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domingo, 5 de novembro de 2023

CONTO: FITA VERDE NO CABELO - NOVA VELHA HISTÓRIA - JOÃO GUIMARÃES ROSA - COM GABARITO

 Conto: Fita Verde no Cabelo – Nova velha história            

           João Guimarães Rosa

        Havia uma aldeia em algum lugar, nem maior nem menor, com velhos e velhas que velhavam, homens e mulheres que esperavam, e meninos e meninas que nasciam e cresciam.

        Todos com juízo, suficientemente, menos uma meninazinha, a que por enquanto. Aquela, um dia, saiu de lá, com uma fita verde inventada no cabelo.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgsmD1dnp0TAL65TTCXH55i7QGpSyw5TpKGwc9aa0rRLruMYEvkT0MvIygCD7hG79z7FGZYg-sf-r0QNuxXXyqeEdYmhzmdCbdm5JOZuzLk2PhnUe7zdgpHpLA-XjeWcGi9LnACet28g0UeT4FpFbM78lj2VuYZQpCHFCxzkKUJ9Q5CojrPtlzbaIWe7W4/s1600/VERDE.jpg


        Sua mãe mandara-a, com um cesto e um pote, à avó, que a amava, a uma outra e quase igualzinha aldeia.

        Fita-Verde partiu, sobre logo, ela a linda, tudo era uma vez. O pote continha um doce em calda, e o cesto estava vazio, que para buscar framboesas.

        Daí, que, indo, no atravessar o bosque, viu só os lenhadores, que por lá lenhavam; mas o lobo nenhum, desconhecido nem peludo. Pois os lenhadores tinham exterminado o lobo.

        Então, ela, mesma, era quem se dizia:

        — Vou à vovó, com cesto e pote, e a fita verde no cabelo, o tanto que a mamãe me mandou.

        A aldeia e a casa esperando-a acolá, depois daquele moinho, que a gente pensa que vê, e das horas, que a gente não vê que não são.

        E ela mesma resolveu escolher tomar este caminho de cá, louco e longo, e não o outro, encurtoso. Saiu, atrás de suas asas ligeiras, sua sombra também vinha-lhe correndo, em pós.

        Divertia-se com ver as avelãs do chão não voarem, com inalcançar essas borboletas nunca em buquê nem em botão, e com ignorar se cada uma em seu lugar as plebeinhas flores, princesinhas e incomuns, quando a gente tanto por elas passa.

        Vinha sobejadamente.

        Demorou, para dar com a avó em casa, que assim lhe respondeu, quando ela, toque, toque, bateu:

        — “Quem é?”

        — “Sou eu…” — e Fita-Verde descansou a voz. — “Sou sua linda netinha, com cesto e pote, com a fita verde no cabelo, que a mamãe me mandou.”

        Vai, a avó, difícil, disse: — “Puxa o ferrolho de pau da porta, entra e abre. Deus te abençoe.”

        Fita-Verde assim fez, e entrou e olhou.

        A avó estava na cama, rebuçada e só. Devia, para falar agagado e fraco e rouco, assim, de ter apanhado um ruim defluxo. Dizendo:

        — “Depõe o pote e o cesto na arca, e vem para perto de mim, enquanto é tempo.”

        Mas agora Fita-Verde se espantava, além de entristecer-se de ver que perdera em caminho sua grande fita verde no cabelo atada; e estava suada, com enorme fome de almoço. Ela perguntou:

        — “Vovozinha, que braços tão magros, os seus, e que mãos tão trementes!”

        — “É porque não vou poder nunca mais te abraçar, minha neta…” — a avó murmurou.

        — “Vovozinha, mas que lábios, aí, tão arroxeados!”

        — “É porque não vou nunca mais poder te beijar, minha neta…” — a avó suspirou.

        — “Vovozinha, e que olhos tão fundos e parados, nesse rosto encovado, pálido?”

        — “É porque já não estou te vendo, nunca mais, minha netinha…” — a avó ainda gemeu.

        Fita-Verde mais se assustou, como se fosse ter juízo pela primeira vez. Gritou: — “Vovozinha, eu tenho medo do Lobo!…”

        Mas a avó não estava mais lá, sendo que demasiado ausente, a não ser pelo frio, triste e tão repentino corpo.

Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, 8 de fevereiro de 1964.

Entendendo o conto:

01 – Qual é o tema principal do conto?

      O tema principal do conto é a jornada da personagem Fita-Verde para visitar sua avó na outra aldeia.

02 – O que Fita-Verde leva consigo quando parte para visitar a avó?

      Fita-Verde leva um cesto e um pote, além de uma fita verde no cabelo.

03 – Por que Fita-Verde não tem medo de encontrar um lobo enquanto atravessa o bosque?

      Fita-Verde não tem medo do lobo porque ela acredita que os lenhadores exterminaram todos os lobos da região.

04 – Qual é a reação da avó de Fita-Verde quando ela chega em sua casa?

      A avó de Fita-Verde está doente e debilitada, devido a um resfriado, e pede que sua neta se aproxime.

05 – O que Fita-Verde nota quando vê sua avó doente na cama?

      Fita-Verde nota que a avó está muito magra, com mãos trêmulas, lábios arroxeados e olhos fundos.

06 – Por que a avó está com lábios arroxeados e olhos fundos?

      A avó está com lábios arroxeados e olhos fundos porque está prestes a morrer.

07 – O que a avó diz a Fita-Verde quando a neta nota seus lábios arroxeados e olhos fundos?

      A avó diz que não poderá mais abraçar ou beijar sua neta, pois está morrendo.

08 – Como Fita-Verde reage à situação da avó?

      Fita-Verde se assusta e grita que tem medo do lobo.

09 – Qual é o desfecho do conto "Fita Verde no Cabelo"?

      O desfecho do conto revela que a avó está morta, e Fita-Verde descobre sua ausência apenas quando se preocupa com o lobo, deixando uma atmosfera trágica e surpreendente na história.

 

quinta-feira, 26 de outubro de 2023

CONTO: NENHUM, NENHUMA - JOÃO GUIMARÃES ROSA - COM GABARITO

 Conto: NENHUM, NENHUMA

           JOÃO GUIMARÃES ROSA

        No conto Nenhum, Nenhuma, a indefinição do espaço se articula com a questão do tempo, na medida em que todas as referências a espaços indefinidos misturam-se à memória perdida
que o narrador tenta recuperar; o que ele talvez resuma da seguinte forma: As lembranças são outras distâncias….

        A narrativa inicia com o trecho: Dentro da casa-de-fazenda, achada, ao acaso de outras várias e recomeçadas distâncias, passaram-se e passam, na retentiva da gente, irreversos grandes fatos – reflexos, relâmpagos, lampejos – pesados em obscuridade.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg35hjUNDj9_RExItAcP66p8p7BJ6k_E_K8A8evTs1ZeMVTrLqzt936F9qColgbGFd2R5vc3b66Sc11ByVVL3VqSrSNt87SMqiO5A3HYvMzhqEFmKDT0ufyuL_Zu7nzBu1ABWE5ONgehBRfN7jzNyBGUs_bMBOL-8NT9WpRc5XBqOh4GTyKpx6ypMEjv1M/s320/casa-de-fazenda-2.jpg


        A procura pelos fatos da infância que “passaram e passam-se” constitui uma tentativa de descobrir uma verdade misteriosa e inacessível, que se articule e modifique o presente, lançando novas luzes ao futuro.

        O narrador do conto narra em primeira pessoa, com a cumplicidade explícita de sua memória, uma das personagens principais dessa história, tentando também compreender os dilemas que envolvem a aproximação da morte.

        O narrador rosiano caminha como se estivesse perdido no labirinto de suas lembranças, encontrando as saídas após um árduo e doloroso esforço. Ao longo de sua odisseia, ele enfrenta a tensão entre a memória e o esquecimento, no resgate do passado, que não retorna em sua pureza original, mas é fruto de uma singular seleção dos fatos lembrados.

        O narrador faz um enorme esforço de memória, que tanto pode ser entendido com a recuperação de um sonho, ou uma regressão psicanalítica ou até terapia de vidas passadas.

        Tudo o que consegue relatar, de forma nebulosa, imprecisa e fragmentada, é que está de visita em uma casa, em que havia um moço e uma moça que se amavam. Havia também uma velha de idade tão avançada que nem havia mais noção de como chegara
ali. Essa ideia é o motivo dos dois jovens não poderem ficar juntos, pois a moça precisa cuidar dela.

        Desfeito o relacionamento, o menino é levado para sua casa pelo moço. O garoto vê o sofrimento do jovem. É um amor forte. Chegando a sua casa, o pai fala do muro novo que está sendo construído. A mãe está preocupada em ver se a roupa do
filho estava em ordem. O garoto, indignado, berra com os pais, dizendo que eles não sabiam nada do amor, preocupados que estavam com questões tão insignificantes. Percebeu que o pai e mãe se suportavam e tinham transformado seu casamento em
um desastre confortável.

        Do ponto de vista da composição, o conto “Nenhum, nenhuma” apresenta dois eixos bem distintos: o passado e o presente.

        Portanto, relembrando: neste conto, apresenta-se um narrador-personagem que se esforça em relembrar uma experiência de sua infância, mas que não consegue compor integralmente todas as cenas, os detalhes dessa vivência e, por isso, só tem contato
com elementos esgarçados de memória, o que cria uma atmosfera de imprecisão e de incertezas, próprias de quem se esforça por recuperar momentos longínquos do passado. Esse esforço determina dois planos na narrativa: o do passado (infância) e o do presente (memória) que são diferenciados inclusive tipograficamente, no texto impresso.

        Quando criança, o Menino estivera hospedado por vários dias numa fazenda e vira um casal de namorados ter que se separar porque a moça não podia abandonar uma velhinha que parecia teimar em viver, a despeito de sua velhice e doença. Observando
os olhares apaixonados desse casal, o garoto encanta-se com a beleza da moça, sentindo até mesmo raiva e ciúmes do namorado. Aquele amor tão intenso que percebia no jovem casal o fazia pensar que deveria ser perpetuado nas relações e não abrandado
pelas tarefas diárias, como parecia ter ocorrido com o amor que outrora unira os seus pais. Todas essas percepções contribuem para que o Menino descubra a diversidade do sentimento amoroso, ampliando pela experiência o seu conhecimento sobre a vida,
e promovem aprendizagem, amadurecimento.

Guimarães Rosa.

Entendendo o conto:

01 – Como o conto aborda a relação entre memória e tempo?

      O conto aborda a relação entre memória e tempo ao mostrar o narrador tentando recuperar as lembranças de sua infância, que se misturam à memória perdida, criando uma atmosfera de imprecisão e incerteza.

02 – Qual é a situação central que o narrador relembra da sua infância?

      O narrador relembra a situação em que ele estava hospedado em uma fazenda e observou um casal de namorados que teve que se separar devido à obrigação de cuidar de uma velha doente.

03 – Como o narrador reage ao amor intenso observado no casal de namorados na fazenda?

      O narrador se encanta com o amor intenso do casal e sente raiva e ciúmes do namorado. Ele reflete sobre a intensidade do amor e como isso contrasta com a apatia que ele percebeu em seu próprio relacionamento de seus pais.

04 – Como o conto aborda a dualidade entre passado e presente na narrativa?

      O conto diferencia o passado (infância) e o presente (memória) tipograficamente, mostrando como o narrador se esforça para recuperar cenas e detalhes do passado, criando uma atmosfera de imprecisão.

05 – Por que o casal de namorados na fazenda não pode ficar junto?

      O casal de namorados na fazenda não pode ficar junto porque a moça não pode abandonar a velhinha doente, que parece teimar em viver, apesar de sua velhice e doença.

06 – O que o narrador aprende com a experiência do casal de namorados na fazenda?

      O narrador aprende a diversidade do sentimento amoroso e amplia seu conhecimento sobre a vida ao observar o amor intenso do casal, o que o faz refletir sobre seu próprio relacionamento e as tarefas diárias que podem abrandar o amor.

 

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

CONTO: LUZ E EMOÇÃO - JOÃO GUIMARÃES ROSA - COM GABARITO

 Conto: LUZ E EMOÇÃO

JOÃO GUIMARÃES ROSA

        De repente lá vinha um homem a cavalo. Eram dois. Um senhor de fora, o claro da roupa. Miguilim saudou, pedindo a bênção. O homem trouxe o cavalo cá bem junto. Ele era de óculos, corado, alto, com um chapéu diferente, mesmo.

        -- Deus te abençoe, pequenino. Como é o teu nome?

        -- Miguilim. Eu sou irmão do Dito.

        -- E o seu irmão Dito é dono daqui?

        -- Não, meu senhor. O Ditinho está em glória.

        O homem esbarrava o avanço do cavalo, que ere zelado, manteúdo, formoso como nenhuma outro. Redizia:

        -- Ah, não sabia, não. Deus o tenha em sua guarda... Mas, que é que há, Miguilim?

        Miguilim queria ver se o homem estava mesmo sorrindo para ele, por isso é que o encarava.

        -- Por que você aperta os olhos assim? Você não é limpo de vista? Vamos até lá. Quem é que está em sua casa?

        -- É Mãe, e os meninos...

        Estava Mãe, estava Tio Terêz, estavam todos. O Senhor alto e claro se apeou. O outro que vinha com ele era uma camarada. O senhor perguntava a Mãe muitas coisas do Miguilim. Depois perguntava a ele mesmo: __ “Miguilim, espia daí: quantos dedos da minha mão você está enxergando? E agora?”

        Miguilim espremia os olhos. Drelina e a Chica riam. Tomezinho tinha ido se esconder.

        -- Este nosso rapazinho tem a vista curta. Espera aí, Miguilim...

        E o senhor tirava os óculos e punha-os em Miguilim, com todo o jeito.

        -- Olha, agora!

        Miguilim olhou. Nem não podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo e diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessoas. Via os grãozinhos de areia, a pele da terra, as pedrinhas menores, as formiguinhas passeando no chão de uma distância. E tonteava. Aqui, ali, meu Deus, tanta coisa, tudo... O senhor tinha retirado dele os óculos, e Miguilim ainda apontava, falava, contava o que tinha visto. Mãe esteve assim assustada; mas o senhor dizia que aquilo era do modo mesmo, só que Miguilim também carecia de usar óculos, dali por diante. O senhor bebia café com eles. Era o doutor José Lourenço, do Curvelo. Tudo podia. Coração de Miguilim batia descompassado, ele careceu de ir lá dentro, contar à Rosa, à Maria Pretinha, a Mãitina. A Chica veio correndo atrás, mexeu: -- “Miguilim, você é piticego...” E ele respondeu: -- “Donazinha”...                                                   

        Quando voltou, o doutor José Lourenço já tinha ido embora.

        “Você está triste, Miguilim?” __ Mãe perguntou.

        Miguilim não sabia. Todos eram maiores do que ele, as coisas reviravam sempre dum modo tão diferente, eram grandes demais.

        -- Pra onde ele foi?

        -- A foi pra a Vereda do Tipã, onde os caçadores estão. Mas amanhã ele volta, de manhã, antes de ir s’embora para a cidade. Disse que, você, querendo, Miguilim, ele junto te leva... -- O doutor era homem muito bom, levava o Miguilim, lá ele comprava uns óculos pequenos, entrava para a escola, depois aprendia ofício. -- “Você mesmo quer ir?”

        Miguilim não sabia. Fazia peso para não soluçar. Sua alma, até ao fundo, se esfriava. Mas Mãe disse:

       Vai meu filho. É a luz dos teus olhos, que só Deus teve poder para te dar. Vai. Fim do ano, a gente puder faz a viagem também. Um dia todos se encontram...

 Corpo e alma. Manuelzão e Miguilim. Rio de Janeiro, Jose Olympio. V. 1. P. 100-102.

           Fonte: Português – Linguagem & Participação, 8ª Série – MESQUITA, Roberto Melo / Martos, Cloder Rivas – 2ª edição – 1999 – Ed. Saraiva, p. 105-8.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Está em glória: está morto.

·        Descompassado: num ritmo irregular.

·        Esbarrava: impedia, detinha.

·        Careceu: precisou.

·        Manteúdo: bem cuidado.

·        Piticego: que tem problemas de visão.

·        Apeou: desceu do animal, desmontou.

02 – Faça um resumo do texto, completando o parágrafo abaixo:

        Miguilim é a personagem principal dessa história. Seu irmão Ditomorreu. O visitante chama-se José Lourenço. Ele é um homem poderoso. Percebe que Miguilim precisa de óculos e faz à mãe do menino a seguinte proposta: leva-lo à cidade, comprar óculos para o menino, matriculá-lo numa escola e ensinar-lhe um ofício.

03 – O texto é narrado em terceira pessoa. Entretanto, o narrador identifica-se com Miguilim em seu modo de ver e interpretar a realidade. O que o narrador procura passar para o leitor com as duas orações iniciais do texto?

      A dificuldade de Miguilim em enxergar. Ele vê apenas um velho, inicialmente, que depois se desdobra em dois vultos.

04 – Observe a primeira fala de Miguilim. O que ela nos revela?

      Ela nos revela sua forte ligação com o irmão que morrera, pois é como “irmão do Dito” que ele se apresenta ao estranho.

05 – É possível imaginar como seria a vida dessa família no lugar onde morava? Justifique sua resposta.

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: É um lugar bastante afastado, sem nenhum recurso. Um lugar onde o progresso ainda não chegou.

06 – Qual a reação do menino diante da experiência de enxergar com clareza o mundo à sua volta?

      O menino ficou extremamente emocionado, querendo falar sobre o que via.

07 – Por que o coração de Miguilim bateu descompassado ao colocar os óculos do doutor?

      Ele emocionou-se com a riqueza de detalhes de tudo que o rodeava. O que viu era tudo novidade para ele.

08 – Copie a alternativa correta:

        Miguilim não sabia se estava triste porque o médico partira.

        “Todos eram maiores do que ele, as coisas reviravam sempre dum modo tão diferente...” Esse trecho do texto quer mostrar que Miguilim:

a)   É muito criança e precisa da mãe para ajudá-lo em tudo.

b)   Sente-se imaturo e não quer aceitar as imposições do mundo adulto.

c)   Sente-se impotente diante dos fatos que ocorrem e escapam de seu controle.

09 – É sempre difícil a uma mãe separar-se de um filho, principalmente quando ele é pequeno. Por que, então, a mãe de Miguilim o incentiva a partir?

      Ela sabe que, se o menino continuar naquele lugar, além de continuar não enxergando, não terá nenhuma perspectiva de vida futura.

10 – O doutor oferece melhores perspectivas de vida para Miguilim, mas ele parece não se estusiasmar. Por quê?

      Ele está dividido entre ter a oportunidade de uma vida melhor e separar-se dos entes queridos.

11 – Que frase do texto mostra uma sensação muito forte de Miguilim, que poderia ser interpretada como medo de mudar de vida ou de enfrentar o desconhecido?

      “Sua alma, até ao fundo, se esfriava”.

12 – Escolha as alternativas que se apliquem a esta frase e copie-as: “É a luz dos teus olhos, que só Deus teve poder para te dar”.

a)   “Luz” significa não apenas “enxergar melhor” mas também uma oportunidade, uma saída para a vida do menino.

b)   A mãe agradece a Deus pelo fato de o menino poder vir a enxergar melhor.

c)   O aparecimento de José Lourenço é visto pela mãe como uma providência divina.

13 – O que você notou quanto ao vocabulário e às construções sintáticas desse texto?

      Resposta pessoal do aluno.

 

 

terça-feira, 4 de agosto de 2020

CONTO: AS MARGENS DA ALEGRIA - JOÃO GUIMARÃES ROSA - COM GABARITO

Conto: As margens da alegria

João Guimarães Rosa

        Esta é a estória.

        Ia um menino, com os tios, passar dias no lugar onde se construía a grande cidade. Era uma viagem inventada no feliz; para ele, produzia-se em caso de sonho. Saíam ainda com o escuro, o ar fino de cheiros desconhecidos. A mãe e o pai vinham trazê-lo ao aeroporto. A tia e o tio tomavam conta dele, justínhamente. Sorria-se, saudava-se, todos se ouviam e falavam. O avião era da companhia, especial, de quatro lugares. Respondiam-lhe a todas as perguntas, até o piloto conversou com ele. O voo ia ser pouco mais de duas horas. O menino fremia no acorçoo, alegre de se rir para si, confortavelzinho, com um jeito de folha a cair. A vida podia às vezes ralar numa verdade extraordinária. Mesmo o afivelarem-lhe o cinto de segurança virava forte afago, de proteção, e logo novo senso de esperança: ao não-sabido, ao mais. Assim um crescer e desconter-se — certo como o ato de respirar — o de fugir para o espaço em branco. O menino. E as coisas vinham docemente de repente, seguindo harmonia prévia, benfazeja, em movimentos concordantes: as satisfações antes da consciência das necessidades. Davam-lhe balas, chicles, à escolha. Solicito de bem-humorado, o tio ensinava-lhe como esta reclinável o assento bastando a gente premer manivela. Seu lugar era o da janelinha, para o amável mundo.

        Entregavam-lhe revistas, de folhear, quantas quisesse, até um mapa, nele mostravam os pontos em que ora e ora se estava, por cima de onde. O menino deixava-as, fartamente, sobre os joelhos, e espiava: as nuvens de amontoada amabilidade, o azul de só ar, aquela claridade à larga, o chão plano em visão cartográfica, repartido de roças e campos, o verde que se ia a amarelos e vermelhos e a pardo e a verde; e, além, baixa, a montanha. Se homens, meninos, cavalos e bois — assim insetos? Voavam supremamente. O menino, agora, vivia; sua alegria despedindo todos os raios. Sentava-se, inteiro, dentro do macio rumor do avião: o bom brinquedo trabalhoso.

        Ainda nem notara que, de fato, teria vontade de comer, quando a tia já lhe oferecia sanduíches. E prometia-lhe o tio as muitas coisas que ia brincar e ver, e fazer e passear, tanto que chegassem. O menino tinha tudo de uma vez, e nada, ante a mente. A luz e a longa-longa-longa nuvem.

        Chegavam.

II

        Enquanto mal vacilava a manhã.

        A grande cidade apenas começava a fazer-se, num semi-ermo, no chapadão: a mágica monotonia, os diluídos ares. O campo de pouso ficava a curta distância da casa — de madeira, sobre estações, quase penetrando na mata. O menino via, vislumbrava.

        Respirava muito. Ele queria poder ver ainda mais vívido — as novas tantas coisas — o que para os seus olhos se pronunciava. A morada era pequena, passava-se logo à cozinha, e ao que não era bem quintal, antes breve clareira, das árvores que não podem entrar dentro de casa. Altas, cipós e orquideazinhas amarelas delas se suspendiam. Dali, podiam sair índios, a onça, leão, lobos, caçadores?

        Só sons. Um — e outros pássaros — com cantos compridos. Isso foi o que abriu seu coração. Aqueles passarinhos bebiam cachaça?

        Senhor! Quando avistou o peru, no centro do terreiro, entre a casa e as árvores da mata. O peru, imperial, dava-lhe as costas, para receber sua admiração. Estalara a cauda, e se entufou, fazendo roda: o rapar das asas no chão brusco, rijo se proclamara.

        Grugulejou, sacudindo o abotoado grosso de bagas rubras; e a cabeça possuía laivos de um azul-claro, raro, de céu e sanhaços; e ele, completo, torneado, redondoso, todo em esferas e planos, com reflexos de verdes metais em azul-e-preto — o peru para sempre. Belo, belo! Tinha qualquer coisa de calor, poder e flor, um transbordamento. Sua ríspida grandeza tonltriante. Sua colorida empáfia. Satisfazia os olhos, era de se tanger trombeta. Colérico, encachiado, andando, gruzlou outro gluglo. O menino riu, com todo o coração. Mas só bis-viu. Já o chamavam, para o passeio.

III

        Iam de jipe, iam aonde ia ser um sítio do Ipê. O menino repetia-se em íntimo o nome de cada coisa.

        A poeira, alvissareira. A malva-do-campo, os lentiscos. O velame-branco, de pelúcia. A cobra-verde, atravessando a estrada. A arnica: em candelabros pálidos. A aparição angélica dos papagaios.

        As pitangas e seu pingar. O veado campeiro: o rabo branco. As flores em pompa arroxeadas da canela-de-ema. O que o tio falava: que ali havia “imundície de perdizes”. A tropa de seriemas, além, fugindo, em fila, índio-a-índio. O par de garças. Essa paisagem de muita largura, que o grande sol alagava.

        O buriti, à beira do corguínho, onde, por um momento, atolaram. Todas as coisas, surgidas do opaco. Sustentava-se delas sua incessante alegria, sob espécie sonhosa, bebida, em novos aumentos de amor. E em sua memória ficavam, no perfeito puro, castelos já armados. Tudo, para a seu tempo ser dadamente descoberto, fizera-se primeiro estranho e desconhecido. Ele estava nos ares. Pensava no peru, quando voltavam. Só um pouco, para não gastar fora de hora o quente daquela lembrança, do mais importante, que estava guardado para ele, no terreirínho das árvores bravas. Só pudera tê-lo um instante, ligeiro, grande, demoroso. Haveria um, assim, em cada casa, e de pessoa?

        Tinham fome, servido o almoço, tomava-se cerveja. O tio, a tia, os engenheiros. Da sala, não se escutava o galhardo ralhar dele, seu grugulejo? Esta grande cidade ia ser a mais levantada no mundo.

        Ele abria leque, impante, explodido, se eunava… Mal comeu dos doces, a marmelada, da terra, que se cortava bonita, o perfume em açúcar e carne de flor. Saiu, sôfrego de o rever.

        Não viu: imediatamente. A mata é que era tão feia de altura. E — onde? Só umas penas, restos, no chão. — “Uê se matou. Amanhã não é o dia-de-anos do doutor?”

        Tudo perdia a eternidade e a certeza; num lufo, num átimo, da gente as mais belas coisas se roubavam. Como podiam? Por que tão de repente? Soubesse que ia acontecer assim, ao menos teria olhado mais o peru aquele. O peru-seu desaparecer no espaço. Só no grão nulo de um minuto, o menino recebia em si um miligrama de morte.

        Já o buscavam: — “Vamos aonde a grande cidade vai ser, o lago.

IV

        Cerrava-se, grave, num cansaço e numa renúncia à curiosidade, para não passear com o pensamento.

        Ia. Teria vergonha de falar do peru. Talvez não devesse, não fosse direito ter por causa dele aquele doer, que põe e punge, de dó, desgosto e desengano. Mas, matarem-no, também, parecia-lhe obscuramente algum erro. Sentia-se sempre mais cansado. Mal podia com o que agora lhe mostravam, na circuntristeza: o um horizonte, homens no trabalho de terraplenagem, os caminhões de cascalho, as vagas árvores, um ribeirão de águas cinzentas, o velame-do-campo apenas uma planta desbotada, o encantamento morto e sem pássaros, o ar cheio de poeira. Sua fadiga, de impedida emoção, formava um medo secreto: descobria o possível de outras adversidades, no mundo maquinal, no hostil espaço; e que entre o contentamento e a desilusão, na balança infidelíssima, quase nada medeia. Abaixava a cabecinha.

        Ali fabricava-se o grande chão do aeroporto — transitavam no extenso as compressoras, caçambas, cilindros, o carneiro socando com seus dentes de pilões, as betumadoras.

        E como haviam cortado lá o mato? — a tia perguntou.

        Mostraram-lhe a derrubadora, que havia também: com à frente uma lâmina espessa, limpa-trilhos, à espécie de machado. Queria ver? Indicou-se uma árvore: simples, sem nem notável aspecto, à orla da área matagal. O homenzinho tratorista tinha um toco de cigarro na boca.

        A coisa pôs-se em movimento.

        Reta, até que devagar. A árvore, de poucos galhos no alto, fresca, de casca clara…, e foi só o chofre: uh… sobre o instante ela para lá se caiu, toda, toda.

        Trapreara tão bela. Sem nem se poder apanhar com os olhos o acertamento — o inaudito choque — o pulso da pancada. O menino fez ascas.

        Olhou o céu — atônito de azul. Ele tremia. A árvore, que morrera tanto. A limpa esguiez do tronco e o marulho imediato e final de seus ramos — da parte de nada.

        Guardou dentro da pedra.

V

        De volta, não queria sair mais ao terreirinho, lá era uma saudade abandonada, um incerto remorso.

        Nem ele sabia bem. Seu pensamentozinho estava ainda na fase hieroglífica. Mas foi, depois do jantar. E — a nem espetaculosa surpresa — viu-o, suave inesperado: o peru, ali estava! Oh, não. Não era o mesmo. Menor, menos muito. Tinha o coral, a arrecauda, a escova, o grugulhar grufo, mas faltava em sua penosa elegância o recacho, o englobo, a beleza esticada do primeiro. Sua chegada e presença, em todo o caso, um pouco consolavam.

        Tudo se amaciava na tristeza. Até o dia; isto era já o vir da noite.

        Porém, o subir da noitinha é sempre e sofrido assim, em toda a parte. O silêncio saía de seus guardados. O menino, timorato, aquietava-se com o próprio quebranto: alguma força, nele, trabalhava por arraigar raízes, aumentar-lhe alma.

        Mas o peru se adiantava até a beira da mata. Ali adivinhara o quê? Mal dava para se ver, no escurecendo. E era a cabeça degolada do outro, atirada ao monturo. O menino se doía e se entusiasmava.

        Mas: não. Não por simpatia companheira e sentida o peru até ali viera, certo, atraído. Movia-o um ódio. Pegava de bicar, feroz, aquela outra cabeça. O menino não entendia. A mata, as mais negras árvores, eram um montão demais; o mundo.

        Trevava.

        Voava, porém, a luzinha verde, vindo mesmo da mata, o primeiro vagalume. Sim, o vagalume, sim, era lindo! — tão pequenino, no ar, um instante só, alto, distante, indo-se. Era, outra vez em quando, a alegria.

João Guimarães Rosa, no livro “Primeiras estórias”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

Entendendo o conto:

01 – O título “As margens da alegria” constitui uma chave de interpretação: se o leitor identifica quais são as margens da alegria, em relação ao protagonista menino, estabelece o eixo que sustenta e estrutura o conto.

        Pela leitura global do texto, pode-se dizer que, para o menino, as margens da alegria se definem pelos seguintes fatores:

a)   Encantamento com a luz e medo perante a escuridão.

b)   Deslumbramento com a beleza e dor frente à morte.

c)   Curiosidade da criança e descrença do homem.

d)   Construção da cidade e destruição das árvores.

02 – Esta é a estória.

        Ao escolher a frase acima para iniciar seu texto, o autor promove o seguinte efeito de sentido junto ao leitor.

a)   Ficcionalidade.

b)   Realidade.

c)   Diacronia.

d)   Ação.

03 – O conto, publicado em 1962, refere-se à construção de uma cidade cujo nome não é mencionado. Trechos da narrativa permitem supor que se trata de Brasília, fundada em 1960. O trecho do conto que torna mais provável essa suposição é:

a)   Ia um menino, com os tios, passar dias no lugar onde se construía a grande cidade.

b)   A grande cidade apenas começava a fazer-se, num semi-ermo, no chapadão.

c)   Esta grande cidade ia ser a mais levantada do mundo.

d)   “Vamos aonde a grande cidade vai ser, o lago...”.

04 – Os episódios que envolvem os dois perus são fundamentais para o menino e seu conhecimento de mundo.

        No que diz respeito à violência, esses episódios indicam a seguinte percepção do menino:

a)   Nem os homens nem os animais são violentos.

b)   Os homens são violentos sem motivo aparente.

c)   Tanto os homens quanto os animais são violentos.

d)   Os animais são violentos por motivo de sobrevivência.

05 – Guimarães Rosa é conhecido por seus neologismos, isto é, pelas palavras que criava. O trecho que contém um neologismo se encontra em:

a)   Era uma viagem inventada no feliz; para eles, produzia-se em caso de sonho.

b)   E as coisas vinham docemente de repente, seguindo harmonia prévia.

c)   Mal podia com o que agora lhe mostravam, na circuntristeza.

d)   O que o Tio falava: que ali havia “imundície de perdizes”.

06 – Quem é a personagem principal?

      A personagem é o Menino e, assim como ele, as outras personagens são apenas identificadas pelo grau de parentesco.

07 – Que tipo de narrador traz o conto?

      O conto é narrado em terceira pessoa.

08 – Em que tom o conto é narrado?

      Em um tom lírico reflexivo.

09 – Que fatos provocaram o desenrolar dos acontecimentos descritos no texto?

      A primeira viagem de um menino, a descoberta do mundo: a crueldade representada pela morte do peru e a beleza e a alegria representadas pelo vagalume.

10 – De que forma o autor se identifica profundamente com o protagonista?

      Como se ele espelhasse sua própria trajetória, sua infância, nessas delicadas passagens, em seus estados de alma, nos dolorosos conflitos, nas fascinantes descobertas.

11 – O clímax de tanta felicidade após a viagem se dá por qual motivo?

      Quando o menino encontra um peru majestoso.

12 – Por que durou pouco tempo a felicidade do menino por ter encontrado um peru?

      O menino fica sabendo que a ave havia sido morta para o aniversário do Tio.

13 – A luz do vagalume em meio a escuridão da floresta simboliza o quê?

      Simboliza a esperança que se deve ter após a queda do Paraíso, após o mergulho nas imperfeições da condição humana.

     

 

 


sábado, 18 de maio de 2019

ROMANCE: GRANDE SERTÃO: VEREDAS - (FRAGMENTO) - JOÃO GUIMARÃES ROSA - COM GABARITO

Romance: Grande Sertão: veredas –(fragmento)
                  João Guimarães Rosa

        De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos. Vivi puxando difícil de difícel, peixe vivo no moquém: quem mói no asp’ro, não fantasêia. Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossegos, estou de range rede. E me inventei neste gosto, de especular ideia. O diabo existe e não existe? Dou o dito. Abrenúncio. Essas melancolias. O senhor vê: existe cachoeira; e pois? Mas cachoeira é barranco de chão, e água se caindo por ele, retombando; o senhor consome essa água, ou desfaz o barranco, sobra cachoeira alguma? Viver é negócio muito perigoso...


        Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum! – é o que digo. O senhor aprova? Me declare tudo, franco – é alta mercê que me faz: e pedir posso, encarecido. Este caso – por estúrdio que me vejam – é de minha certa importância. Tomara não fosse... Mas, não diga que o senhor, assisado e instruído, que acredita na pessoa dele?! Não? Lhe agradeço! Sua alta opinião compõe minha valia. Já sabia, esperava por ela – já o campo! Ah, a gente, na velhice, carece de ter sua aragem de descanso. Lhe agradeço. Tem diabo nenhum. Nem espírito. Nunca vi. Alguém devia de ver, então era eu mesmo, este vosso servidor. Fosse lhe contar... Bem, o diabo regula seu estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens. Até: nas crianças – eu digo. Pois não é ditado: “menino – trem do diabo”? E nos usos, nas plantas, nas águas, na terra, no vento... Estrumes. ... O diabo na rua, no meio do redemunho...
        Hem? Hem? Ah. Figuração minha, de pior pra trás, as certas lembranças. Mal haja-me! Sofro pena de contar não... Melhor, se arrepare: pois, num chão, e com igual formato de ramos e folhas, não dá a mandioca mansa, que se come comum, e a mandioca-brava, que mata? Agora, o senhor já viu uma estranhez? A mandioca-doce pode de repente virar azangada – motivos não sei; às vezes se diz que é por replantada no terreno sempre, com mudas seguidas, de manaíbas – vai em amargando, de tanto em tanto, de si mesma toma peçonhas. E, ora veja: a outra, a mandioca-brava, também é que às vezes pode ficar mansa, a esmo, de se comer sem nenhum mal. E que isso é? Eh, o senhor já viu, por ver, a feiura de ódio franzido, carantonho, nas faces duma cobra cascavel? Observou o porco gordo, cada dia mais feliz bruto, capaz de, pudesse, roncar e engolir por sua suja comodidade o mundo todo? E gavião, corvo, alguns, as feições deles já representam a precisão de talhar para adiante, rasgar e estraçalhar a bico, parece uma quicé muito afiada por ruim desejo. Tudo. Tem até tortas raças de pedras, horrorosas, venenosas – que estragam mortal a água, se estão jazendo em fundo de poço; o diabo dentro delas dorme: são o demo. Se sabe? E o demo – que é só assim o significado dum azougue maligno – tem ordem de seguir o caminho dele, tem licença para campear?! Arre, ele está misturado em tudo.
        Que o que gasta, vai gastando o diabo de dentro da gente, aos pouquinhos, é o razoável sofrer. E a alegria de amor – compadre meu Quelemém, diz. Família. Deveras? É, e não é. O senhor ache e não ache. Tudo é e não é ... Quase todo mais grave criminoso feroz, sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus-amigos! Sei desses. Só que tem os depois – e Deus, junto. Vi muitas nuvens.

                                          15. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982. p. 11-2.
Entendendo o romance:

01 – De acordo com o romance, qual o significado das palavras abaixo:

·        Abrenúncio: do latim abrenuntio, interjeição que tem o sentido de “credo”, “Deus me livre”.

·        Manaíba: do tupi, muda de mandioca.

·        Assisado: que tem siso, juízo; ajuizado.

·        Moquém: grelha feita de varas usada para secar ou assar carne e peixe.

·        Azougue: do árabe, pessoa muito viva e esperta.

·        Peçonha: veneno.

·        Campear: andar pelo campo, procurar.

·        Carantonho: cara grande e feia.

·        Quicé: do tupi, o mesmo que “faca velha”.

02 – Riobaldo, o narrador, conta sua história a um interlocutor que está presente, mas cuja voz não se manifesta explicitamente na narrativa.
a)   Identifique um trecho do texto em que a fala de Riobaldo leva em conta a presença do interlocutor.
“O senhor vê”; “Explico ao senhor”; etc.

b)   No trecho: “Hem? Hem? Ah. Figuração minha [...]”, o que o interlocutor deve ter perguntado a Riobaldo?
Deve ter perguntado o que foi que Riobaldo disse. (Riobaldo deve ter tido uma fantasia e dito “O diabo na rua, no meio do redemunho...”).

03 – Riobaldo afirma que, antes, quando era jagunço, não tinha tempo para fantasiar, mas agora, aposentado (de “range rede”), dera para especular ideias. Qual é o assunto que lhe interessa?
      A existência ou não do demônio.

04 – O excerto lido, embora narrativo, apresenta uma estrutura dissertativo-argumentativa, isto é, o narrador desenvolve uma ideia central com argumentos e, no final, chega a uma conclusão.
a)   Qual é a tese ou ideia central – apresentada no 2° parágrafo – que o narrador pretende desenvolver?
A de que o diabo vive dentro dos homens (e das coisas), é o lado sombrio de cada um.

b)   O exemplo da mandioca fundamenta a tese adequadamente? Por quê?
Sim, pois sendo ela uma mandioca-doce, boa para comer, pode tornar-se uma mandioca venenosa, o que prova que o mal está dentro das coisas e das pessoas.

05 – Segundo o 3° parágrafo, o mal está nas coisas: nas aves, nos animais, nas pedras, está misturado em tudo.
a)   De acordo com o último parágrafo, o que pode combater o mal?
O sofrimento e o amor.

b)   “Tudo é e não é ...”. Que sentido tem essa frase no contexto? Os argumentos expostos fundamentam essa afirmação?
Para o pensamento dialético de Riobaldo, tudo é relativo, depende do ponto de vista – o que fica claro com o exemplo da cachoeira. Os demais argumentos também comprovam a relatividade do bem e do mal.

c)   Compare a conclusão com a tese. Há coincidência ou contradição entre elas?
Há coincidência. Para Riobaldo o diabo vige nos crespos do homem, isto é, o mal e o bem estão dentro de cada ser.

06 – Não a chega a ficar claro em Grande sertão se Riobaldo fizera ou não um pacto com o demônio. A própria personagem tem dúvida se houve ou não o pacto.
a)   Considerando a etapa da vida em que se encontra Riobaldo, por que essa questão lhe interessa tanto?
Porque, como Riobaldo já tem uma idade avançada, se o demônio existe, ele em breve levará sua alma.

b)   Pela conclusão a que chega, Riobaldo tem motivos para continuar se preocupando?
Não, pois, de acordo com a tese da personagem, o diabo não existe como pessoa, mas se manifesta no lado ruim de cada ser.

c)   Na sua opinião, Riobaldo acredita em seus próprios argumentos?
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Talvez não, pois, se acreditasse, não teria necessidade de argumentar sobre seu ponto de vista e querer saber a opinião do interlocutor.

07 – A linguagem regionalista de Guimarães Rosa é um dos traços da originalidade da obra.
a)   O excerto lido é uma narração oral ou escrita? Identifique no texto marcas que justifiquem sua resposta.
Trata-se de uma narração oral, conforme as marcas de oralidade: “e pois?”; “explico”; “Não?”; “Ah”; “Hem? Hem?”; etc.

b)   Com a ajuda do glossário apresentado no final do texto, comente a linguagem do autor, levando em conta a seleção vocabular, a estruturação sintática e a melodia das frases.
A linguagem do autor se caracteriza por apresentar um vocabulário de origem diversa, expressões regionais, prosódia típica do homem sertanejo.