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quarta-feira, 25 de junho de 2025

CONTO: FARINHA DE MANDIOCA - NINA HORTA - COM GABARITO

 Conto: Farinha de mandioca

           Nina Horta

        Que comida eu mais gosto… Que comida eu mais gosto?

        Fiquei com a pergunta na cabeça por uns dois meses. Qual a preferida, qual a mais digna de merecer a palavra saudade.

        Profunda, lúgubre, a toda hora me vinha à mente a feijoada, trançando o feijão, a linguiça, o paio, quiçá, o rabo, talvez, a orelhinha, ah, feijão-preto, o óbvio ululante.

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEislmfgRaTrfvma8uOPPVWr5Qf3X4hR_seQk5FPZbEgsemOZyBh8FLU2PJU4N7NB9D-hcbVkHKeuVGFTbqLvlunXX4vG5i_R_eQ06aMsvB4W9VPfKmjlYAcCGPpV1NZr9hsHegEKTAUIoiEnqxtEKmYGy34Z101AuuNcWzhRzGGzEQemjrEO9MNHI3YHxs/s1600/images.jpg

        É, a feijoada resolveria. Só pode ser ela. Boa demais, brasileira com origens nobres de cassoulets, ela própria nascida no restaurante G. Lobo, carioca a mais não poder.

        Conheço uma autora de livros de comida que só escreve receitas que gostaria de comer todos os dias, se possível. Nada de excessos, novidades, exotismos. Só o que perdura e se repete. Concordo com ela. Neste caso a feijoada perderia pontos, barroca, exagerada.

        E o palmito? Só nosso. Quase só nosso, fruto da palmeira que anuncia nossa brasilidade, flor, folha, fruto, fresco, branco, macio, desmanchando na boca. Todo dia? Também não.

        O jeito é percorrer as raízes portuguesas, africanas e indígenas. Doces de ovos, o bacalhau ao azeite, as sardinhas fritas. Tudo delicioso, da pontinha, muito bom, pois, pois.

        Dos africanos, as papas, os mingaus, o dendê translúcido e dourado, comida baiana, vatapás, moquecas, carurus, acarajés. Comida de festa, comida de santo. Sai do rol das costumeiras.

        Dos índios, a farinha. Assim, curto e grosso. A mandioca ralada, espremida, trabalhada, transformada. Há para todo gosto.

        Na Amazônia pode quebrar a ponta do dente, desce o país em nuances de beijus, crocantes, etéreas, aéreas, embebem o feijão sem empapar, empapam-se de feijão.

        É de uma modéstia de coisa centrada, que sabe o seu lugar.

        Na Bahia conheço uma, macia como veludo e que escorre dos dedos como pó, massa saborosa que solta o sabor quando apertada contra o céu da boca com a língua. Tem um gosto decidido de mandioca.

        Em Paraty a granulada já se faz mais evidente, é comprada em casas de farinha pelos caboclos e trazida para casa em lombo de burro ou nas costas, mesmo, em sacos de aniagem alvejados, brancos, limpíssimos. Fazem isso uma vez por mês, num ritual, escolhem o produto, provam, comparam com o anterior, sentem pequenas diferenças de sabor, de ponto, de cor. Discutem sobre ela, conversam sobre ela com os amigos, eles que falam tão pouco. É que não há como comer nem feijão nem peixe frito sem ela, a companheira.

        É isso. Companheira. Acompanha sempre. Segura o melado, delimita o caldo grosso da galinha, corrige os exageros líquidos do feijão.

        Gosto dela em farofa e em pirão. Farofa mineira pura, sem ovo, sem bacon. Só a manteiga na frigideira ou o óleo. Passa-se rapidamente na gordura quente sem deixar queimar o fundo, o que seria um desastre. Vai se mexendo, mexendo, até que se tenha amalgamado na perfeição. E está pronta, quente, dando o crocante a tudo que é mole. Tem gente que gosta fria, gosto tão quente que faça tzzz na língua na hora de experimentar.

        Pirão em caldos de legume, pirão no peixe, farofa com lombo, com pernil e o vinagrete. Eu conheço e você conhece quem come arroz e macarrão com farofa, a companheira.

        Farofa, farinha, efes fricativos, tem que fechar os lábios senão pula fora, farofa, farinha, frigideira, frisada, frita, fritada, frugal, fúlvida, fundamental, fundadora.

Revista Ícaro Brasil, outubro de 1999. Nina Horta é jornalista, escritora, dona do bufê Ginger, autora do livro Não é sopa (Companhia das Letras) e colaboradora das páginas de gastronomia do jornal Folha de São Paulo.

Entendendo o conto:

01 – Qual foi a pergunta que a autora Nina Horta levou em mente por cerca de dois meses?

      A pergunta era: "Que comida eu mais gosto?", buscando a preferida, a mais digna de merecer a palavra saudade.

02 – Quais comidas brasileiras a autora considera e por que as descarta como sua preferida?

      Ela considera a feijoada, mas a descarta por ser "barroca, exagerada" para ser consumida todos os dias. Ela também pensa no palmito, mas decide que não é algo para comer diariamente. Por fim, menciona comidas africanas como vatapás e moquecas, classificando-as como "comida de festa", não "costumeira".

03 – De qual herança culinária a farinha de mandioca é destacada como vinda?

      A farinha de mandioca é destacada como vinda da herança indígena.

04 – Que qualidades a autora atribui à farinha de mandioca que a fazem ser a comida mais amada?

      Ela a descreve como "modesta", "centrada", que "sabe o seu lugar". É uma "companheira" que "acompanha sempre", segura o melado, delimita o caldo grosso e corrige os exageros líquidos do feijão.

05 – Como a autora descreve a farinha de mandioca encontrada na Bahia?

      Na Bahia, ela conhece uma farinha "macia como veludo" que "escorre dos dedos como pó", com uma "massa saborosa que solta o sabor quando apertada contra o céu da boca com a língua" e um "gosto decidido de mandioca".

06 – Qual o ritual de compra e importância da farinha para os caboclos de Paraty, segundo o texto?

      Em Paraty, a farinha granulada é comprada em casas de farinha uma vez por mês. Os caboclos a levam em lombo de burro ou nas costas, em sacos alvejados. Eles provam, comparam com a anterior, notam pequenas diferenças de sabor, ponto e cor, e discutem sobre ela, pois não conseguem comer feijão nem peixe frito sem ela.

07 – De que duas formas principais a autora gosta de consumir a farinha de mandioca e como descreve uma delas?

      A autora gosta da farinha em farofa e em pirão. Ela descreve a farofa mineira pura, sem ovo ou bacon, feita rapidamente na gordura quente, mexendo até "amalgamado na perfeição", resultando em algo "quente, dando o crocante a tudo que é mole".

 

CONTO: MARCELO, MARMELO, MARTELO - FRAGMENTO - RUTH ROCHA - COM GABARITO

 Conto: Marcelo, marmelo, martelo – Fragmento

           Ruth Rocha

        [...]

        Uma vez, Marcelo cismou com o nome das coisas:

        — Mamãe, por que é que eu me chamo Marcelo?

        — Ora, Marcelo foi o nome que eu e seu pai escolhemos.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi2oUgoLwixBNCjwmILswhOuDRB0jqoLFVSdFQPPsVihwpddMIuO6og2QsKNRZ0XN7NWkdtmeKGc6_3Jr6JaYBT8A-pWQixz5eOoK24RZNYucyKIYQG6SrV0AMMBht2hyd4S7nyDps9mRuA3siGkI1DUdS07Plgo39aI9r4TOPhtQ4b5vpiE0l4yrF6ayw/s320/Marcelo_Marmelo_Martelo.jpg


        — E por que é que não escolheram martelo?

        — Ah, meu filho, martelo não é nome de gente! É nome de ferramenta...

        — Por que é que não escolheram marmelo?

        — Porque marmelo é nome de fruta, menino!

        — E a fruta não podia chamar Marcelo, e eu chamar marmelo?

        No dia seguinte, lá vinha ele outra vez:

        — Papai, por que é que mesa chama mesa?

        — Ah, Marcelo, vem do latim.

        — Puxa, papai, do latim? E latim é língua de cachorro?

        — Não, Marcelo, latim é uma língua muito antiga.

        — E por que é que esse tal de latim não botou na mesa nome de cadeira, na cadeira nome de parede, e na parede nome de bacalhau?

        — Ai, meu Deus, este menino me deixa louco!

        Daí a alguns dias, Marcelo estava jogando futebol com o pai:

        — Sabe, papai, eu acho que o tal de latim botou nome errado nas coisas. Por exemplo: por que é que bola chama bola?

        — Não sei, Marcelo, acho que bola lembra uma coisa redonda, não lembra?

        — Lembra, sim, mas... e bolo?

        — Bolo também é redondo, não é?

        — Ah, essa não! Mamãe vive fazendo bolo quadrado...

        O pai de Marcelo ficou atrapalhado.

        E Marcelo continuou pensando:

        "Pois é, está tudo errado! Bola é bola, porque é redonda. Mas bolo nem sempre é redondo. E por que será que a bola não é a mulher do bolo? E bule? E belo? E bala? Eu acho que as coisas deviam ter nome mais apropriado. Cadeira, por exemplo. Devia chamar sentador, não cadeira, que não quer dizer nada. E travesseiro? Devia chamar cabeceiro, lógico! Também, agora, eu só vou falar assim".

        [...]

ROCHA, Ruth. Marcelo, marmelo, martelo e outras histórias. 27. ed. São Paulo: Salamandra, s.d. p. 9-13. (Fragmento).

Fonte: Língua Portuguesa: Singular & Plural. Laura de Figueiredo; Marisa Balthasar e Shirley Goulart – 6º ano – Moderna. 2ª edição, São Paulo, 2015. p. 202-203.

Entendendo o conto:

01 – Qual é a principal "cisma" de Marcelo que inicia o conto?

      A principal cismada de Marcelo é com o nome das coisas. Ele questiona por que cada objeto e pessoa tem um nome específico e não outro.

02 – Que exemplos Marcelo usa para questionar o nome dele próprio e de outras coisas?

      Marcelo questiona por que se chama Marcelo e não "martelo" ou "marmelo". Depois, ele pergunta por que mesa se chama mesa, e não "cadeira", "parede" ou "bacalhau". Por fim, ele indaga sobre o nome de bola e bolo.

03 – Como a mãe de Marcelo tenta explicar o nome dele?

      A mãe de Marcelo tenta explicar que "Marcelo" foi o nome que ela e o pai escolheram. Para justificar a não escolha de "martelo" ou "marmelo", ela diz que "martelo não é nome de gente" e "marmelo é nome de fruta".

04 – Qual é a explicação do pai de Marcelo para o nome "mesa" e como Marcelo reage a ela?

      O pai de Marcelo explica que a palavra "mesa" vem do latim. Marcelo reage de forma curiosa, perguntando se "latim é língua de cachorro", e depois questiona por que o latim não "botou na mesa nome de cadeira, na cadeira nome de parede, e na parede nome de bacalhau".

05 – Por que o pai de Marcelo fica "atrapalhado" ao discutir o nome "bola" e "bolo" com o filho?

      O pai de Marcelo fica atrapalhado porque, ao tentar explicar que "bola" lembra uma coisa redonda, Marcelo contrapõe que "bolo nem sempre é redondo", já que a mãe faz bolo quadrado. Isso desestabiliza a lógica simples que o pai tentava apresentar.

06 – Quais são as propostas de Marcelo para novos nomes para "cadeira" e "travesseiro"?

      Marcelo propõe que "cadeira" devia chamar "sentador" e "travesseiro" devia chamar "cabeceiro", argumentando que esses nomes seriam mais "apropriados" e lógicos em relação à função dos objetos.

07 – O que a insistência de Marcelo em questionar os nomes das coisas revela sobre sua forma de pensar?

      A insistência de Marcelo em questionar os nomes das coisas revela que ele tem um pensamento crítico e uma lógica própria e criativa. Ele não aceita as convenções sem questionamento, buscando uma coerência e um sentido mais direto na linguagem. Isso demonstra uma mente curiosa e original, característica da fase infantil de descoberta do mundo.

 

 

CONTO: CEM ANOS DE SOLIDÃO - FRAGMENTO - GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ - COM GABARITO

 Conto: Cem anos de solidão – Fragmento

           Gabriel García Márquez

        [...]

        Haviam contraído, na verdade, a doença da insônia. [...] No princípio, ninguém se alarmou. Pelo contrário, alegraram-se de não dormir, porque havia então tanto o que fazer em Macondo que o tempo mal chegava. [...]

        Foi Aureliano que concebeu a fórmula que havia de defende-los, durante vários meses, das evasões da memória. Descobriu-a por acaso. [...] Um dia, estava procurando a pequena bigorna que utilizava para laminar metais, e não se lembrou do seu nome. Seu pai lhe disse: “tás”.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgD8ohWUgt2li4HYC3XpTvkLHsOaerhqQ6PBcULohHcDglQdieX_42izuYbqXAlLxqrytDDjlK8Lc1bW1KTAJjo2Ql1hRMGrGZzJWSRzkjrpZMwwrxI-Ht8E9fUUdPSQ9RCP18IlmHhw3BdarB9ydbVlT6oy8SevT61tZfMADToojN7zgmaWY9hWLrTQ6k/s320/capa-do-livro-cem-anos-de-solidao.jpg


        Aureliano escreveu o nome num papel que pregou com cola na base da bigorninha: tás. Assim, ficou certo de não esquecê-lo no futuro. Não lhe ocorreu que fosse aquela a primeira manifestação do esquecimento, porque o objeto tinha um nome difícil de lembrar. Mas poucos dias depois, descobriu que tinha dificuldade de se lembrar de quase todas as coisas do laboratório. Então, marcou-as com o nome respectivo, de modo que bastava ler a inscrição para identifica-las. Quando o seu pai lhe comunicou o seu pavor por ter-se esquecido até dos fatos mais impressionantes da sua infância, Aureliano lhe explicou o seu método, e José Arcadio Buendía o pôs em prática para toda a casa e mais tarde o impôs a todo o povoado. Com um pincel cheio de tinta, marcou cada coisa com o seu nome: mesa, cadeira, relógio, porta, parede, cama, panela. Foi o curral e marcou os animais e s plantas: vaca, cabrito, porco, galinha, aipim, taioba, bananeira. Pouco a pouco, estudando as infinitas possibilidades do esquecimento, percebeu que podia chegar um dia em que se reconhecessem as coisas pelas suas inscrições, mas não se recordasse a sua utilidade. Então foi mais explícito. O letreiro que pendurou no cachaço da vaca era uma amostra exemplar da forma pela qual os habitantes de Macondo estavam dispostos a lutar contra o esquecimento: Esta é a vaca, tem-se que ordenha-la todas as manhãs para que produza o leite e o leite é preciso ferver para misturá-la com o café e fazer café com leite. Assim, continuaram vivendo numa realidade escorregadia, momentaneamente capturada pelas palavras, mas que haveria de fugir sem remédio quando esquecessem os valores da letra escrita.

        [...]

MÁRQUEZ, Gabriel García. Cem anos de solidão. Tradução de Eliane Zagury. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 48-51. (Fragmento).

Fonte: Língua Portuguesa: Singular & Plural. Laura de Figueiredo; Marisa Balthasar e Shirley Goulart – 6º ano – Moderna. 2ª edição, São Paulo, 2015. p. 199-200.

Entendendo o conto:

01 – Qual foi a primeira manifestação da doença da insônia em Macondo e como as pessoas reagiram inicialmente?

      A primeira manifestação da doença foi a incapacidade de dormir. No início, as pessoas não se alarmaram e até se alegraram, pois tinham muito o que fazer em Macondo e sentiam que o tempo não era suficiente.

02 – Quem concebeu a fórmula para defender os habitantes de Macondo das "evasões da memória"?

      Foi Aureliano quem concebeu a fórmula. Ele a descobriu por acaso enquanto procurava uma pequena bigorna e não conseguia se lembrar do nome dela.

03 – Qual foi o método desenvolvido por Aureliano para combater o esquecimento?

      Aureliano começou a marcar os objetos com seus respectivos nomes em papéis, colando-os neles. Quando percebeu que o esquecimento poderia levar as pessoas a não se lembrarem da utilidade das coisas, ele foi mais explícito, descrevendo a função de cada item, como o letreiro na vaca que explicava como ordenhá-la para obter leite.

04 – Como José Arcadio Buendía, pai de Aureliano, reagiu ao método desenvolvido pelo filho?

      José Arcadio Buendía ficou apavorado ao perceber que estava esquecendo até mesmo os fatos mais marcantes de sua infância. Ao saber do método de Aureliano, ele o colocou em prática para toda a casa e, posteriormente, impôs a todo o povoado de Macondo.

05 – Qual era o perigo iminente que Aureliano previu em relação ao esquecimento, mesmo com as inscrições?

      Aureliano percebeu que poderia chegar um dia em que as pessoas reconheceriam as coisas pelas inscrições, mas não se recordariam da sua utilidade. Por isso, ele se tornou mais explícito nas descrições.

06 – Que exemplo é dado no texto para ilustrar a luta dos habitantes de Macondo contra o esquecimento da utilidade das coisas?

      O exemplo dado é o letreiro pendurado no cachaço da vaca, que dizia: "Esta é a vaca, tem-se que ordenha-la todas as manhãs para que produza o leite e o leite é preciso ferver para misturá-la com o café e fazer café com leite."

07 – Como o fragmento descreve a realidade em que os habitantes de Macondo passaram a viver devido à doença da insônia e do esquecimento?

      O fragmento descreve que eles passaram a viver "numa realidade escorregadia, momentaneamente capturada pelas palavras, mas que haveria de fugir sem remédio quando esquecessem os valores da letra escrita."

 

quarta-feira, 11 de junho de 2025

CONTO DE ENIGMA: O INCRÍVEL ENIGMA DO GALINHEIRO - MARCOS REY - COM GABARITO

 CONTO DE ENIGMA: O INCRÍVEL ENIGMA DO GALINHEIRO

 

         Isso aconteceu numa época em que o grande detetive Sherlock Holmes estava aposentado e um tanto esquecido. Em Londres, onde morava, ninguém mais o chamava para elucidar mistérios. Conformava-se, dizendo: não se fazem mais bandidos como antigamente. Meu tio Clarimundo, leitor das aventuras de Sherlock, foi quem decidiu contratá-lo. Mas que não trouxesse seu secretário Dr. Watson, que só servia para ouvir no final de cada caso a mesma frase:

“Elementar, Watson”.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgMejgubA-K6xZJz_fe1sLCw2NEwamm7l28F9wv4_aQlfp0zXh8G8-2AcU05bZx0Wr0MZ0LicnOjQa6mc0a-yO-FKN6ptRXsb_3wAOXJLJ2YUqHcjXYex9lPfquOXkqMTu5LfTIz1hllJmZVbP5rS9HXTIbyRGlIZD7xAEq25sz_xV_bHNPwV09y8eJlT8/s320/GALO.jpg


– Mas se trata dum caso tão insignificante – protestou mamãe. – Insignificante?

       Esse enigma está nos pondo malucos.

        Alguém andava assaltando nosso galinheiro. A cada dia sumia uma galinha. Quem faria isso, estando a casa cercada por paredes de imensos edifícios? Não havia muro para saltar. Nem grades para pular. E na casa só morávamos eu, meus pais, tio Clarimundo e Noca, a velha empregada. Um enigma muito enigmático, sim.

        Sherlock Holmes chegou e hospedou-se no quarto dos fundos. Ele, seu boné xadrez, seu cachimbo, lógico, e mais logicamente sua lupa, que aumentava tudo. Chegou anunciando:

        – Chamarei esta aventura “O caso das galinhas desaparecidas”. Ou ficaria melhor “O incrível enigma do galinheiro”?

        – Ambos são bons, mas...

        – Na maior parte das vezes o culpado é o mordomo – informou Sherlock.

        – Onde está o suspeito?

        – Não temos mordomo – lamentou tio Clarimundo.

        – Então me levem à cena do crime.

        Levamos Sherlock ao quintal, pequeno e espremido entre os prédios. Ele tirou a lupa do bolso. Um palito ou folha de árvore, examinava concentradamente. Depois, tomava notas num caderno. Mas, como a viagem o cansara, foi dormir cedo. Na manhã seguinte minha mãe acordou-o com uma informação:

        – Sumiu outra galinha.

       – Esta noite dormirei no galinheiro.

       E dormiu mesmo, sentado numa poltrona. Desta vez eu que o acordei.

       – Mister Holmes, roubaram mais uma galinha.

       A notícia fez com que se decidisse:

       – A história se chamará mesmo “O incrível enigma do galinheiro”.

       – Não estamos preocupados com títulos – rebateu meu tio.

       – Mas meu editor está.

       Neste dia consegui ler o caderno de anotações do detetive. Li: nada, nada, nada. Um nada em cada página. Organizado, não? Também nesse dia Sherlock telefonou a Londres para trocar impressões com o fiel Dr. Watson. Uma fortuninha em chamados internacionais. E as galinhas continuavam desaparecendo, apesar de Sherlock Holmes dormir no galinheiro. Ele já andava falando sozinho.

        – Nem sinal de gato, cachorro, raposa, gambá. Todo o meu prestígio está em jogo. Por fim, restou apenas uma galinha.

        À hora do almoço o famoso detetive, sentindo-se velho e fracassado, sofreu uma crise, chorando na frente de todos. Nós nos comovemos muito com a situação. Um homem daqueles derramar lágrimas... Noca, então, deu um passo à frente e confessou:

       – Eu que roubava as galinhas. Dava às famílias pobres duma favela.

        Sherlock enxugou imediatamente as lágrimas na manga do paletó.

         – Já sabia. Fingi chorar para que ela confessasse.

         – Então desconfiava de Noca? – Perguntou tio Clarimundo. – Encontrei penas de galinha no quarto dela. Elementar, Clarimundo. E o que dizem de comermos a penosa que resta no galinheiro?

         Não sei se foi escrito “O incrível enigma do galinheiro”. Se foi, pobres leitores. Na verdade eu que roubava as galinhas para dar aos favelados. Inclusive quando o detetive dormia no galinheiro. Noca sabia disso e assumiu a culpa em meu lugar.

Elementar, Mister Sherlock Holmes.

(Marcos Rey, Em Vice-Versa ao Contrário. Org. Heloísa Prieto. São Paulo, Companhia das Letrinhas, 1993.)

 

01. Responda.

a. O que é um enigma?

Um enigma é algo de difícil compreensão, um mistério, um quebra-cabeça ou uma questão que precisa ser decifrada ou resolvida.

b. Qual o mistério que trata o texto?

O mistério que o texto trata é o desaparecimento misterioso de galinhas do galinheiro, sem que se saiba quem as está roubando, dada a dificuldade de acesso ao local.

02. Sobre os Elementos da Narrativa, pergunta-se: O narrador desse texto é

a.  Sherlock Holmes.

b. Tio Clarimundo.

c.  Noca. 

d. Sobrinho do tio Clarimundo.

03. Marque a alternativa que indica o momento de maior tensão na narrativa.

a. À chegada de Sherlock Holmes à casa do narrador.

b.  A crise de choro de Sherlock Holmes e a consequente confissão de Noca.

c. O momento que o narrador revela que ele é o ladrão de galinhas.

d. O momento em que Sherlock decide qual será o título da história.

 04. Quem decide contratar Sherlock Holmes?

     a.  A mãe do narrador.

     b. O narrador.

     c. O tio Clarimundo.

     d.  Noca, a empregada.

05. Qual era o enigma a ser resolvido?

     a. O desaparecimento do mordomo.

     b. O roubo das galinhas.

     c. O título da história.

     d. O choro de Sherlock Holmes.

06. Onde Sherlock Holmes dormiu para tentar solucionar o caso?

     a.  No quarto dos fundos.

     b.  Na sala.

     c.  No quintal.

     d. No galinheiro.

07. Quem confessou ser o ladrão das galinhas?

    a. O narrador.

    b.  O tio Clarimundo.

    c.  Sherlock Holmes.

    d.  Noca.

08. Qual era a justificativa para o roubo das galinhas?

   a. Vender as galinhas.

   b. Alimentar a família.

   c. Dar às famílias pobres de uma favela.

   d.  Fazer um banquete.

domingo, 8 de junho de 2025

CONTO: MACAUÃ - IVENS CUIABANO SCAFF - COM GABARITO

 Conto: MACAUÃ

           Ivens Cuiabano Scaff

        Ninguém se lembrava direito de quando foi que Bugrinho havia chegado ali no Estirão Bonito! Chegou quieto e continuou calado. Deve ter sido bem pequeno mesmo, pois mesmo agora ele devia ter uns doze, onze no máximo. Regulando por aí.

        Veio em alguma embarcação com certeza. Porque estrada por ali era coisa precária. De serventia, só mesmo na época da seca. Nas águas, era corixo juntando com corixo. Baía com baía, baía com rio e parecia que era igual no pantanal lá de baixo, emendado tudo, tudo uma água só. E quero ver automóvel passar. Nem jipe. Nem caminhão. Só carro de boi. E olhe lá.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg3tNJTZbU2uaehe3A2tYykBFupBvqHQ_Xmp7nSJ0mTkvTEB06T1z5LaltWyjDz6djL-KhlZJwoHwETopwrnkRByqxD2Wrqx7Q62y69065VMXFek_niZkA0YLzIKnPMOqYl1crFG2fohzwdYAYShNi2TxnPqXoKM-QCB-Rh4Fj9W9fQ95QYCEbJnINn2Lw/s320/RIO.jpg


        Disque ele veio bem lá de baixo. Da baía do Gahiva. Quase Bolívia. Disque. Diziam. Porque ele mesmo não dizia nada. Bugrinho era quieto como um peixe. Se ele não gostava do apelido, também não retrucava. Olhava as pessoas com aqueles olhos redondos, um pouco puxados como os dos índios. Aí abaixava a cabeça e logo desviava os olhos. Aliás tinha um sestro. Sempre um pouco antes de desviar os olhos, ele piscava o olho esquerdo. Só o esquerdo.

        Quem eram seus pais naturais, disso ninguém tinha conhecimento. Também ninguém se encarregou de substituí-los. Era cria da casa e pronto. Agregado. Pra todo serviço.

        De privilégio, só mesmo a escola. Isso mesmo. Tinha escola no Estirão Bonito. Uma corrutelinha de nada. Tapera de antiga usina, mas escola tinha. E vinha aluno de tudo quanto é morador em volta. De canoa, do rio acima e do rio abaixo. De carroça, de bicicleta e até a pé. Criança não faltava.

        Como alguém tinha decidido e ninguém contestado, já que todo mundo mandava em Bugrinho, ficou assim que ele também ia estudar.

        Bugrinho não faltava nunca. Mas também não falava. Nada. Se aprendia, isso era outro mistério.

        Ninguém lhe tomava lições e ficava tudo por isso mesmo.

        De resto, a vida continuava como sempre foi. No rio, tinha peixe de tudo quanto é tipo, peixe de escama e de couro. No pomar, tudo quanto é tipo de fruta, cada uma no seu tempo. No mato, tudo quanto é tipo de caça.

        Faziam farinha. Faziam rapadura. Doces de tudo que é tipo.

        E tinha as festas de santo. Cada lugar com o seu santo padroeiro e seu dia certo de festejar.

        Assim era a vida no Estirão Bonito. O rio passando. Os sarãs balançando com o vento. As canoas se roçando umas com as outras, amarradas no porto. Aquele pátio grande. Talvez o maior de todos, diziam as pessoas que eram viajadas e já tinham visto outros lugares. Isso diziam como diziam que Estirão Bonito se chamava assim porque era mais bonito que os outros.

        As crianças podiam fazer tudo. Nada era proibido. Nada era perigoso.

        Medo mesmo só de onça que às vezes uma bancava a atrevida vindo pegar um bezerro ali no curral, perto do engenho e das casas de moradia.

        Ah! Também tinham medo do Negrinho d’água e do Minhocão. Quem é que não sabia das duas crianças que sumiram um dia. Duas crianças, um menino e uma menina, iguaizinhos a Joãozinho e Maria, que sumiram e depois de dois dias de procura apareceram mortinhos, parecendo que estavam dormindo de mãozinhas dadas deitadinhos na beira d’água. Foi o Negrinho d’água, só podia. Do Minhocão então, tinha criança que não entrava em canoa nem junto com o pai e mãe, não importa se no lusco-fusco ou até no solão da tarde.

        Mas isso só os muito pequenos. Que eles iam crescendo e perdendo o medo e se espalhando. Não tinha grota, nem baía, nem corixo, nem sangradouro, nem mesmo bocaina, moradia de onça que aquelas crianças não zanzeassem por lá.

        Que o que tinha no Estirão Bonito era criança.

        Era uma alegria a vida no Estirão Bonito.

        Um dia, a professora veio trazer a notícia, uma novidade. Ia chegar uma lancha. Na verdade, duas lanchas. Uma que tinha motor, timão e comandante e a outra não tinha nada disso e era chamada “chata”. A chata era para as mercadorias e vinha colada ao lado da lancha, lancha mesmo, como pequi ou banana quando é fruta gêmea.

        Mas o que é que tem de novidade nisso é que acontece que faz é muito que uma lancha não subia o rio até ali. Antigamente era outra coisa. Tudo acontecia em Cáceres, Corumbá, rio abaixo afora, eles sabiam. Pra chegar em Cuiabá, tinham que passar ali, de subida, pelo Estirão Bonito. Mas aí as embarcações foram rareando, rareando. Dizem que agora tinham outros caminhos. Estrada de ferro. Estrada de chão. Até de asfalto cruzando Mato Grosso sertão afora.

        O fato é que aquela criançada do Estirão Bonito nunca tinha visto uma lancha. Se tinham visto, não se lembravam. Deviam ser muito pequenas na última vinda delas por lá.

        Por isso, a professora ia explicando como eram as embarcações. E lembrando do seu tempo de moça ia ficando emocionada. Cada nome de lancha que ela dizia lhe trazia uma lembrança.

        -- Ah! A lancha “Agashi” era linda. Vinha cortando água desde que apontava no fim do estirão. De longe, a gente via a espuma dela. Só a espuma, antes mesmo de ver a lancha.

        -- E a “Filosofina”? Tinha esse nome em homenagem à filha de um usineiro. Moça muito feia. Deus me livre. Não estou desfazendo, mas ela era muito feia. E como falava nome feio. Nem parecia moça bem criada, filha de gente de posses. Vôte!

        -- Cada lancha tinha sua tripulação. Seu prático. Ah! Vocês não sabem o que é prático? Prático é quem conhece os caminhos do rio. É uma profissão. Ele sabe onde é o canal, onde dá para a lancha passar e onde é baixo, que são as partes rasas.

        -- E a gente vai poder subir na lancha, professora? – já queriam saber as crianças.

        Antes que a professora pudesse responder, Bugrinho falou.

        -- Eu já subi numa, professora.

        Foi aquele espanto. Bugrinho nunca falava nada. Que dirá na sala de aula.

        As crianças ficaram num desassossego. Risinhos, cochichos, beicinhos.

        A professora pediu silêncio.

        -- Já subiu, Bugrinho? Conte pra gente.

        Bugrinho sentiu um calor subindo pelo seu pescoço e se espalhando pelo seu rosto. Sentia também todos os olhares pregados nele. Pra que tinha falado? Se pudesse, sumiria dali num segundo.

        -- Vamos Bugrinho. Conte. Como foi? – Insistiu a professora.

        Bugrinho bem que tentou, mas não conseguiu articular palavra.

        -- Viu nada, professora.

        -- Bugrinho! – a professora com os olhos doces aguardava.

        -- Foi... – por fim Bugrinho falou. E sua voz parecia bater do lado de dentro da sua cabeça, martelar o seu ouvido por dentro antes de com seguir achar o caminho pra fora.

        -- Foi quando eu ainda não morava aqui. Lá passavam muitas lanchas. De todo tamanho.

        -- Mentira, professora. Ele vive aqui desde pequeno. Como é que vai se lembrar?

        A professora levou o dedo aos lábios de novo pedindo silêncio.

        -- Muitos dias antes da lancha chegar, a gente ficava ouvindo o seu barulho...

        Na sala, o silêncio parecia um meio-dia.

        -- ... que é porque o rio faz muitas voltas...

        A professora sorria como quem está ouvindo uma canção de que gosta muito.

        -- ... ou então que, se for na boca da noite, a lancha entrou numa baía e não encontra saída.

        Bugrinho estremeceu como quem sente um arrepio ou quem é acordado de repente. Baixou a cabeça. Piscou o olho esquerdo e desviou os olhos.

        As crianças estavam espantadas com a ousadia de Bugrinho.

        A professora retomou a palavra.

        -- No porto de Cuiabá, tinha uma grande figueira na beira d’água. Debaixo dela, as pessoas ficavam abanando os lenços até as lanchas sumirem na curva do rio.

        Desse dia em diante, o assunto no Estirão Bonito era um só. Ninguém dava certeza. Cada um falava uma coisa. Vinha. Não vinha. Vinha sim.

        -- Se o rio baixar, ela não vem.

        -- Mas ela vem sim. Disque já passou do Poço Feio.

        -- Vir ela vem. Mas não vai parar aqui nem duas horas. Tem que descer rápido o rio senão fica encalhada.

        -- Mas o rio não está baixando. Vocês não estão vendo quanto pau está rodando. Cada cepa de árvore.

        -- Então, vamos ver a marca que eu deixei.

        E lá iam todos para a beira do rio. Todos? Não, cadê Bugrinho? Sumiu. Se bem que Bugrinho era assim mesmo. Não era sempre que estava com a gurizada. Também pra tudo quanto era serviço chamavam Bugrinho. Amanhecia tirando leite. Anoitecia recolhendo gado. Plantava cana. Ajudava na moagem. Remendava canoa furada. Bugrinho pra cá. Bugrinho pra lá. Faz rapadura. Mexe o doce. Cata ovo no quintal. Mesmo assim se dava um tempinho lá estava ele com a criançada. Quietinho. Retraído. Mas sempre lá.

        Mas, depois daquele dia na escola, ele até gostava quando puxavam ele pra lá e pra cá pra tudo quanto é tarefa. Chegava na aula em cima da hora e saía quase correndo quando a professora tocava a sineta. Se pudesse voltar atrás, nunca, teria falado qualquer coisa. Todo dia, ainda morria de vergonha. E se esquecia um pouco daquele dia sempre tinha um pegando no seu pé.

        -- Mentiroso!

        -- Você gosta de aparecer, Bugrinho!

        -- Deu pra inventar agora, é?

        -- Saliente!

        Bugrinho ficava mais quieto ainda. Abaixava a cabeça e um instante antes de desviar os olhos, piscava o olho esquerdo.

        -- Sestroso!

        Aí sumia. Nem as crianças nem os adultos sabiam dar conta dele.

        Sumia a pé ou andando a cavalo em pelo. Por onde? Quando voltava distraído, distraído, parecia que a pergunta não era com ele.

        Ele estava lá. Imóvel no galho mais alto. Olhando longe, sério. Parecia que não tinha nada a ver com as coisas aqui de baixo. Ficava parecendo uma estátua já que só de vez em quando mudava a posição do olhar.

        A vista alcançava todo o grande descampado quase sem nenhuma árvore. Só uma piúva solitária de longe em longe. Campo limpo mesmo. Nem capão tinha. Umas maçarocas de árvores acompanhando um corixo. E só. Lá no fim uma fieira horizontal de árvores bordando o horizonte de lado a lado. Devia de ser com certeza, é sim, a mata da beira do rio. Ou de alguma baía dele.

         Ele gostava mais do cerrado, mas, às vezes, também se aventurava na beira do rio. As suas árvores preferidas era as três figueiras enormes que existiam no pátio do Estirão Bonito. Uma lá no extremo rio acima. Outra no meio perto da casa grande e a terceira já junto da cerca rio abaixo. As figueiras eram mesmo o reino das japuíras com seus ninhos pendurados.

        Gostava também de cruzar o canavial e ir pousar naquelas grandes árvores com raízes à mostra que cresciam na beira lodosa e cheia de folhas mortas das baías.

        Andava por todos os cantos, porque era o rei de tudo.

        Bugrinho concordava que ele era o rei. Ele nunca tinha visto um rei de verdade. Sabia só das aulas de história que existiam reis. Reis de lugares distantes. Reis de histórias de fada. Reis do reino animal. Mas Bugrinho sabia. Claro que ele era rei. Tinha o porte de rei. Tinha o olhar altivo de rei. Movia a cabeça com decisão como um rei.

        E quando alçava voo com as suas asas estendidas. Ninguém se igualava a ele. Aliás, ninguém se igualava a eles. Pois eram as várias espécies os gaviões. Tinham os caramujeiros, que se fartavam, porque o que não faltava no Pantanal eram caramujos. O gavião pescador, acastanhado, também chamado de velho, por ter a cabeça branca. O criquiri, que, diziam, cortava os tendões das asas dos filhotes de tuiuiú ainda no ninho e ficava esperando que eles caíssem ao tentar o primeiro voo. Pequenos gaviões inteiramente pretos. Cracarás carijós, rajadinhos para quem não sabe o que é carijó. O gavião de fumaça ou caboclo, marrom com a ponta da asa preta.

        E aquele que Bugrinho mais admirava, o Macauã. Macauã comedor de cobra. Macauã era visto boa parte do ano. Do Macauã, contavam o seguinte. Se o Macauã viesse, assentasse e cantasse em uma árvore seca como aquelas em que os tuiuiús fazem ninhos, o ano seria de seca. Se, ao contrário, o Macauã cantasse em uma árvore bem verde, o ano seria de muita chuva.

        Eram todos reis das aves, pensava Bugrinho, e por todo lugar ele ia vê-los. Sabia onde encontra-los. Aliás, o que não era difícil. Por ali, eles eram muitos. Bugrinho não conhecia outros lugares mas não sabia porque tinha certeza de que ali era a terra dos gaviões.

        -- Onde você andava, Bugrinho? – a professora quer falar com todas as crianças.

        A professora já estava na classe. Criança por tudo quanto é lado.

        -- Já está tudo certo. A lancha chega amanhã às dez horas.

        As crianças já arfavam descompassadamente.

        -- E se vocês prometerem se comportar...

        -- Vamos poder subir na lancha? – as crianças não falavam mais, gritavam.

        -- Melhor!

        Um silêncio de ouvir mosca voando. Um segundo depis daquela gritaria incontrolável.

        -- O quê, professora?

        -- Fala logo.

        -- Vocês foram convidados para almoçar na lancha.

        Ninguém conseguiria controlar aquelas crianças agora. Nem a professora tentava acabar com aquela euforia. Gritos, assobios. Os olhos da professora estavam longe. Ela se lembrava de seu irmão. Hoje já avô, morando longe.

        Seu irmão tinha por muito tempo lidado com navegação. Praticamente tinha passado a sua juventude em cima de uma lancha. Subindo e descendo o rio, praticando o comércio. Trazia mercadorias, sal, trigo, cerveja em garrafas brancas louçadas. Comprava doces, rapaduras, melado. Recebia encomendas das moças. Trazia e levava notícias. Como era querido por todos, esse irmão.

        Pelas crianças, então, nem se fala. Naquele tempo, se lembrava a professora, a comida servida nas lanchas era de primeira, Ela não se esquecia nunca das uvas, das maçãs argentinas. Ah! Foi por isso mesmo que ela havia se lembrado. As maçãs argentinas eram um dos motivos pelos quais ele era tão querido pelas crianças.

        Quando a lancha vinha subindo o rio. Vindo de onde? De Cáceres, Corumbá? De Assunción no Paraguay? Quando a lancha vinha subindo, as crianças já rumavam para a beira do rio. Subiam nas canoas. Se não tinha canoa no porto da corruptela, se jogavam n água e seguiam nadando rumo às embarcações.

        Da proa da lancha que subia o rio, surgia o seu irmão, o comandante, lançando maçãs para a gurizada. Cheio de alegria, gritava a plenos pulmões com a sua voz levemente anasalada.

        -- Manzanas, Manzanas argentinas.

        A sua voz ecoava nos barrancos e o rio parecia uma piracema de tanta criança. Crianças nadando contra a corrente feito lontras brilhantes.

        -- Professora, professora.

        A professora repetia baixinho.

        -- Manzanas, manzanas argentinas.

        Chegou o dia. Chegou a hora. Como custou. Mas chegou. Todos os pensamentos daquele pequeno mundo estavam centrados na chegada das lanchas. As crianças, então, eram um cochicho só. Um grupinho aqui, outro ali, de repente, todas as brincadeiras haviam perdido a graça. A única graça era esperar. Iam, enfim, conhecer a grande maravilha.

        Mas uma coisa não estava certa. Eles não concordavam. Não conseguiam tirar da cabeça. E, de um modo que eles não conseguiam compreender, aquilo os magoava. No fundo, bem lá no fundo. Da alma, do coração. Onde também é a casa da mágoa. Estragava a alegria que a lancha vinha trazer.

        Como é que Bugrinho, aquele arigó, podia já ter visto, aliás não só ter visto, mas ter conhecido tão bem uma lancha? Como é, como funciona. Por dentro e por fora. Tão bem como eles conheciam um carro de boi ou uma moenda. Parecia que aquilo até tirava a graça da chegada da lancha.

        Só podia ser mentira. Gurizinho mentiroso. Querendo bancar o sabido. Merecia uma lição.

        -- Também acho.

        -- Pra aprender.

        -- Não judiem dele.

        -- Ninguém vai judiar.

        Foi assim. O travo no coração daquelas crianças foi se juntando, se juntando e aquele odiozinho que podia se apagar como um fósforo num terreiro bem limpinho, foi se alastrando, se encorpando, se juntando como se fosse fogo no canavial.

        -- Vai ser só um susto, um sustinho.

        -- Mas ele nunca vai esquecer.

        -- Vai ser até bom pra ele.

        -- Metido.

        -- Acha que é o bom.

        Bugrinho vinha voltando de um daqueles passeios solitários. Havia deixado a mata caminhando pelo sangradouro. Sangradouros, vocês sabem, são aquelas valas que levam água para a baía na cheia e devolvem a água na seca. Nessa época do ano, tinha um pouco de água e lama, mas não estava um rio como costuma ficar no alto da cheia e era mais limpo de andar do que por dentro da mata. Ainda tinha a vantagem de que, na hora que, o sangradouro saísse no pátio da usina, ele poderia caminhar sossegado, pois ninguém o veria da casa grande ou da escola já que ele não tinha muita altura.

        Veio vindo, se misturando com os feixes de cana no engenho. Passou por trás da moenda. Foi quando caíram em cima dele como um bando de urubus. Enfiaram em sua boca um pano sujo. Amarraram seus braços. Suas pernas. Não conseguia gritar. Não adiantava espernear. Sentia muitos braços segurando-o. Eram muitos. Conseguiram colocá-lo dentro de um saco e saíram correndo com ele.

        Bugrinho foi deixado num lugar quente e abafado. Esforça daqui, esforça dali, conseguiu se livrar das cordas e sair do saco. Mas de que adiantou. Estava preso. Conhecia aquele lugar. Era uma espécie de depósito abandonado nos fundos da sala de purgar. Trancado a cadeado por fora. Só uma pequena janela lá no alto, quatro vezes ou mais a altura de Bugrinho. Não havia escada. Apesar da penumbra, logo descobriu que não havia nada em pudesse subir.

        Tentou forçar a porta. Nada. Estava trancado. E bem trancado. Tudo tinha sido muito rápido, mas ele sabia quem tinha feito aquilo com ele. Vira alguns rostos de relance. Ouvira os cochichos. Que eram os seus colegas de escola ele sabia. Mas por quê? Nenhum era seu amigo de verdade. Pra falar a verdade, Bugrinho nem sabia direito o que era isso. Mas, se sabia que o desprezavam, não conseguia atinar de alguém que tivesse raiva dele a ponto de fazer aquilo.

        Devia ser uma brincadeira. Sentou-se encostado à parede mas como estava cansado com a caminhada e ali estava quentinho logo ferrou no sono.

        Acordou assustado, suado, com aquele barulho. Que era aquilo? O som se repetiu e ele já completamente desperto teve a certeza. Como que não iriam se lembrar. A lancha. O apito da lancha. Devia vir subindo o rio e apitando. Levantou-se correndo e tentou abrir a porta. A porta estava trancada. Ele tinha até esquecido.

        A lancha apitou de novo. Devia estar quase chegando.

        Bugrinho fez então o que nunca tinha feito na vida. Gritou. Gritou uma, duas vezes. Gritou uma porção. Gritou muitas e muitas vezes.

        Mas aquele depósito em que o trancaram era longe de tudo. A casa grande, a escola ficava do outro lado do engenho, mais perto do rio. Depois, não devia ter ninguém nas casas. Todo o povo do Estirão Bonito já devia estar plantado na beira do rio vendo a lancha chegar.

        Bugrinho continuou gritando, gritando. Mesmo rouco continuava gritando. Até que seu desespero se transformou num grande pranto.

        A lancha vinha subindo o rio pelo lado esquerdo, que deste lado que ficava o canal do rio. Por isso, sua visão ainda estava encoberta pelos sarãs. Mas as crianças nadavam até o meio do rio e de lá gritavam.

        -- Vem vindo. É linda!

        -- Enorme!

        -- Tem duas chatas!

        O povo todo do Estirão Bonito estava enfileirado na beira do rio, uns no sol quente, outros se abrigando na sombra das figueiras. Por fim, o comboio, a lancha e suas duas chatas, surgiu aos olhos de todos. O comandante acenava com uma das mãos e segurava com a outra o timão. As hélices submersas faziam uma espuma branquinha e a água rebojava e depois virava uma esteira de borbulhas que ia se desfazendo aos poucos já longe parecendo um véu de noiva.

        Após manobrar lentamente, por fim atracou.

        Os tripulantes e passageiros começaram a descer com cuidado pelas tábuas que faziam as vezes de prancha, unindo a embarcação à margem do rio.

        As crianças tiveram direito a tudo que haviam prometido. Puderam andar por todos os lugares. Descer à casa de máquinas e ver o motor poderoso e fedorento. Subir aos camarotes no segundo andar. Cuspir lá de cima e ver as piquiras se assanhando, pensando que era comida.

        A professora, muito bem vestida e emocionada, passado e presente passeando em seu coração, conversava com o comandante.

        Se almoçaram na lancha? Claro que almoçaram. Passou tudo tão rápido como um sonho, que terminou com as lanchas usando toda a largura do rio para fazer as manobras e sumir, bruma da manhã sobre o rio, rapidamente rio abaixo.

        Depois. Muito, muito depois que as lanchas sumiram lá na curva do rio, lá longe onde terminava o estirão. Depois que todos os adultos já tinham subido e só as crianças continuavam na beira do rio, Depois que as crianças já tinham enjoado de olhar aquele estirão que nunca mais ia ser o mesmo sem as lanchas.

        Depois foi que uma das crianças se lembrou.

        -- Bugrinho.

        -- O que é que tem Bugrinho?

        -- Quedê?

        -- Quedê o que?

        -- Bugrinho. Ele não estava aqui. Você não soltou?

        -- Eu? Você que ficou de soltar.

        -- Eu deixei a chave com você, lembra?

        -- Eu guardei a chave no lugar. Não ficou nada combinado.

        As crianças se entreolhavam assustadas. Era pra ser só uma brincadeira. Era prá soltá-lo no último minuto. E agora, coitado do Bugrinho. Coitado deles. Aquilo agora depois daqueles momentos de felicidade. O melhor dia de suas vidas.

        -- Agora...Oh! Meu Deus – gemeu uma das meninas, que vontade de chorar.

        -- Agora, agora... Caga na mão e joga fora – respondeu irritado um dos meninos mais velhos.

        Que maldade tinham feito, que coisa muito ruim, ninguém nunca tinha feito uma coisa tão ruim assim. Seus olhos se falavam assim, sem saber o que fazer.

        Até que um deles desabalou na carreira rumo ao depósito seguido por todas as crianças. Suando, correndo, ofegantes e silenciosas.

        Estacaram em frente ao depósito. Encostaram os ouvidos na porta. Nada. Nenhum ruído. O cadeado continuava fechado.

        -- Bugrinho! Bugrinho!

        Nada.

        -- Me dá a chave.

        Empurraram a porta que foi se abrindo com um guinchado. Lá dentro estava quase escuro. Não dava pra ver quase nada. Aí seus olhos foram se acostumando com a penumbra e eles foram distinguindo o saco, as cordas, o pano sujo que eles tinham enfiado na boca do Bugrinho.

        -- Quedê ele?

        O depósito não era grande e como estava abandonado não havia nenhum móvel atrás do qual Bugrinho pudesse se esconder. Nem nenhuma tralha...

        -- Bugrinho! – chamaram com a voz trêmula.

        Não havia nenhuma outra porta e aquela pela qual eles tinham entrado estava trancada quando eles chegaram.

        -- Meu Deus, quedê Bugrinho?

        As crianças suavam frio. O que estava acontecendo?

        -- Você soltou Bugrinho? Fala!

        Todas as crianças estavam arrepiadas.

        -- Não soltei. Juro!

        Os olhos já tinham se acostumado à penumbra. Eles vasculhavam com olhos atentos o salão vazio. Em seguida, elevaram os olhos para a janela lá no alto. Era impossível que Bugrinho, tão pequeno, sem ter onde subir, pudesse ter fugido por ali.

        Ei! Mas a janela não estava vazia. Um pássaro estava pousado nela.

        Um pequeno gavião. Talvez filhote. Imóvel! Olhando longe. Sério.

        Parecia que não tinha nada a ver com aquelas crianças lá em baixo. Talvez nem as tivesse visto. Parecia uma linda estatueta de madeira envernizada.

        As crianças também pareciam estátuas, pequenas estátuas morenas feitas do barro do barranco. O pequeno gavião olhou as crianças com aqueles olhos redondos, um pouco puxados como de um pequeno índio. Em seguida, abaixou a cabeça e, um momento antes de desviar os olhos, piscou o olho esquerdo.

        As crianças, de olhos arregalados e bocas entreabertas, entretanto permaneciam mudas.

        O gavião encolheu-se preparando para voar. Deu impulso e estendendo as asas alçou voo.

        Como um verdadeiro rei.

        Escutei esta história de um velhinho bem velhinho. Desconfio que ele era uma dessas crianças. Talvez não. Talvez fosse apenas um velho que gostava de inventar histórias. Às vezes, eu pedia que ele me contasse a história de Bugrinho, mas, às vezes, eu pedia pra ele contar a história de Macauã. Ou Macamã. O que é a mesma coisa.

SCAFF, I C. Macauã. IN: CARVALHO, J. M. K. de. LEITE, M. C. S., (Sel. e org.). Na margem esquerda do rio – contos de fim de século. São Paulo: Via Lettera, 2002. p. 71-83.

Entendendo o conto:

01 – Quem é Bugrinho e quais são suas principais características físicas e de comportamento no início do conto?

      Bugrinho é um menino, de uns onze a doze anos, que chegou ao Estirão Bonito muito pequeno. Ele é quieto e calado, com olhos redondos e um pouco puxados como os de índios, e tem o sestro de piscar o olho esquerdo antes de desviar o olhar.

02 – Qual a importância da escola no Estirão Bonito para Bugrinho e como ele se comporta nela?

      A escola é o único "privilégio" de Bugrinho. Apesar de nunca faltar, ele permanece calado e é um mistério se realmente aprende, pois ninguém lhe tomava lições.

03 – Quais lendas e medos assombram as crianças do Estirão Bonito?

      As crianças têm medo do Negrinho d’água e do Minhocão, associados ao sumiço e morte de duas crianças que foram encontradas na beira do rio.

04 – Qual é a grande novidade que a professora anuncia e por que ela causa tanta comoção nas crianças?

      A professora anuncia a chegada de duas lanchas, uma com motor e outra, a "chata", para mercadorias. Isso causa comoção porque há muito tempo uma lancha não subia o rio até ali, e a maioria das crianças nunca havia visto uma.

05 – Qual é a reação de Bugrinho ao anúncio da lancha e o que acontece quando ele tenta compartilhar sua experiência?

      Bugrinho surpreende a todos ao dizer que já subiu em uma lancha, causando espanto, risinhos e cochichos entre as crianças. No entanto, ao tentar contar sua experiência, ele se intimida e não consegue articular as palavras, sendo alvo de desconfiança e zombaria.

06 – Como a professora, em sua fala, relaciona a chegada das lanchas com suas próprias memórias e afetos?

      A professora se emociona ao falar das lanchas, lembrando de seu tempo de moça e de seu irmão, o comandante, que trazia mercadorias e, principalmente, maçãs argentinas, sendo muito querido pelas crianças da época.

07 – Qual o motivo que leva as crianças a armarem uma "brincadeira" cruel com Bugrinho?

      As crianças ficam magoadas e irritadas com a suposta mentira de Bugrinho sobre já ter visto uma lancha. Elas sentem que ele está "bancando o sabido" e que isso "tira a graça" da chegada da lancha para elas, decidindo que ele "merecia uma lição".

08 – Onde e como Bugrinho é capturado e trancado pelas outras crianças?

      Bugrinho é capturado no pátio da usina, ao passar por trás da moenda. As crianças o atacam, enfiam um pano sujo em sua boca, amarram-no e o colocam dentro de um saco, trancando-o em um depósito abandonado com uma janela alta e sem escada.

09 – O que Bugrinho faz ao ouvir o apito da lancha, já que está preso?

      Ao ouvir o apito da lancha, Bugrinho tenta forçar a porta e, ao perceber que está trancado e que a lancha está chegando, ele grita desesperadamente muitas e muitas vezes, até ficar rouco e chorar.

10 – Qual é a revelação final sobre Bugrinho e como ela se conecta ao título do conto?

      A revelação final é que Bugrinho não está mais no depósito. Em vez disso, as crianças veem um pequeno gavião pousado na janela alta, que as observa e pisca o olho esquerdo, exatamente como Bugrinho fazia. Isso sugere que Bugrinho se transformou em um gavião Macauã, uma das aves que ele tanto admirava e que era considerada "rei" entre os gaviões, conectando-se diretamente ao título "Macauã".