Mostrando postagens com marcador DANIEL MUNDURUKU. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador DANIEL MUNDURUKU. Mostrar todas as postagens

sábado, 9 de agosto de 2025

TEXTO: A MILENAR ARTE DE EDUCAR DOS POVOS INDÍGENAS - DANIEL MUNDURUKU - COM GABARITO

 Texto: A milenar arte de educar dos povos indígenas

        Por: Daniel Munduruku

        Educar é dar sentido. É dar sentido ao nosso estar no mundo. Nossos corpos precisam desse sentido para se realizar plenamente. Mas também nossos corpos são vazios de imagens e elas precisam fazer parte da nossa mente para possamos dar respostas ao que se nos apresenta diuturnamente como desafios da existência. É por isso que não basta dar alimento apenas ao corpo, é preciso também alimentar a alma, o espírito. Sem comida o corpo enfraquece e sem sentido é a alma que se entrega ao vazio da existência.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg-P3U5oczYgln6jkbVG_C0mZVGhzSYmZYUp6MCW5P6kKJlFToqcEihamkzUEDy9ehPnA8OXda49zNfYWeO1aj1ODEWkWH5f9dpDkxpFQAY76xQtwNlSneCuNNYmdtL3OoL5WB1vRSf97OZ7vINpcTTGNulZZXiR45vxC55d7DgdmNfybMofbGDJAC3N9U/s320/Brasil-Indigena_kraho_-Foto-Renato-SoaresX-e1523888683885.jpg


        A educação tradicional entre os povos indígenas se preocupa com esta tríplice necessidade: do corpo, da mente e do espírito. É uma preocupação que entende o corpo como algo prenhe de necessidades para poder se manter vivo.

        Esta visão de educação é sustentada pela ideia de que cada ser humano precisa viver intensamente seu momento. A criança indígena é, então, provocada para ser radicalmente criança. Não se pergunta nunca a ela o que pretende ser quando crescer. Ela sabe que nada será se não viver plenamente seu ser infantil. Nada será por que já é. Não precisará esperar crescer para ser alguém. Para ela é apresentado o desafio de viver plenamente seu ser infantil para que depois, quando estiver vivendo outra fase da vida, não se sinta vazia de infância. A ela são oferecidas atividades educativas para que aprenda enquanto brinca e brinque enquanto aprende num processo contínuo que irá fazê-la perceber que tudo faz parte de uma grande teia que se une ao infinito.

        Num mesmo movimento ela vai sendo introduzida no universo espiritual. Embalada pelas histórias contadas pelos velhos da aldeia, a criança e o jovem passam a perceber que em seu corpo moram os sentidos da existência. Este sentido é oferecido pela memória ancestral concentrada nos velhos contadores de histórias. São eles que atualizam o passado e o fazem se encontrar com o presente mostrando à comunidade a presença do saber imemorial capaz de dar sentido ao estar no mundo.

        Este processo todo é alimentado por rituais que lembram o passado para significar o presente. São movimentos corpóreos embalados por cantos e danças repetidos muitas vezes com o objetivo de “manter o céu suspenso”. A dança lembra a necessidade de sermos gratos aos espíritos criadores; contam que precisamos de sentidos para viver dignamente; ordena a existência. Cada grupo de idade ritualiza a seu modo. Cada um se sente responsável pelo todo, pela unidade, pela continuidade social.

        Educar é, portanto, envolver. É revelar. É significar. É mostrar os sentidos da existência. É dar presente. E não acaba quando a pessoa se “forma”. Não existe formatura. Quem vive o presente está sempre em processo.

        É por isso que a criança será sempre criança. Plenamente criança. Essa é a garantia de que o jovem será jovem no seu momento. O homem adulto viverá sua fase de vida sem saudades da infância, pois ele a viveu plenamente. O mesmo diga-se dos velhos. O que cada um traz dentro de si é a alegria e as dores que viveram em cada momento. Isso não se apaga de dentro deles, mas é o que os mantém ligados ao agora.

        Resumo da ópera: A educação tradicional indígena tem dado certo. As pessoas se sentem completas quando percebem que a completude só é possível num contexto social, coletivo. Cada fase porque passa um indígena – desde a mais tenra idade – alimenta um olhar para o todo, pois o conhecimento que aprendem e vivem é um saber holístico que não se desdobra em mil especialidades, mas compreende o humano como uma unidade integrada a um Todo maior e Único.

        Olhar os povos indígenas brasileiros a partir de uma visão rasa de produção, de consumo, de riqueza e pobreza é, no mínimo, esvaziar os sentidos que buscam para si.

        Pense nisso.

        Xipat Oboré (Tudo de Bom!).

Daniel Munduruku. Disponível em: http://danielmunduruku.blogspot.com/2010/04/milenar-arte-de-educar-dos-povos.html. Acesso em: 17 abr. 2015.

Fonte: Universos – Língua Portuguesa – Ensino fundamental – Anos finais – 9º ano – Camila Sequetto Pereira; Fernanda Pinheiro Barros; Luciana Mariz. Edições SM. São Paulo. 3ª edição, 2015. p. 204-205.

Entendendo o texto:

01 – Qual é a definição de educar, segundo o autor?

      Segundo o autor, educar é dar sentido ao nosso estar no mundo, alimentando não apenas o corpo, mas também a alma e o espírito.

02 – De que forma a educação tradicional indígena aborda a infância?

      A educação indígena provoca a criança a ser radicalmente criança, vivendo plenamente sua fase atual. Não se pergunta o que ela será quando crescer, pois ela já é alguém. O objetivo é que ela não se sinta vazia de infância no futuro.

03 – Qual o papel dos "velhos da aldeia" no processo educativo?

      Os velhos da aldeia são os contadores de histórias que atualizam o passado e o conectam com o presente. Eles transmitem a memória ancestral, que dá sentido à existência e introduz as crianças e jovens no universo espiritual.

04 – Como os rituais contribuem para a educação indígena?

      Os rituais, que incluem cantos e danças, servem para lembrar o passado e dar significado ao presente. Eles reforçam a gratidão aos espíritos criadores e a necessidade de viver com dignidade, mantendo a ordem da existência e o senso de responsabilidade coletiva.

05 – Qual é a principal diferença entre a educação indígena e a educação ocidental em relação à "formatura"?

      Na educação indígena, não existe formatura, pois o processo de aprendizado é contínuo. A pessoa está sempre "em processo". Na visão ocidental, a formatura marca o fim de uma etapa educacional.

06 – Como a plenitude é alcançada na visão indígena?

      O texto afirma que a completude só é possível em um contexto social e coletivo. Cada fase da vida, desde a infância, alimenta um olhar para o todo, e o conhecimento aprendido é holístico, não fragmentado em especialidades.

07 – Por que, segundo o autor, é uma "visão rasa" julgar os povos indígenas com base em produção e riqueza?

      Julgar os povos indígenas por critérios como produção e riqueza é uma visão rasa porque esvazia os sentidos que eles buscam para si mesmos, que estão enraizados em uma compreensão holística e coletiva da existência, e não em valores materiais.

 

terça-feira, 23 de agosto de 2022

CRÔNICA: VOLTANDO PARA CASA - DANIEL MUNDURUKU - COM GABARITO

Crônica: Voltando para casa

               Daniel Munduruku

   Nunca esqueci quem sou. Na infância e na juventude, tive vontade de negar a origem de minha família. Algumas vezes, esforcei-me para esquecer. Em outras ocasiões, simplesmente não lembrei. A vida foi me colocando por caminhos diversos. Eu segui esses conselhos sem questionar. Viver o presente faz a gente colher tempestade também. Algumas tantas vezes, as várias tarefas que a gente se impõe acabam nos levando para caminhos de esquecimento e isso empobrece o nosso espírito. 

        Vejam isso como um balanço que faço. Sou um indígena. Trago no meu corpo os traços de minhas origens e, apesar do esforço que fiz em negar, foi por causa deles que não pude esquecer quem sou e de onde vim. Mas terei eu me esquecido de buscar no coração do meu povo uma atualização da minha origem? Não teria apagado de mim tudo o que sou ou esquecido propositadamente meu povo? Não teria usado minha origem para ganhar as benesses da sociedade? Estarei fazendo algo realmente por meu povo?

        Essas perguntas começaram a pipocar em minha cabeça no início da década de 1990. Eu já me firmava como educador e logo como escritor, mas essas indagações passaram a me acompanhar, lembrando que eu precisava voltar para casa, para os meus. Talvez precisasse mergulhar novamente na minha cultura ancestral para não perder de vista quem eu era e para quem vivia.

        Num desses dias de inquietação, passei pela Universidade de São Paulo (USP). Fui ao Departamento de Antropologia e me demorei lendo tudo o que estava exposto sobre as pesquisas acerca dos povos indígenas. Aquela andança me revelou que havia um certo Núcleo de Cultura Indígena coordenado por Ailton Krenak. Quis conhecê-lo. A sede estava lotada próximo à Pontifícia Universidade Católica (PUC). Não passava de uma sala que media três por três metros. Havia umas prateleiras repletas de livros. Nas paredes, cartazes e arte material de alguns povos. Atrás da única mesa, estava um jovem de cabelo desgrenhado, tez morena, olhos profundos, um pouco desfocados e com um sorriso torto. Observei tudo e me deu vontade de ir embora. O jovem, no entanto, percebeu meu embaraço e foi logo se erguendo. Apresentou-se como diretor da Instituição. Era Krenak. Eu cumprimentei sem jeito. Depois vi que era ele mesmo, porque havia pôsteres seus espalhados pela sala. Falei quem eu era e o que eu queria. Ele disse que entendia, mas que naquele lugar não havia espaço para mais ninguém. Se eu quisesse, poderia frequentar, mas ele não poderia se comprometer em me arranjar serviço. Disse a ele que não queria trabalho, mas fazer pesquisa, estudar, talvez uma pós-graduação. Ele mirou meus olhos. Depois escreveu um nome num papel e me entregou. Disse para procurar aquela pessoa no Departamento de Antropologia da USP, pois ela poderia me orientar. Peguei o papel e agradeci pela atenção. Ele sorriu para mim e voltou para sua cadeira atrás da mesa.

        Na semana seguinte, estava de volta à USP. Procurei a pessoa sugerida por Ailton. Mandaram-me falar com uma pessoa bem jovem, mas que tinha um sorriso imenso, como se os dentes não lhe coubessem na boca. Sorria fácil, com espontaneidade. Chamava-se Aracy Lopes da Silva. Contei a ela sobre minha visita ao NCI e sobre a rápida conversa com Ailton. Disse que eu era Munduruku, professor da rede de ensino e que queria voltar para casa. Ela riu de minha ingenuidade, mas parou por um longo minuto. Olhou-me com seriedade, perguntou se eu queria ser seu orientando no mestrado de Antropologia. Essa seria, segundo ela, a melhor maneira de voltar para casa. 

        Confessei à professora minha dificuldade na lida acadêmica. O curso de Filosofia não me deu o senso da pesquisa acadêmica e isso poderia dificultar os estudos. Disse o que pensava sobre antropologia e seus pesquisadores e que tinha receio de tornar-me um teórico. Foi ela quem me disse que antropologia era somente uma filosofia colocada na prática e que quem estuda Filosofia podia estudar qualquer coisa. Ela entendeu minha dificuldade, mas garantiu que poderia me ajudar a me ajudar. Lembrou-me bem de que tudo dependeria de mim e menos dela. Ela seria orientadora dos estudos, mas a realização destes seria minha. Perguntou se eu topava o desafio. Disse que sim. Ela me abraçou carinhosamente e me disse: "Vamos". 

        Foi assim que comecei a namorar o meu mestrado em Antropologia. Aracy me orientou com bravura até minha entrada oficial no curso, pois tive que passar pelo ritual dos exames de admissão. Foi ela que me deu a notícia de que estava aprovado e que poderia ser minha orientadora. Eu fiquei felicíssimo, claro, mas também apreensivo. Isso representava uma nova guinada na minha trajetória de vida. Um novo rito de passagem. Representava, também, a volta para a minha casa ancestral.

             Daniel Munduruku. Memórias de índio: uma quase autobiografia. Porto Alegre: Edelbra, 2016. p. 151-154.

Fonte: Língua Portuguesa – Estações – Ensino Médio – Volume Único. 1ª edição, São Paulo, 2020 – editora Ática – p. 160-1.

Entendendo a crônica:

01 – Você conhece o escritor da crônica? Qual é a sua origem?

      Resposta pessoal do aluno.

02 – Você já se fez questionamentos parecidos com os que inquietaram o escritor? Já se preocupou em conhecer suas origens ou se perguntar sobre elas? Converse com os colegas sobre isso.

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Trata-se de um autoquestionamento sobre a identidade indígena do autor. Depois de algum tempo trabalhando como educador e escritor, ele sentiu a necessidade de retomar o contato com suas raízes e concluiu que deveria “voltar para casa”, ou seja, conhecer melhor e valorizar sua ancestralidade.

03 – De acordo com o texto, a professora Aracy Lopes da Silva diz a Munduruku que um mestrado em Antropologia seria a melhor maneira de ele voltar para casa. Procure informações sobre essa ciência e seu campo de estudo. Em seguida, explique o que a professora quis dizer.

      Sugestão: Oriente os estudantes a conversa com os professores da área de Ciências Humanas e Sociais ou pesquisar em fontes confiáveis, como sites de universidades ou periódicos científicos, para informar-se sobre a Antropologia e seu campo de estudo.

04 – Explique o título da crônica: “Voltando para casa”. Ele tem sentido literal ou metafórico? Que caminhos o autor precisava percorrer de volta e por quê?

      O título tem sentido metafórico. De acordo com o primeiro parágrafo, ele precisava percorrer de volta os caminhos do esquecimento sobre suas origens, sobre quem ele era, porque esse esquecimento, segundo o autor, empobrece nosso espírito.