Mostrando postagens com marcador THIAGO DE MELO. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador THIAGO DE MELO. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 3 de julho de 2025

CONTO: A HORA DA ONÇA BEBER ÁGUA - THIAGO DE MELLO - COM GABARITO

 Conto: A hora da onça beber água

           Thiago de Mello

        A onça que se cuide. É na hora da sede que pode chegar sua vez. Porque o caçador escovado não conhece apenas o lugar onde ela gosta de beber água. Sabe principalmente que onça é bicho de hábitos desassombrados e de metabolismo admiravelmente regular: pra cada coisa ela tem seu instinto certo. Não chega à perfeição do Emanuel Kant, raro animal alemão, que saía de casa todos os dias, sempre à mesma hora e com tamanha pontualidade, que, ao passar a pé, a caminho da universidade, pela porta do relojoeiro da cidade, prontamente este conferia o relógio: era as nove em ponto da manhã. Não. Onça não precisa de relógio, e não me consta, embora não seja de todo inverossímil, que ela, lá nos seus silêncios de olhos imóveis, se dedique à crítica da razão pura. O fato é que o bom mateiro sabe que a onça espera a primeira claridade da manhã, aquele instante em que as estrelas se despedem dos pássaros noturnos, para então se levantar e sair, com sua macia solenidade felina, narinas crescidas farejando o vento, no rumo do riacho de água fresquinha. Rente à beira, ela pára, mas não vai bebendo logo, não. Primeiro ela bate a água de leve com a pata. Dizem alguns que é para sentir a temperatura da água; eu concordo é com a minha gente da floresta, que acha que ela quer ver é se tem poraquê, o peixe-elétrico, cuja vibração ela pressente na pele, ou se tem piranha fervilhando ali por perto (a onça não é besta: ela sabe que em rio que tem piranha até jacaré nada de costas). Aí, então, sim, ela bebe sua água do dia. Pois é bem nesse momento que lhe chega o balaço calibre 44, rifle de papo amarelo. É um tiro só, que o caboclo não falha na mira, feita sem afobação, lá do alto da forquilha da árvore, onde ele varou a noite de tocaia.


Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh1O04wFt57V3Q8yJtSN3sNz5ue7Iu_jeQe8GXjM5_o2QqoA7QY0q0YiXAAiWjIf73Ru5hdC6m-2J4VPOXYxm8XqeRD72EG6JLSK96sH4dXHy8oWa_1KAfcZ3i4J2wLCUmMc0Yir8QxjNUDjjmiSqSprm94xmb6RxOpnNK7wfZ606u8xGUq6qtA1Y_0Ie0/s1600/images.jpg

        Não é sempre, porém, que a hora de beber água traz à onça o último gole de vida. Um ditado já avisa que um dia é da caça, outro é do caçador. E é tolo quem se esquece de que, quando mais se tem precisão, mais o tiro sai pela culatra. E vezes há em que o tiro nem chega a sair. Como aconteceu com o Altamirano lá na boca do igarapé do Pucu. Vou contar como foi.

        Mas antes, faço questão de esclarecer que o Altamirano não era um desses que matam onça só pela cobiça do couro, que vale lá fora os olhos da cara. Não. O caso do Altamirano, uma flor de pessoa, a quem conheci nos anos 50, lá na Costa do Varre-Vento, foi um caso de vingança, que pode não ser um sentimento dos mais nobres, mas adianto que o caboclo teve os seus poderosos motivos. Chego mesmo, hoje, com o tempo bem andado, a achar que foi uma questão de amor.

        Altamirano tinha uma novilha branquinha, chamada Princesa, que era o xodó dele. Os dois se queriam tanto, que ele chegava de manhãzinha na cerca do curral e meigamente a chamava pelo nome:

        -- Prin-ce-sa!

        Pois não é que a vaquinha (eu vi, ninguém me contou) reconhecia o amigo? Lá de longe, ela lhe respondia com um mugido demorado de gosto que parecia uma canção:

        -- Hummmmm, Hummmmm...

        Pois sucedeu que um dia a Princesa amanheceu toda estraçalhada, o quarto dianteiro já arrancado, Altamirano não precisou adivinhar; mal olhou, ficou logo sabendo. Além do mais, lá estavam, na terra molhada de sereno, as enormes marcas das patas da onça: era uma das baitas. Diante dos restos da sua novilhinha, o caboclo se jurou: hoje eu dou fim nessa danada.

        Mal anoiteceu, saiu com sua espingarda e foi esperar a fera. Abrigou-se num vão da sacopema formada pelas raízes altas de uma mungubeira, e ali ficou de atalaia. Ah, mas ele estava possuído pela ira, e a ira é sentimento que pode privar o homem dos sentidos e da inteligência. Pois não foi o que o Altamirano se descuidou do vento? Escolheu um lugar entre a onça e o vento, vento que levou para o faro agudíssimo da fera o cheiro do Altamirano.

        Leitor, queres saber de uma coisa? Eu vou é encurtar a história, porque ela termina triste. A onça veio por detrás, matou o Altamirano e depois foi beber sua água.

        Na vida, por via das dúvidas, a gente precisa sempre levar em conta o jeito do vento, senão o vento, o vento que é tão bom, pode se transformar, de repente, num grande amigo da onça.

Thiago de Mello.

Fonte: Letra e Vida. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos – Módulo 3 – CENP – São Paulo – 2005. p. 42-43.

Entendendo o conto:

01 – Qual o principal objetivo do caçador "escovado" ao observar os hábitos da onça?

      O principal objetivo do caçador é aproveitar o momento em que a onça está mais vulnerável, ou seja, na hora em que ela vai beber água, para abatê-la com um tiro certeiro. Ele se baseia nos hábitos regulares do animal para prever seu comportamento.

02 – Que precauções a onça toma antes de beber água, e qual a crença popular sobre isso?

      Antes de beber água, a onça bate de leve na superfície com a pata. Alguns dizem que é para sentir a temperatura, mas a crença popular da floresta é que ela faz isso para verificar a presença de peixe-elétrico (poraquê) ou piranhas por perto, que poderiam representam um perigo para ela.

03 – Por que o caso do Altamirano é diferente dos caçadores comuns de onça?

      O conto esclarece que Altamirano não caçava onças pela cobiça do couro. Seu caso foi motivado por vingança e, posteriormente, interpretado como uma questão de amor, devido à morte de sua novilha Princesa, a quem ele tinha grande afeto.

04 – Quem era Princesa e qual a relação dela com Altamirano?

      Princesa era uma novilha branquinha, o grande xodó de Altamirano. Eles tinham uma relação de muito carinho e reconhecimento mútuo, com Altamirano a chamando e a novilha respondendo com um mugido.

05 – Qual foi o erro fatal de Altamirano ao armar a tocaia para a onça?

      O erro fatal de Altamirano foi se descuidar do vento. Ele escolheu um local onde o vento levava seu cheiro diretamente para a onça, que, com seu faro agudíssimo, conseguiu detectá-lo.

06 – Que ditado popular é mencionado no conto para ilustrar a imprevisibilidade da caça?

      O ditado popular mencionado é: "um dia é da caça, outro é do caçador". Isso ressalta que, apesar das estratégias, o resultado de uma caçada pode variar, e nem sempre o caçador sai vitorioso.

07 – Qual a principal lição ou moral que o narrador busca transmitir ao final do conto?

      A principal lição é a importância de se considerar os fatores externos, como o vento, em qualquer situação da vida. O narrador enfatiza que o que pode parecer inofensivo (o vento) pode se tornar um "grande amigo da onça" se não for levado em conta, levando a desfechos tristes e inesperados.

 

CONTO: LEVAR A VIDA NA FLAUTA - THIAGO MELLO - COM GABARITO

 Conto: Levar a vida na flauta

           Thiago Mello

        Acho uma grande injustiça dizer mal do meu amigo Belarmino, só porque ele leva a vida na flauta. Há quem o diga um pândego, senão um irresponsável. Nada disso. Belarmino não ama a folga, não vive de brisa e pega no batente. Compreendam o meu amigo; ele é simplesmente um homem de alma leve, para quem só o fato de estar vivo já é uma enorme graça. Nasceu com vocação da felicidade. Prefere enxergar sempre o lado bom das coisas, e principalmente o das pessoas. Das pessoas em geral, mas em particular daquelas com quem ele vive, cujos defeitos ele vê, mas faz de conta que não vê e, por puro instinto, sem qualquer cálculo, deles sabe se cuidar. Em compensação, enaltece encantado as virtudes dos amigos, porque amizade é para ele a fina flor da vida. Encontra prazer no lance mais trivial de cada dia: o passarinho cantando, a moça que passa, o cheiro denso do mar, o bife enrolado com farofa de ovo, um chorinho da velha guarda ou uma canção do Roberto Carlos.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiaIzw4sRdyZDxophKfM2O-Mqs1xWLNR64MFIXCjdqZKwYvZy8rbckgMk9HXi1DiDKziX8_XjSJgrS0pLDFkcrf-VNGZeHnOVQFRhVxW5-Zj2qEXXdk6YFkcVIqdjD85ZBLfrhKXI79fUpwsK7OvcPFFgY3e5Ep1HZaBh5UcT-_Z4Tn2Ue3g6euU7ODAhs/s1600/image-4.png


        Não estou dizendo que para ele tudo são flores e que a vida sempre lhe vai às mil maravilhas. Muito pelo contrário. Como todo mundo, de vez em quando ele sente o gosto amargo da vida, conhece contingências ásperas, o dinheirinho mingua, doença na família, o seu time perde, o carro deu o prego. Mas ele jamais dá com o rabo na cerca. A diferença é que ele possui um misterioso mecanismo, localizado suponho que no cerebelo e não-acionado pela vontade consciente, que não permite que as contrariedades e os desagrados jamais o apoquentem, além de determinado limite. Por isso é que o Belarmino nunca perde o aprumo, a serenidade nem o riso.

        Não, não vive rindo para as paredes. Sorri até mais do que ri, só que o seu riso transmite confiança e é sinal de uma indisfarçável alegria de viver. Curioso, não é um melódico, não tem a virtude musical da risada do Newton Freitas, a quem Rubem Braga chamou de Flauta da Noite. É a brandura do seu olhar que lembra a suavidade de certos fraseios da flauta conversando com a harpa, no concerto de Mozart.

        É possível que a leveza da vida de Belarmino lhe venha um pouco, ou mais do que um pouco, da mulher que ele tem: além de bonita e bondosa, vive para lhe fazer as vontades, que ele nem precisa manifestar, ela adivinha. Mas ninguém calcule que ele é desses para quem tudo está bom, do tanto faz como tanto fez. Tem opinião própria, reclama, discorda, mas sempre em termos, de modos amáveis.

        E, como todo bom filho de Deus, Belarmino também sofre neste mundo, mas sem permitir que a dor ultrapasse os limites da sua filosofia – “Deus dá o frio conforme o cobertor" – que aliás não é nem dele nem minha, mas do Adoniran Barbosa.

        Estive com meu amigo faz pouco tempo. Soube que ele acabara de perder um filho, logo o caçula; fui visitá-lo. Recebeu delicado o meu abraço comovido, e sabem o que ele fez? Me convidou para uma partida de xadrez. Jogava com os cotovelos na mesa, as mãos sustentando o rosto enfiado no tabuleiro, e assoviando baixinho. Já com boa hora da partida, eu aguardava de olhar fixo o lance do seu cavalo, quando vi uma lágrima grossa cair bem em cima da coroa do rei. Condoído, quis lhe dar alguma palavra, mas ele falou antes de mim:

        -- Está aí o teu xeque-mate.

        Meu amigo é assim. Pelo requinte com que ele assovia um choro de Pixinguinha, desconfio que o nosso Belarmino poderia perfeitamente ganhar a vida na flauta.

Thiago de Mello.

Fonte: Letra e Vida. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos – Módulo 3 – CENP – São Paulo – 2005. p. 44-45.

Entendendo o conto:

01 – Como o narrador descreve a personalidade de Belarmino, contestando as opiniões de terceiros?

      O narrador defende Belarmino, afirmando que ele não é um pândego ou irresponsável, mas sim um homem de alma leve com vocação para a felicidade. Ele trabalha, não vive de folga, e possui uma capacidade inata de enxergar o lado bom das coisas e das pessoas.

02 – De que forma Belarmino lida com os defeitos das pessoas ao seu redor?

      Belarmino vê os defeitos, mas faz de conta que não vê. Ele se cuida deles por instinto, sem cálculo, e, em vez disso, enaltece as virtudes dos amigos, pois para ele a amizade é a "fina flor da vida".

03 – O que proporciona prazer a Belarmino no cotidiano?

      Belarmino encontra prazer em lances triviais do dia a dia, como o canto de um passarinho, a moça que passa, o cheiro do mar, um bife enrolado com farofa de ovo, um chorinho da velha guarda ou uma canção de Roberto Carlos.

04 – Qual o "misterioso mecanismo" que impede Belarmino de ser totalmente abatido pelas adversidades?

      Belarmino possui um misterioso mecanismo, localizado no cerebelo e não acionado pela vontade consciente, que não permite que as contrariedades e desagrados o apoquentem além de um certo limite. Isso o faz nunca perder o aprumo, a serenidade nem o riso.

05 – Qual a influência da esposa de Belarmino em sua leveza de vida?

      A esposa de Belarmino, além de bonita e bondosa, vive para lhe fazer as vontades, adivinhando-as sem que ele precise manifestá-las. O narrador sugere que essa relação contribui "mais do que um pouco" para a leveza da vida de Belarmino.

06 – Que filosofia Belarmino adota para lidar com a dor e o sofrimento?

      Belarmino adota a filosofia do Adoniran Barbosa: "Deus dá o frio conforme o cobertor". Essa crença o ajuda a não permitir que a dor ultrapasse os limites de sua resiliência.

07 – Qual a cena final do conto que demonstra a capacidade de Belarmino de "levar a vida na flauta" mesmo em meio à dor?

      Ao perder seu filho caçula, Belarmino recebe o narrador com delicadeza e o convida para uma partida de xadrez. Durante o jogo, ele assovia baixinho, e embora uma lágrima caia em seu rei, ele a disfarça prontamente, anunciando o xeque-mate. Essa atitude final sublinha sua capacidade de lidar com a dor sem perder a compostura e a alegria de viver.

 

quarta-feira, 25 de junho de 2025

POEMA: COMO UM RIO - THIAGO DE MELLO - COM GABARITO

 Poema: Como um rio

                     Thiago de Mello

Ser capaz, como um rio
que leva sozinho
a canoa que se cansa,
de servir de caminho
para a esperança.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEguX4q4vf6YoSFtLL958z93VR4yrE4xnervl7fLHxLPt8LykFjJsChxZy-K7l4fRL_nx1mFffo0QvKpPY9KVrd-FOSfLd6ivdJ1i-jDEswXd3LSuPGBn8r60sqmZuojlT1gS6TPNhGisYh3Y3fRor2guOYDhdiqaR13BnMUZ3shwmQDMmxfibSg6TOiFho/s320/1200px-Rio_Pardo_Aguas_de_Santa_Barbara.jpg


E de levar do límpido
a mágoa da mancha,
como o rio que leva
e lava.

Crescer para entregar
na distância calada
um poder de canção,
como o rio decifra
o segredo do chão.

Se tempo é de descer,
reter o dom da força
sem deixar de seguir.
E até mesmo sumir
para, subterrâneo,
aprender a voltar
e cumprir, no seu curso,
o ofício de amar.

Como um rio, aceitar
essas súbitas ondas
feitas de águas impuras
que afloram a escondida
verdade das funduras.

Como um rio, que nasce
de outros, sabe seguir
junto com outros sendo
e noutros se prolongando
e construir o encontro
com as águas grandes
do oceano sem fim.

Mudar em movimento,
mas sem deixar de ser
o mesmo ser que muda.
Como um rio.

Mormaço na floresta. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1983.

Entendendo o poema:

01 – Qual é a principal comparação que o poema faz ao longo de seus versos?

      O poema compara a existência e as ações humanas com as características e o fluxo de um rio, utilizando-o como uma metáfora para a vida.

02 – De que forma o rio, segundo o poema, serve como um "caminho para a esperança"?

      O rio serve como um caminho para a esperança ao ser capaz de levar e carregar o que está cansado ou pesado, assim como leva uma canoa, sugerindo a ideia de auxílio e continuidade.

03 – No poema, como o rio lida com as "águas impuras" e as "mágoas da mancha"?

      O rio "leva e lava" as mágoas da mancha e aceita as "súbitas ondas feitas de águas impuras", que revelam a "verdade das funduras". Isso sugere a capacidade de purificação, aceitação e superação das adversidades e impurezas da vida.

04 – O que significa a ideia de o rio "sumir para, subterrâneo, aprender a voltar"?

      Essa imagem sugere a capacidade de resiliência e renovação. Mesmo diante de momentos de recuo ou desaparecimento aparente (como um rio que se torna subterrâneo), ele se prepara para retornar e continuar seu propósito, que é "cumprir, no seu curso, o ofício de amar".

05 – Qual a mensagem final do poema sobre a identidade e a mudança, refletida na metáfora do rio?

      A mensagem final é que, assim como um rio, devemos ser capazes de "mudar em movimento, mas sem deixar de ser o mesmo ser que muda". Isso enfatiza a importância de se adaptar e evoluir com a vida, sem perder a própria essência ou propósito.

 

 

domingo, 31 de julho de 2022

POEMA: ÁRIES (21 DE MARÇO A 20 DE ABRIL) - THIAGO DE MELLO - COM GABARITO

 Poema: Áries (21 de março a 20 de abril)

            Thiago de Mello

Eu sei que Marte te ajuda,

companheiro.
Conheço bem de perto esse poder apaixonado,
a generosa força do teu signo de fogo.
Mas não confies demasiado. Cuidado contigo,
vejo um cansaço ao oeste do teu olho.
É preciso ter paciência com as vaidades verdes.
Evita a canção do vento que inventa
o redemoinho nas palavras,
e quando o sol estiver a pino
evita as próprias palavras,
um autêntico Áries deve preferir não dizer
quando o dizer é confundir.
O sectarismo está cravando no teu sonho
os seus dentes de nácar,
e nem te dás conta. Ademais, não são de nácar.

 

Não desanimes nunca, segue trabalhando

pelo reinado da claridão,
que, como sabes, ou precisas saber,
tem o gosto da vida
e a cor do sangue antes do amanhecer.
Tua luta te reserva grandes alegrias,
tanto mais belas porque repartidas,
e no começo do verão
resolverás definitivamente
teu grande problema secreto:
mas só se tiveres força
de olhar o sol de frente.


Pelo outono,

ligeiras perturbações cardiovasculares,
proporcionais ao medo
que circula em tuas artérias.

 

Os mais jovens,

ou os que ainda não perderam a juventude,
devem adiar sua noite de bodas
por umas poucas luas,
e ganhar bem esse tempo
para aprender devagarinho
que o compartir não dói e te acrescenta
de uma força maior que a das estrelas.
Os Áries que já se casaram,
que tratem de levar o barco
por águas mansas,
sem fazer mal a ninguém.
Haverá um instante da primavera
no qual os varões de Marte
que ainda resguardam a infância
(cuidado que ela está agonizante no peito!)
estarão extremamente sensíveis
à beleza das mulheres em geral.
Nem todos sucumbirão.

 

No meio do último decanato,

chegará um sol cinzento com grandes ameaças
à pobre face deste lindo mundo nosso.
Mas não te alteres:
continua fazendo a tua parte,
humilde e organizado,
na construção da alegria.

 

As mulheres morenas

devem acalmar o gênio,
e preferir
sobriamente
o sortilégio do quartzo rosado.

MELLO, Thiago de. A canção do amor armado. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 45-46.

              Fonte: Livro Língua Portuguesa – Trilhas e Tramas – Volume 1 – Leya – São Paulo – 2ª edição – 2016. p. 168-171.

Entendendo o poema:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Sectarismo: intolerância; intransigência.

·        Nácar: substância branca, brilhante, com reflexos coloridos (róseos), que se encontra no interior das conchas.

·        Bodas: festa comemorativa de aniversário de casamento: bodas de prata (25 anos de casados); bodas de ouro (50 anos de casados) etc.

·        Varão: indivíduo do sexo masculino; homem corajoso, esforçado, respeitável.

·        Sucumbir: não resistir, ceder; ser vencido; ser derrotado.

·        Decanato: cada uma das três partes de dez graus em que se divide o signo do zodíaco.

·        Sortilégio: fascinação, sedução; bruxaria.

·        Quartzo: mineral ou “cristal de rocha” dura e transparente, de várias cores.

02 – Você já leu algum poema de Thiago de Mello?

      Resposta pessoal do aluno.

03 – O que a expressão “horóscopo para os que estão vivos” lhe sugere?

      Resposta pessoal do aluno.

04 – Que temáticas ou assuntos poderiam estar presentes em um livro intitulado A canção do amor armado?

      Resposta pessoal do aluno.

Horóscopo para os que estão vivos”: intertextualidade

        O poeta Thiago de Mello emprega o recurso da intertextualidade para construir o poema “Áries”, que integra um poema maior, intitulado “Horóscopo para os que estão vivos”, por sua vez, parte do livro A canção do amor armado.

        O poema “Áries” é uma paródia, pois sua construção se apropria do sentido do gênero “horóscopo” e o transgride.

        O termo horóscopo tem o sentido de “previsão astrológica”, isto é, previsão baseada nas posições dos planetas e dos signos zodiacais no momento em que a pessoa nasceu. Com base nisso, são feitas análises da personalidade e previsões a respeito do futuro dos nascidos em cada signo. Os horóscopos diários, publicados em veículos de comunicação, têm o objetivo de orientar os leitores e/ou ouvintes a respeito de suas emoções e comportamentos.

05 – Explique o título do poema: “Áries (21 de março a 20 de abril)”

      É composto de elementos linguísticos do gênero parodiado, o horóscopo: o nome de um dos signos do zodíaco (Áries) e os dias de nascimento de todos os nascidos sob esse signo: de 21 de março a 20 de abril.

06 – Explique o uso dos seguintes termos e expressões:

        Marte te ajuda; signo de fogo; um autêntico Áries; último decanato.

      São termos e expressões específicos do gênero parodiado: o horóscopo.

07 – Releia e explique os seguintes versos:

        Conheço bem de perto esse poder apaixonado, a generosa força do teu signo de fogo.

      Descrição positiva de quem pertence a um dos signos influenciados pelo elemento fogo (no caso, o signo de Áries).

08 – Releia e explique as seguintes expressões:

        Mas não confies demasiado; Cuidado contigo; É preciso ter paciência; evita as próprias palavras; Não desanimes nunca, segue trabalhando; Mas não te alteres

      São conselhos e advertências presentes em textos de autoajuda, como os horóscopos.

09 – Releia e explique estas outras expressões:

        Ganhar bem esse tempo / para aprender devagarinho; levar o barco / por águas mansas; sem fazer mal a ninguém; continua fazendo a tua parte, / humilde e organizado; devem acalmar o gênio

      São incentivos à prática de atos virtuosos, de boas ações, presentes em textos de autoajuda, como os horóscopos. Comente o uso do diminutivo devagarinho que dá um tom coloquial e afetivo aos versos.

10 – Para divulgar mensagens políticas, durante o período da censura e da ditadura militar (após 1964), os artistas empregavam a linguagem figurada em suas obras. Considerando essa informação:

a)   Explique o uso de metáforas nos versos a seguir.

·        No meio do último decanato, / chegará um sol cinzento com grandes ameaças / à pobre face deste lindo mundo nosso.

·        Mas não te alteres: / continua fazendo a tua parte, / humilde e organizado, / na construção da alegria.

·        Pelo outono, / ligeiras perturbações cardiovasculares, / proporcionais ao medo / que circula em tuas artérias.

·        Não desanimes nunca, segue trabalhando / pelo reinado da claridão.

As metáforas podem estar associadas a denúncias à censura, à ditadura militar, constituir um apelo ao engajamento nas causas políticas e sociais, assim como um apelo pela defesa dos direitos humanos. O eu poético pede ao leitor que não desanime de lutar pelo fim da ditadura.

b)   Explique o título do poema maior, no qual está inserido o poema “Áries”, entre outros onze signos/ poemas: “Horóscopo para os que estão vivos”.

Provavelmente, esse título faz referência às pessoas que sobreviveram a perseguições políticas, prisões, sequestros, torturas, desaparecimentos e assassinatos praticados durante a ditadura militar. O poema seria dedicado às pessoas que sobreviveram a isso, fazendo previsões a respeito de seu “futuro”.

c)   Explique o título do livro de Thiago de Mello em que o poema foi publicado: A canção do amor armado.

A expressão “amor armado” é um paradoxo, que consiste no emprego de palavras com sentidos contrários: amor = o bem; armado = o mal. Assim, ele pode ser interpretado como a necessidade de lutar sem cometer violência; de lutar sem abrir mão do sentimento amoroso.

11 – Quais são os objetivos comunicativos desse poema? Explique.

      Objetivo poético e estético, por meio do trabalho com a linguagem; objetivo de emocionar o leitor e de convencê-lo a lutar pela construção da alegria, da liberdade, da solidariedade e do compartilhamento, sem desanimar.

12 – Explique o uso na construção do poema de:

a)   Verbos no modo imperativo, como em:

·        [...] não confies demasiado.

·        [...] não te alteres: / continua fazendo a tua parte.

O modo imperativo é usado para dar orientações, conselhos: o tom do poema é de autoajuda.

b)   Verbos no futuro do presente do indicativo, como em:

·        Haverá um instante da primavera.

·        Chegará um sol cinzento com grandes ameaças.

Os verbos estão no futuro do presente do indicativo são usados para fazer previsões, como nos horóscopos.

 

 

sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

POEMA: LIÇÃO DE ESCURIDÃO - THIAGO DE MELLO - COM GABARITO

 Poema: LIÇÃO DE ESCURIDÃO

              Thiago de Mello

Caboclo companheiro meu de várzea,
contigo cada dia um pouco aprendo
as ciências desta selva que nos une.

Contigo, que me ensinas o caminho dos ventos,
me levas a ler, nas lonjuras do céu,
os recados escritos pelas nuvens,
me avisas do perigo dos remansos
e quando devo desviar de viés a proa da canoa
para varar as ondas de perfil.

Sabes o nome e o segredo de todas as árvores,
a paragem calada que os peixes preferem
quando as águas começam a crescer.
Pelo canto, a cor do bico, o jeito de voar.
identificas todos os pássaros da selva.
Sozinho (eu mais Deus, tu me explicas).
atravessas a noite no centro da mata.
corajoso e paciente na tocaia da caça.
a traição dos felinos não te vence.

Contigo aprendo as leis da escuridão,
quando me apontas na distância da margem,
viajando na noite sem estrelas,
a boca (ainda não consigo ver) do Lago Grande
de onde me fui pequenino e te deixei.

De novo no chão da infância,
contigo aprendo também
que ainda não tens olhos para ver
as raízes de tua vida escura,
não sabes quais são os dentes que te devoram
nem os cipós que te amarram à servidão.

Nos teus olhos opacos
aprendo o que nos distingue.
Já repartes comigo a ciência e a paciência.
Quero contigo repartir a esperança,
estrela vigilante em minha fronte
e em teu olhar apenas um tição
encharcado de engano e cativeiro.



Barreirinha, 1981
Publicado no livro Mormaço na Floresta (1981).
In: MELLO, Thiago de. Vento geral, 1951/1981: doze livros de poemas. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 198.

Fonte da imagem: https://www.google.com/url?sa=i&url=https%3A%2F%2Fwww.ecycle.com.br%2F4807-florestas&psig=AOvVaw0oL9Vvl1CrtjP-_azzWxjk&ust=1609004182254000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCNix1PDV6e0CFQAAAAAdAAAAABAD

Entendendo o poema:

01 – Que tema é abordado no poema?

      A sabedoria da mãe natureza.

02 – É possível fazer uma reflexão com a leitura do poema. Você concorda com as afirmações feitas pelo eu lírico?

      Resposta pessoal do aluno.

03 – O título do poema motiva a leitura?

      Sim. Ele desperta a curiosidade para saber que lição se tira da escuridão.

04 – Em que pessoal verbal o eu lírico conta o fato no poema? Comprove com um verso.

      Em primeira pessoal do singular. “Contigo, que me ensinas o caminho dos ventos...”.

 

segunda-feira, 11 de maio de 2020

POEMA: PARA REPARTIR COM TODOS - THIAGO DE MELLO - COM GABARITO

Poema: PARA REPARTIR COM TODOS
              Thiago de Mello

Com este canto te chamo,
porque dependo de ti.
Quero encontrar um diamante,
sei que ele existe e onde está.

Não me acanho de pedir
ajuda: sei que sozinho
nunca vou poder achar.
Mas desde logo advirto:
para repartir com todos.

Traz a ternura que escondes
machucada no teu peito.

Eu levo um resto de infância
que meu coração guardou.
Vamos precisar de fachos
para as veredas da noite,
que oculta e, às vezes, defende
o diamante

Vamos juntos.
Traz toda a luz que tiveres,
não te esqueças do arco-íris
que escondeste no porão.
Eu ponho a minha poronga,
de uso na selva, é uma luz
que se aconchega na sombra.

Não vale desanimar,
nem preferir os atalhos
sedutores que nos perdem,
para chegar mais depressa.

Vamos achar o diamante
para repartir com todos.
Mesmo com quem não quis vir
ajudar, pobre de sonho.
Com quem preferiu ficar
sozinho bordando de ouro
o seu umbigo engelhado.

Mesmo com quem se fez cego
ou se encolheu na vergonha
de aparecer procurando.
Com quem foi indiferente
e zombou das nossas mãos
infatigadas na busca.

Mas também com quem tem medo
do diamante e seu poder,
e até com quem desconfia
que ele exista mesmo.

E existe:
o diamante se constrói
quando o procuramos juntos
no meio da nossa vida
e cresce, límpido, cresce,
na intenção de repartir
o que chamamos de amor.
                                 MELLO, Thiago de. Mormaço na floresta. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1981. p. 55-6.
Fonte: Linguagem Nova. Faraco & Moura. Editora Ática. 8ª série. p. 66-9.

Entendendo o poema:

01 – A quem o poeta se dirige?
      Ao leitor.

02 – Com que finalidade?
      O poeta convida todos para ajudá-lo a encontrar um diamante.

03 – Que advertência ele faz?
      Ele adverte que o diamante deve ser repartido com todos.

04 – Segundo o poeta, a busca é longa, difícil e não há como simplifica-la. Em que estrofe aparece essa ideia?
      Na 5ª estrofe.

05 – Na sexta estrofe, fala-se dos que foram convidados para a busca e não aceitaram o convite. O poeta classifica-os em alguns tipos. Quais?
      O que não tem sonhos ou expectativas (“... falto de sonho”); o egoísta (“... preferiu ficar sozinho...”); o que se dá por vencido; o indiferente; o medroso; e o desconfiado.

06 – Depois de assegurar que o tal diamante existe, o poeta explica de que se trata. Trata-se de uma pedra, de um objeto material? Explique sua resposta.
      Não, trata-se da solidariedade que deveria unir todos os homens; da construção de uma sociedade mais justa, voltada para o bem comum, sustentada pela intenção de repartir o amor.

07 – Esse diamante já existe ou se constrói à medida que os homens o procuram?
      A segunda alternativa é a verdadeira.

08 – Portanto, o que mais vale para o poeta: o encontro do diamante ou a sua procura?
      Pelo texto percebe-se que a procura é mais importante que o encontro do próprio diamante.

09 – Considerando a maneira como interpretamos o poema, o que seriam os “atalhos/sedutores que nos perdem/para chegar mais depressa” (5ª estrofe)?
      Se a solidariedade é o objetivo da busca, a metáfora “atalhos sedutores” pode referir-se a egoísmo, ausência de ética, falta de amor ao próximo, pressa na realização individual quando esta se sobrepõe à coletiva.

10 – “Eu levo um resto de infância / que meu coração guardou”. Na sua opinião, por que o poeta faz referência à infância?
      A infância é quase sempre idealizada como época de pureza, inocência, disponibilidade, resistência à corrupção do meio e sinceridade.

11 – “(...) não te esqueças do arco-íris / que escondeste no porão”.
a)   O termo destacado está empregado em sentido próprio ou figurado?
O termo está empregado em sentido figurado.

b)   Se aceitasse o convite do poeta, que arco-íris você levaria para a jornada?
Resposta pessoal do aluno.

12 – O poeta escolheu o diamante e não outra pedra preciosa par construir sua metáfora. Que características desta pedra justificariam a escolha?
      A resistência, a transparência e a beleza.

13 – No seu poema-convite, que pronome o poeta utiliza para dirigir-se ao leitor? Esse pronome é de uso comum na sua região?
      O poeta emprega o pronome de segunda pessoa do singular (tu).

14 – A árvore simbólica que resulta da dança da fita, o diamante de que trata o poema e a ideia de sonho da epígrafe tem um ponto em comum. Qual?
      Dependem da participação de todos.


terça-feira, 11 de junho de 2019

POEMA: O SONHO DOMADO - THIAGO DE MELLO - COM GABARITO

Poema: O SONHO DOMADO
              
             Thiago de Mello

Sei que é preciso sonhar.

Campo sem orvalho, seca
a fronte de quem não sonha.

Quem não sonha o azul do voo
perde o seu poder de pássaro.

A realidade da relva
cresce em sonho no sereno
para não ser relva apenas,
mas a relva que se sonha.

Não vinga o sonho da folha
se não crescer incrustado
no sonho que se fez árvore.

Sonhar, mas sem deixar nunca
que o sol do sonho te arraste
pelas campinas do vento.

É sonhar, mas cavalgando
o sonho e inventando o chão
para o sonho florescer.

Entendendo o poema:

01 – O que significa o sonho para o eu poético do texto?
      Significa sonho controlado, mas com os pés no chão.

02 – O que significa:
a)   Sonho domado?
Sonho controlado, criado, inventado.

b)   O sonho florescer?
Significa algo mágico, como uma nova vida.

03 – Qual a palavra no texto que está no mesmo campo de significado de “domado”?
      A palavra é incrustado – algo ou aquilo que está grudado, cravejado, encravado.

04 – Qual o tema do texto?
      O tema é o sonho. Aquele que a gente inventa, cria.

05 – Cite elementos da natureza encontrados no poema.
      Campo – orvalho – relva – sereno – folha – árvore – vento – sol – campinas.