?

        -- Vou buscá-la.

        Foi ao interior e trouxe um embrulho com respeitoso cuidado.

        -- Consertou-a?

        -- Não.

        -- Então, desarranjo grande?

        O homem recuou.

        -- Senhor, na minha longa vida profissional jamais encontrei um aparelho igual, como perfeição, como acabamento, como precisão. Nenhuma cabeça regulará no mundo melhor do que a sua. É a placa sensível do tempo, das ideias, é o equilíbrio de todas as vibrações. O senhor não tem uma cabeça qualquer. Tem uma cabeça de exposição, uma cabeça de gênio, hors-concours.

        Antenor ia entregar a cabeça de papelão. Mas conteve-se.

        -- Faça o obséquio de embrulhá-la.

        -- Não a coloca?

        -- Não.

        -- V. Exa. faz bem. Quem possui uma cabeça assim não a usa todos os dias. Fatalmente dá na vista.

        Mas Antenor era prudente, respeitador da harmonia social.

        -- Diga-me cá. Mesmo parada em casa, sem corda, numa redoma, talvez prejudique.

        -- Qual! V. Exa. terá a primeira cabeça.

        Antenor ficou seco.

        -- Pode ser que V. Exa., profissionalmente, tenha razão. Mas, para mim, a verdade é a dos outros, que sempre a julgaram desarranjada e não regulando bem. Cabeças e relógios querem-se conforme o clima e a moral de cada terra. Fique V. Exa. com ela. Eu continuo com a de papelão.

        E, em vez de viver no País do Sol um rapaz chamado Antenor, que não conseguia ser nada tendo a cabeça mais admirável – um dos elementos mais ilustres do País do Sol foi Antenor, que conseguiu tudo com uma cabeça de papelão.

R. Magalhães Júnior (org.), op. Cit.

Fonte: Língua Portuguesa. Viva Português. 9° ano. Editora Ática. Elizabeth Campos. Paula Marques Cardoso. Silvia Letícia de Andrade. 2ª edição. 2011. P.129-132.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Hors-concours: que, em um concurso, não concorre a prêmios, por ser muito superior aos demais competidores.

·        Imprevisão: falta de previsão; desleixo, negligência.

02 – O contista pode usar elementos fantásticos para melhor ilustrar a história. Obviamente esses elementos devem ter verossimilhança em relação ao contexto. Releia os quinze primeiros parágrafos do texto. Que elemento fantástico foi introduzido no conto? Responda no caderno.

      Antenor deixa sua cabeça no relojoeiro para consertar, como se cabeça fosse relógio, e sai com uma de papelão emprestada pelo negociante.

03 – Depois de dois meses com a cabeça de papelão, Antenor era o oposto do que fora com sua própria cabeça. Copie o quadro no caderno e complete a segunda coluna com elementos que explicitem essa oposição.

Primeira coluna: Antenor com a cabeça de papelão.

a)   Tinha uma porção de amigos.

b)   Jogava pôquer com o ministro da Agricultura.

c)   Ganhava uma pequena fortuna vendendo feijão bichado para os exércitos aliados.

d)   Ostentava o que não era.

e)   Era estimado pelos parentes.

f)    Era admirado por Maria Antônia, mas a desprezou por causa de seu nível social.

g)   Fora apoiado para deputado pelo presidente da República, mas o atacou logo que soube que o novo presidente seria outro.

h)   Sentia-se feliz porque sua cabeça regulava de acordo com as exigências da sociedade.

Segunda coluna: Antenor com sua própria cabeça.

a)   Antenor só tinha amigos durante o tempo em que estes pudessem explorá-lo.

b)   Jamais se aproximaria de uma pessoa por interesse.

c)   Era incapaz de um ato de desonestidade, de fazer mal a alguém para levar vantagem.

d)   Só dizia a verdade.

e)   Era desprezado pelos parentes, que o consideravam doido.

f)    Maria Antônia impôs que Antenor mudasse caso quisesse se casar com ela.

g)   Antenor nunca trairia alguém que o tivesse ajudado.

h)   Antenor desconfiava de sua cabeça porque tudo o que fazia era considerado falta de bom senso.

04 – Antenor, certo dia, lembra-se de que se esquecera de sua cabeça na relojoaria. Releia estas falas do relojoeiro e responda no caderno:

        “— [...]. Espero-o ansioso e admirado da sua ausência, desde que ia desmontar a sua cabeça.”

        “— As cabeças de papelão não são más de todo. Fabricações por séries. Vendem-se muito.”

a)   Qual a razão da ansiedade do relojoeiro?

O relojoeiro queria dizer a Antenor o quanto sua cabeça era perfeita, rara e admirável.

b)   Explique o que são fabricações por série.

Organização de peças idênticas para a montagem de produtos idênticos.

c)   Ao afirmar que as cabeças de papelão são fabricações por série e vendem muito, há a sugestão de uma ideia importante para o contexto geral do conto. Que ideia é essa?

A de que cabeças de papelão são muito comuns; de que quem tem uma tem-na igual à de outros tantos, pensando e agindo, portanto, da mesma forma.

05 – Por que Antenor não aceitou levar sua cabeça para casa? Justifique sua resposta com um trecho retirado do texto.

      Antenor preferiu ficar com a verdade da sociedade na qual estava inserido, pois sabia que só seria aceito com a cabeça de papelão, jamais com sua cabeça. “-- Pode ser que V. Exa., profissionalmente, tenha razão. Mas, para mim, a verdade é a dos outros, que sempre a julgaram desarranjada e não regulando bem.”

06 – Releia e, depois, responda no caderno:

        “Cabeças e relógios querem-se conforme o clima e a moral de cada terra.”

        “E, em vez de viver no País do Sol um rapaz chamado Antenor, que não conseguia ser nada tendo a cabeça mais admirável – um dos elementos mais ilustres do País do Sol foi Antenor, que conseguiu tudo com uma cabeça de papelão.”

a)   O conto “O homem de cabeça de papelão” faz uma crítica à moral social vigente em determinado lugar, em certa época. Que moral social é essa?

A de que as pessoas precisam ser desonestas, trapaceiras, interesseiras, traidoras, oportunistas se quiserem se dar bem na sociedade.

b)   É possível verificar esse tipo de moral hoje na sociedade em que vivemos? Dê exemplos.

Resposta pessoal do aluno.

c)   Se todas as pessoas resolvessem agir conforme a moral vigente no País do Sol, como se tornaria a vida em sociedade?

Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Se todos agiram pensando em levar vantagens, todos serão prejudicados.

07 – A cabeça de papelão, no contexto do conto, é uma metáfora dos valores morais de muitas pessoas. Vamos tentar entender o sentido metafórico da expressão cabeça de papelão.

a)   A cabeça é considerada uma parte nobre do corpo. Tente explicar por quê?

É na cabeça que se localizam o cérebro e os órgãos da visão, da audição, do paladar e do olfato. Ela rege boa parte das ações humanas; é o centro do controle emocional e fonte dos pensamentos e ideias.

b)   E quanto ao papelão? Trata-se de um material nobre?

Não, o papelão é um material extremamente frágil, sem valor algum; qualquer objeto feito de papelão será de fácil deterioração.

c)   O que significa, portanto, ter cabeça de papelão?

Significa não ter valores, não ter firmeza de caráter e não conseguir, também, pensar por si mesmo.

d)   Traduza a ideia principal do conto completando a frase:

Antenor transformou-se em alguém ilustre e respeitado com uma cabeça de papelão. Logo, aqueles que seguem a opinião geral e conseguem as coisas por meios desonestos e imorais têm cabeça de papelão.

08 – A substituição de uma cabeça normal por uma de papelão é o elemento fantástico usado para fazer uma crítica ao comportamento humano em sociedade. Nesse contexto, de que outro material poderia ser feita a cabeça das pessoas da sociedade retratada no texto? Justifique sua resposta no caderno.

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: de gelo, por causa da frieza do comportamento; de pedra, por ser dura, de ideias limitadas, etc.