quinta-feira, 9 de maio de 2019

ROMANCE: FOGO MORTO - (FRAGMENTO) - JOSÉ LINS DO REGO - COM GABARITO

Romance: Fogo Morto - Fragmento
                 José Lins do Rego

        [...]       
        Nunca mais que o cabriolé de Seu Lula enchesse as estradas com a música de suas campainhas. A família do Santa Fé não ia mais à missa aos domingos. A princípio correra que era doença no velho. Depois inventaram que o carro não podia mais rodar, de podre que estava. Os cavalos não aguentavam mais com o peso do corpo. Na casa-grande do engenho do capitão Tomás a tristeza e o desânimo haviam tomado conta até de D. Amélia. Não tinha coragem de sair de casa com aquela afronta, ali a dois passos, com um morador atrevido sem levam em conta as ordens do senhor de engenho. Todos na várzea se acovardavam com as ordens do cangaceiro. O governo mandava tropa que maltratava o povo, e a força do bandido não se abalava. Pobre de seu marido, que não pudera contar com a ajuda dos outros proprietários. Estivera no Santa Rosa e o conselho que lhe deram fora para que não tomasse providência nenhuma perante as autoridades. Todos temiam as represálias. Lula não lhe dizia nada, mas só aquilo de não querer mais botar a cabeça de fora, de fugir até das obrigações de sua devoção, dizia da mágoa que lhe andava na alma. Não lhe tocara no assunto, mas teve vontade de tomar o trem e ir valer-se do Presidente. Não faria isto para não humilhá-lo. Era o fim que ela não esperava que chegasse assim. O engenho se arrastava na safra de quase nada. Mas ainda moía. [...]
        Tudo se calara e D. Amélia parecia que havia saído de um sonho. Agora, a casa silenciava. [...] O gado do engenho vinha chegando para o curral. Pobre gado, meia dúzia de reses. O moleque que o pastoreava gritava para os dois velhos.
        [...] Foi acender o candeeiro da sala de jantar. E quando trepou na cadeira para cortar o pavio, viu na porta de frente uns homens parados na calçada. Acendeu a luz e saiu para saber o que era aquilo. [...]
        Era o Capitão Antônio Silvino no Santa Fé. Os cangaceiros cercaram a casa, e o negro Floripes, amarrado, chorava de medo.
        [...]
        Estendido no marquesão, o senhor de engenho arquejava. A mulher perto dele chorava, enquanto os cabras já estavam no quarto rebulindo tudo. Foi quando se ouviu um grito que vinha de fora. Apareceu o velho Vitorino, acompanhado de um cangaceiro:
        -- Capitão, este velho apareceu na estrada, dizendo que queria falar com o senhor.
        -- Quem é você, velho?
        -- Vitorino Carneiro da Cunha, um criado às ordens.
        -- E o que quer de mim?
        -- Que respeite os homens de bem.
        -- Não estou aqui para ouvir lorotas.
        -- Não sou loroteiro. O Capitão Vitorino Carneiro da Cunha não tem medo de ninguém. Isso que estou dizendo ao senhor disse na focinheira do tenente Maurício.
        -- O que quer este velho?
        -- Tenho nome, Capitão, fui batizado.
        -- Deixe de prosa.
        -- Estou falando como homem. Isto que o senhor está fazendo com o Coronel Lula de Holanda é uma miséria.
        -- Cala a boca, velho.
        Um cangaceiro chegou-se para perto de Vitorino.
        -- Olha, menino, estou falando com o teu chefe. Ainda não cheguei na cozinha.
        -- Deixa ele comigo, Beija-Flor.
        -- O que eu lhe digo, Capitão Antônio Silvino, é o que digo a todo mundo. Eu, Vitorino Carneiro da Cunha, não me assusto com ninguém.
        -- Par com isso, senão eu te mando dar um ensino, velho besta.
        -- Tenho nome. Sou inimigo político do Coronel Lula, mas estou com ele.
        -- Está com ele? Pega este velho, Cobra Verde
        Vitorino fez sinal de puxara o punhal, encostou-se na parede e gritou para o cangaceiro:
        -- Venha devagar.
        Uma coronhada de rifle na cabeça botou-o no chão, como um fardo.
        [...]
        Mas quando ia mais adiantada a destruição das grandezas do Santa Fé, parou um cavaleiro na porta. Os cangaceiros pegaram os rifles. Era o coronel José Paulino, do Santa Rosa. O chefe chegou na porta.
        -- Boa noite, coronel.
        -- Boa noite, capitão. Soube que estava aqui no engenho do meu amigo Lula e vim até cá.
        E olhando para o piano, os quadros, a desordem de tudo:
        -- Capitão, aqui estou para saber o que quer o senhor do Lula de Holanda. E vendo d. Amélia aos soluços, e o velho estendido no marquesão:
        -- Quer dinheiro, capitão?
        A figura do Coronel José Paulino encheu a sala de respeito.
        -- Coronel, este velho se negou ao meu pedido. Eu sabia que ele guardava muito ouro velho, dos antigos, e vim pedir com todo o jeito. Negou tudo.
        -- Capitão, me desculpe, mas esta história de ouro é conversa do povo. O meu vizinho não tem nada. Soube que o senhor estava aqui e aqui estou para receber as suas ordens. Se é dinheiro que quer, eu tenho pouco, mas posso servir.
        Vitorino apareceu a porta. Corria sangue de sua cabeça branca.
        -- Estes bandidos me pagam.
        -- Cala a boca, velho malcriado. Pega este velho, Cobra Verde.
        -- Capitão, o meu primo Vitorino não é homem de regular. O senhor não deve dar ouvido ao que ele diz.
        -- Não regula, coisa nenhuma. Vocês dão proteção a estes bandidos e é isto que eles fazem com os homens de bem.
        [...]
        -- Coronel, eu me retiro. Aqui eu não vim com o intuito de roubar a ninguém. Vim pedir. O velho negou o corpo.
        -- Pois eu lhe agradeço, capitão.
        A noite já ia alta. Os cangaceiros se alinhavam na porta. Vitorino, quase que se arrastando, chegou-se para o chefe e lhe disse:
        -- Capitão Antônio Silvino, o senhor sempre foi da estima do povo. Mas deste jeito se desgraça. Atacar um engenho como este do Coronel Lula, é mesmo que dar surra num cego.
        -- Cala a boca, velho.
        -- Este que está aqui só se cala com a morte.
        Quase que não podia falar. E quando os cabras se foram, o Coronel José Paulino voltou para a sala para confortar os vizinhos. D. Amélia chorava como uma menina. Toda a casa-grande do Santa Fé parecia revolvida por um furacão. [...]
        [...]
        Agora já tinha chegado gente. O dia clareava a desgraça da sala revolta. O Coronel José Paulino despediu-se dos amigos e prepara-se para sair.
        -- Vitorino, vamos para casa.
        -- Está muito engando. Daqui saio para a estação. Vou telegrafar ao Presidente para lhe contar esta miséria. O Rego Barros vai saber disso. Este merda do Antônio Silvino pensava que me fazia correr. De tudo isto, o culpado é você mesmo. Deram gás a este bandido. Está aí. Um homem como Lula de Holanda desfeiteado como um camumbembe. Eu não tenho dinheiro na burra, sou pobre, mas um cachorro deste não pisa nos meus calos.
                                  17 ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1977. p. 249-61.
Entendendo o romance:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:
·        Burra: cofre.
·        Desfeiteado: insultado.
·        Cabriolé: charrete puxada por um só cavalo.
·        Rebulir: remexer.
·        Camumbembe: vadio, vagabundo, mendigo.
·        Revolto: desarrumado, desajeitado.

02 – Considere estes fragmentos do texto:
        “Inventaram que o carro não mais podia rodar, de podre que estava.”
        “Os cavalos não aguentavam mais com o peso do corpo”.
        “O engenho se arrastava na safra de quase nada”.
a)   O que os fragmentos revelam sobre a situação do engenho do Coronel Lula?
Revelam a decadência do engenho, que já não é mais produtivo, como fora na passado.

b)   Que consequência essa situação do engenho trazia para o convívio social do Coronel Lula? Justifique sua resposta com elementos do texto.
A perda de autoridade. Por exemplo, ele expulsa um morador, mas este se nega a sair; seu engenho é invadido por cangaceiros.

03 – O cangaço, que assustava tanto os poderosos quanto as pessoas simples, fazia parte da vida nordestina nas primeiras décadas do século XX.
a)   Que fatos do texto demonstram que o cangaço se ligava ao banditismo?
Os cangaceiros são procurados pela polícia; invadem e vasculham o engenho a fim de amedrontar e roubar.

b)   Ao tentar defender seu vizinho Lula de Holanda, com que autoridade o Coronel José Paulino se dirige ao cangaceiro Antônio Silvino?
Com a autoridade de quem é um coronel rico e poderoso.

04 – O Capitão Vitorino, uma das personagens principais de Fogo Morto, é certamente resultado da observação dos muitos tipos humanos que o autor conheceu na infância. Vitorino por suas ações e por seus ideais de justiça, é frequentemente associado à personagem D. Quixote, criado pelo escritor espanhol Miguel de Cervantes.
a)   Em que consiste a indignação do Capitão Vitorino diante das afrontas do cangaceiro?
Na revolta contra o tratamento que o cangaceiro dá a pessoas indefesas.

b)   Por que ele pode ser considerado uma figura quixotesca?
Porque, tendo certa idade, estando desarmado e sozinho, não tem a menor condição de sair-se bem do enfrentamento com os cangaceiros. Mesmo assim não desiste, diz o que pensa, apanha e, no final, diz que vai telegrafar ao presidente, como se este soubesse quem ele era.

05 – Em depoimento dado a Medeiros Lima e publicado em Políticas e Letras (1948), José Lins Rego afirmava: “Não cuido da forma porque a minha forma é a coisa mais natural deste mundo. Ordem direta, oração principal com sujeito claro, pronomes colocados de ouvido e, sobretudo, adotando soluções que são soluções da língua do povo”.
a)   Identifique no texto trechos que exemplifiquem, de fato, a utilização da língua do povo.
Entre outros: “não cheguei na cozinha”; “Deixa ele comigo, Beija-flor”.

b)   Essa concepção de língua literária é compatível com as ideias defendidas pelos modernistas da primeira geração?
Sim, é inteiramente compatível.

c)   Observe o emprego do discurso direto no texto. Que resultado essa técnica imprime à narrativa?
A narrativa flui com agilidade e naturalidade, aproximando-se da língua oral – característica que interessava aos modernistas de 1920 e continuava a interessar aos romancistas de 1930.

 
       



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