terça-feira, 14 de maio de 2019

ROMANCE: SÃO BERNARDO (FRAGMENTO) - GRACILIANO RAMOS - COM GABARITO

Romance: São Bernardo - (fragmento)
                   
                   Graciliano Ramos

        O episódio a ser lido situa-se no final da obra, dois anos após a morte de Madalena. Os amigos deixaram de frequentar a casa. Paulo Honório, concretizando uma antiga ideia de compor um livro com auxílio de pessoas mais entendidas, entrega-se à empreitada de contar a sua história. Após a leitura do fragmento abaixo, responda às questões sobre a obra em questão.
        “Sou um homem arrasado. Doença! Não. Gozo de perfeita saúde. Quando o Costa Brito, por causa de duzentos mil réis que me queria abafar, vomitou os dois artigos, chamou-me doente, aludindo a crimes que me imputam. O Brito da Gazeta era uma besta. Até hoje, graças a Deus, nenhum médico me entrou em casa. Não tenho doença nenhuma.
        O que estou é velho. Cinquenta anos pelo São Pedro. Cinquenta anos perdidos, cinquenta anos gastos sem objetivo, a maltratar-me e a maltratar os outros. O resultado é que endureci, calejei, e não é um arranhão que penetra esta casaca espessa e vê ferir cá dentro a sensibilidade embotada.
        Cinquenta anos! Quantas horas inúteis! Consumir-se uma pessoa a vida inteira sem saber para quê! Comer e dormir como um porco! Levantar-se cedo todas as manhãs e sair correndo, procurando comida! E depois guardar para os filhos, para os netos, para muitas gerações. Que estupidez! Que porcaria! Não é bom vir o diabo e levar tudo? [...]
        As janelas estão fechadas. Meia-noite. Nenhum rumor na casa deserta.
        Levanto-me, procuro uma vela, que a luz vai apagar-se. Não tenho sono. Deitar-me rolar no colchão até a madrugada, é uma tortura. Prefiro ficar sentado, concluindo isto. Amanhã não terei com que me entreter.
         Ponho a vela no castiçal, risco um fósforo e acendo-o. sinto um arrepio. A lembrança de Madalena persegue-me. Diligencio afastá-la e caminho em redor da mesa. Aperto as mãos de tal forma que me firo com as unhas, e quando caio em mim estou mordendo os beiços a ponto de tirar sangue.    
        De longe em longe sento-me fatigado e escrevo uma linha. Digo em voz baixa:
        – Estraguei a minha vida, estraguei-a estupidamente.
        A agitação diminui.
        – Estraguei a minha vida estupidamente.
        Penso em Madalena com insistência. Se fosse possível recomeçarmos…Para que enganar-me? Se fosse possível recomeçarmos aconteceria exatamente o que aconteceu. Não consigo modificar-me, é o que mais me aflige.
         A molecoreba de Mestre Caetano arrasta-se por aí, lambuzada, faminta. A Rosa, com a barriga quebrada de tanto parir, trabalha em casa, trabalha no campo e trabalha na cama. O marido é cada vez mais molambo. E os moradores que me restam são uns cambembes como ele.         
        Para ser franco, declaro que esses infelizes não me inspiram simpatia. Lastimo a situação em que se acham, reconheço ter contribuído para isso, mas não vou além. Estamos tão separados! A princípio estávamos juntos, mas esta desgraçada profissão nos distanciou.
        Madalena entrou aqui cheia de bons sentimentos e bons propósitos. Os sentimentos e os propósitos esbarraram com a minha brutalidade e o meu egoísmo.     
        Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins.      
        E a desconfiança terrível, que me aponta inimigos em toda a parte!
        A desconfiança é também consequência da profissão.
        Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes.
        Se Madalena me via assim, com certeza me achava extraordinariamente feio.
        Fecho os olhos, agito a cabeça para repelir a visão que me exibe essas deformidades monstruosas.
        A vela está quase a extinguir-se.
        Julgo que delirei e sonhei com atoleiros, rios cheios e uma figura de lobisomem.
        Lá fora há uma treva dos diabos, um grande silêncio. Entretanto o luar entra por uma janela fechada e o nordeste furioso espalha folhas secas no chão.
        É horrível! Se aparecesse alguém…Estão todos dormindo.
        Se ao menos a criança chorasse…Nem sequer tenho amizade a meu filho. Que miséria!
        Casimiro Lopes está dormindo, Marciano está dormindo. Patifes!
        E eu vou ficar aqui, às escuras, até não sei que hora, até que, morto de fadiga, encoste a cabeça à mesa e descanse uns minutos.”

        Graciliano Ramos (13.ed. Martins Fontes: São Paulo, 1970. p.241 e 246-8).
Entendendo o texto:

01 – Dê o significado das palavras a abaixo:
·        Imputar: atribuir.
·        Diligenciar: esforçar-se, empenhar-se.
·        Molecoreba: molecada.
·        Cambembe: desajeitado, desastrado, sem importância.
·        Nordeste: vento.

02 – No final da vida, Paulo Honório admite ser e ter sido um homem bruto, egoísta e insensível. E mais: sente-se feio, um aleijado, um monstro. Lembrando-se de Madalena, chega a ferir-se nas mãos e nos lábios.
a)   Identifique, na linguagem do narrador-personagem, traços de sua brutalidade como pessoa.
Expressões como “vomitou dois artigos”; “O Brito... era uma besta”; “molecoreba”.

b)   De acordo com o narrador-personagem, de que provêm essas características?
Da profissão.

c)   Nessa explicação, nota-se a influência de uma corrente científica do século XIX. Qual é ela?
O determinismo.

d)   O que o sentimento de se achar fisicamente monstruoso revela a respeito da condição psicológica e moral de Paulo Honório?
Que ele se sente culpado pela destruição de Madalena e de sua própria vida.

e)   Que tipo de desejo inconsciente é revelado no trecho: “Aperto as mãos de tal forma que me firo com as unhas, e quando caio em mim estou mordendo os beiços a ponto de tirar sangue”?
O desejo de autopunição, autoflagelação.

f)    Ao fazer um balanço de seu relacionamento com Madalena, Paulo Honório afirma que, se pudesse recomeçar sua vida com ela, tudo aconteceria de novo. Por que ele pensa assim?
Porque não se sente capaz de mudar.

03 – Segundo o crítico João Luís Lafetá, São Bernardo narra a trajetória de um burguês, Paulo Honório, que passara da condição de caixeiro-viajante e guia de cego à de rico proprietário da Fazenda São Bernardo. Para atingir seus objetivos capitalistas, o protagonista elimina todos os empecilhos que se colocam à sua frente, inclusive pessoas.
a)   Releia este trecho:
“Cinquenta anos! Quantas horas inúteis! Consumir-se uma pessoa a vida inteira sem saber para quê! Comer e dormir como um porco! Levantar-se cedo todas as manhãs e sair correndo, procurando comida! E depois guardar comida para os filhos, para os netos, para muitas gerações. Que estupidez! Que porcaria! Não é bom vir o diabo e levar tudo?”
Que opinião Paulo Honório tem agora sobre o princípio capitalista da acumulação?
      Chega a consciência de que sua ânsia desenfreada de trabalhar para acumular não levou a nada; está sozinho, quase sem ter a quem deixar sua fortuna, e sua fazenda está em decadência.

b)   Karl Marx já apontava, no século XIX, um fenômeno decorrente das relações do sistema capitalista, a coisificação ou reificação, que consiste na extrema importância que se dá ao valor de troca da mercadoria, e não ao seu valor de uso. No plano das relações humanas, o interesse prevalece sobre sentimentos ou princípios morais, e as pessoas passam a ser vistas como coisas, como objetos. Identifique no texto uma passagem ou situação que evidencie a visão reificada que Paulo Honório tem do mundo.
Em especial a forma como ele se refere aos empregados Mestre Caetano, Rosa e aos filhos desse casal. Ele também reconhece que tratou mal aos outros a fim de alcançar seus objetivos.

04 – Praticamente sozinho, sem Madalena e abandonado por amigos, Paulo Honório consome as horas recordando sua vida e narrando em São Bernardo. Identifique um trecho que comprova ser São Bernardo um livro de recordações.
      Deitar-me, rolar no colchão até de madrugada, é uma tortura. Prefiro ficar sentado, concluindo isto. / De longe em longe sento-me fatigado e escrevo uma linha.

05 – Pelo trecho lido da obra, é possível afirmar que São Bernardo alcança um perfeito equilíbrio entre a análise social e a introspecção psicológica? Justifique.
      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Sim. Pelo balanço de vida de Paulo Honório e por suas reflexões interiores, nota-se o quanto ele está destruído como pessoa. E as causas disso são sociais: a ideologia capitalista da competição e da acumulação.

06 – São Bernardo assemelha-se, em vários aspectos, a Dom Casmurro, de Machado de Assis. Veja este trecho do início da obra de Machado, narrado por Bentinho:
        “O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice e adolescência. Pois, Senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui.
        Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; [...] falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo.”

a)   Em São Bernardo, Paulo Honório, no fim da vida, é a mesma pessoa?
Não. Embora o protagonista não se sinta capaz de mudar, na verdade já mudou: está mais sensível, admite erros e culpas.

b)   Tente explicar os motivos conscientes e inconscientes que teriam levado o protagonista a reconstruir sua própria história.
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Reconstruir a história pessoal é uma forma de compreende-la melhor e, nela, compreender-se.


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