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quinta-feira, 19 de outubro de 2023

TEXTO: TRÊS GÊNIOS DE SECRETÁRIA - LIMA BARRETO - COM GABARITO

 Texto: Três Gênios de Secretária

           Lima Barreto

        O meu amigo Augusto Machado, de quem acabo de publicar uma pequena brochura aliteratada — Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá — mandou-me algumas notas herdadas por ele desse seu amigo, que, como se sabe, foi oficial da Secretaria dos Cultos. Coordenadas por mim, sem nada pôr de meu, eu as dou aqui, para a meditação dos leitores:

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhC-DB_jTUWb3TBXNUEkWdRnjfem8KimbDuowdqCujIFdMZlu86pbRQvFBK0UgMhVMRmE7YgO_A9RXDXO3JcYiRNbtqwgvuorD-d3TVud6FKI1TYJgyBBVz8w90wRaWVJ6IO0cC6-QwOPFr0-v_whEQFs3Bo7CUqVwTL1KFaAz7BThDJDN84XKum_uqsUA/s320/BRAS.jpg


        "Estas minhas memórias que há dias tento começar, são deveras difíceis de executar, pois se imaginarem que a minha secretaria é de pequeno pessoal e pouco nela se passa de notável, bem avaliarão em que apuros me encontro para dar volume às minhas recordações de velho funcionário. Entretanto, sem recorrer a dificuldade, mas ladeando-a, irei sem preocupar-me com datas nem tampouco me incomodando com a ordem das cousas e fatos, narrando o que me acudir de importante, à proporção de escrevê-las. Ponho-me à obra.

        Logo no primeiro dia em que funcionei na secretaria, senti bem que todos nós nascemos para empregado público. Foi a reflexão que fiz, ao me Julgar tão em mim, quando, após a posse e o compromisso ou juramento, sentei-me perfeitamente à vontade na mesa que me determinaram. Nada houve que fosse surpresa, nem tive o mínimo acanhamento. Eu tinha vinte e um para vinte e dois anos; e nela me abanquei como se de há muito já o fizesse. Tão depressa foi a minha adaptação que me julguei nascido para ofício de auxiliar o Estado, com a minha reduzida gramática e o meu péssimo cursivo, na sua missão de regular a marcha e a atividade da nação.

        Com familiaridade e convicção, manuseava os livros – grandes montões de papel espesso e capas de couro, que estavam destinados a durar tanto quanto as pirâmides do Egito. Eu sentia muito menos aquele registro de decretos e portarias e eles pareciam olhar-me respeitosamente e pedir-me sempre a carícia das minhas mãos e a doce violência da minha escrita.

        Puseram-me também a copiar ofícios e a minha letra tão má e o meu desleixo tão meu, muito papel fizeram-me gastar, sem que isso redundasse em grande perturbação no desenrolar das cousas governamentais.

        Mas, como dizia, todos nós nascemos para funcionário publico. Aquela placidez do ofício, sem atritos, nem desconjuntamentos violentos; aquele deslizar macio durante cinco horas por dia; aquela mediania de posição e fortuna, garantindo inabalavelmente uma vida medíocre – tudo isso vai muito bem com as nossas vistas e os nossos temperamentos. Os dias no emprego do Estado nada têm de imprevisto, não pedem qualquer espécie de esforço a mais, para viver o dia seguinte. Tudo corre calma e suavemente, sem colisões, nem sobressaltos, escrevendo-se os mesmos papéis e avisos, os mesmos decretos e portarias, da mesma maneira, durante todo o ano, exceto os dias feriados, santificados e os de ponto facultativo, invenção das melhores da nossa República.

        De resto, tudo nele é sossego e quietude. O corpo fica em cômodo jeito; o espírito aquieta-se, não tem efervescência nem angústias; as praxes estão fixas e as fórmulas já sabidas. Pensei até em casar, não só para ter uns bate-bocas com a mulher mas, também, para ficar mais burro, ter preocupações de "pistolões", para ser promovido. Não o fiz; e agora, já que não digo a ente humano, mas ao discreto papel, posso confessar porque. Casar-me no meu nível social, seria abusar-me com a mulher, pela sua falta de instrução e cultura intelectual; casar-me acima, seria fazer-me lacaio dos figurões, para darem-me cargos, propinas, gratificações, que satisfizessem às exigências da esposa. Não queria uma nem outra cousa. Houve uma ocasião em que tentei solver a dificuldade, casando-me. ou cousa que o valha, abaixo da minha situação. É a tal história da criada... Aí foram a minha dignidade pessoal e o meu cavalheirismo que me impediram.

        Não podia, nem devia ocultar a ninguém e de nenhuma forma, a mulher com quem eu dormia e era mãe dos meus filhos. Eu ia citar Santo Agostinho, mas deixo de fazê-lo para continuar a minha narração...

        Quando, de manhã, novo ou velho no emprego, a gente se senta na sua mesa oficial, não há novidade de espécie alguma e, já da pena, escreve devagarinho: "Tenho a honra", etc., etc.; ou, republicanamente, "Declaro-vos. Para os fins convenientes", etc.

        Se há mudança, é pequena e o começo é já bem sabido: "Tenho em vistas"... – ou "Na forma do disposto"...

        Às vezes o papel oficial fica semelhante a um estranho mosaico de fórmulas e chapas; e são os mais difíceis, nos quais o doutor Xisto Rodrigues brilhava como mestre inigualável.

        O doutor Xisto já é conhecido dos senhores, mas não é dos outros gênios da Secretaria dos Cultos. Xisto é estilo antigo. Entrou honestamente, fazendo um concurso decente e sem padrinhos. Apesar da sua pulhice bacharelesca e a sua limitação intelectual, merece respeito pela honestidade que põe em todos os atos de sua vida, mesmo como funcionário. Sai à hora regulamentar e entra à hora regulamentar. Não bajula. Nem recebe gratificações.

        Os dois outros, porém, são mais modernizados. Um é "charadista", o homem que o diretor. consulta, que dá as informações confidenciais, para o presidente e o ministro promoverem os amanuenses. Este ninguém sabe como entrou para a secretaria; mas logo ganhou a confiança de todos, de todos se fez amigo e, em pouco, subiu três passos na hierarquia e arranjou quatro gratificações mensais ou extraordinárias. Não é má pessoa, ninguém se pode aborrecer com ele: é uma criação do ofício que só amofina os outros, assim mesmo sem nada estes saberem ao certo, quando se trata de promoções.

        Há casos muito interessantes; mas deixo as proezas dessa inferência burocrática, em que o seu amor primitivo a charadas, ao logogrifo e aos enigmas pitorescos pôs lhe sempre na alma uma caligem de mistério e uma necessidade de impor aos outros adivinhação sobre ele mesmo. Deixo-a, dizia, para tratar do "auxiliar de gabinete". É este a figura mais curiosa do funcionalismo moderno. É sempre doutor em qualquer cousa; pode ser mesmo engenheiro hidráulico ou eletricista. Veio de qualquer parte do Brasil, da Bahia ou de Santa Catarina, estudou no Rio qualquer cousa; mas não veio estudar, veio arranjar um emprego seguro que o levasse maciamente para o fundo da terra. donde deveria ter saído em planta, em animal e, se fosse possível, em mineral qualquer. É inútil, vadio, mau e pedante, ou antes, pernóstico.

        Instalado no Rio, com fumaças de estudante, sonhou logo arranjar um casamento, não para conseguir uma mulher, mas, para arranjar um sogro influente, que o empregasse em qualquer cousa, solidamente. Quem como ele faz de sua vida, tão-somente caminho para o cemitério, não quer muito: um lugar em uma secretaria qualquer serve. Há os que veem mais alto e se servem do mesmo meio; mas são a quintessência da espécie.

        Na Secretaria dos Cultos, o seu típico e célebre "auxiliar de gabinete", arranjou o sogro dos seus sonhos, num antigo professor do seminário, pessoa muito relacionada com padres, frades, sacristãos, irmãs de caridade, doutores em cânones, definidores, fabriqueiros, fornecedores e mais pessoal eclesiástico.

        O sogro ideal, o antigo professor, ensinava no seminário uma física muito própria aos fins do estabelecimento, mas que havia de horripilar o mais medíocre aluno de qualquer estabelecimento leigo.

        Tinha ele uma filha a casar e o "auxiliar de gabinete", logo viu no seu casamento com ela, o mais fácil caminho para arranjar uma barrigazinha estufadinha e uma bengala com castão de ouro.

        Houve exame na Secretaria dos Cultos, e o "sogro", sem escrúpulo algum, fez-se nomear examinador do concurso para o provimento do lugar e meter nele "o noivo".

        Que se havia de fazer? O rapaz precisava.

        O rapaz foi posto em primeiro lugar, nomeado e o velho sogro (já o era de fato) arranjou-lhe o lugar de "auxiliar de gabinete" do ministro. Nunca mais saiu dele e, certa vez, quando foi, pro formula se despedir do novo ministro, chegou a levantar o reposteiro para sair; mas, nisto, o ministro bateu na testa e gritou:

        — Quem é aí o doutor Mata-Borrão?

        O homenzinho voltou-se e respondeu, com algum tremor na voz e esperança nos olhos:

        — Sou eu, excelência.

        — O senhor fica. O seu "sogro" já me disse que o senhor precisa muito.

        É ele assim, no gabinete, entre os poderosos; mas, quando fala a seus iguais, é de uma prosápia de Napoleão, de quem se não conhecesse a Josefina.

        A todos em que ele vê um concorrente, traiçoeiramente desacredita: é bêbedo, joga, abandona a mulher, não sabe escrever "comissão", etc. Adquiriu títulos literários, publicando a Relação dos Padroeiros das Principais Cidades do Brasil; e sua mulher quando fala nele, não se esquece de dizer: "Como Rui Barbosa, o Chico..." ou "Como Machado de Assis, meu marido só bebe água."

        Gênio doméstico e burocrático, Mata-Borrão, não chegará, apesar da sua maledicência interesseira, a entrar nem no inferno. A vida não é unicamente um caminho para o cemitério; é mais alguma cousa e quem a enche assim, nem Belzebu o aceita. Seria desmoralizar o seu império; mas a burocracia quer desses amorfos, pois ela é das criações sociais aquela que mais atrozmente tende a anular a alma, a inteligência, e os influxos naturais e físicos ao indivíduo. É um expressivo documento de seleção inversa que caracteriza toda a nossa sociedade burguesa, permitindo no seu campo especial, com a anulação dos melhores da inteligência, de saber, de caráter e criação, o triunfo inexplicável de um Mata-Borrão por aí".

        Pela cópia, conforme.

Brás Cubas, Rio, 10-4-1919.

Entendendo o texto:

01 – Quem é o autor do texto?

      O autor do texto é Lima Barreto.

02 – O que o autor descreveu sobre sua experiência ao ingressar na Secretaria dos Cultos?

      O autor descreveu que se sentiu naturalmente à vontade e adaptado ao seu papel de funcionário público ao ingressar na Secretaria dos Cultos.

03 – Qual é a opinião do autor sobre a vida de funcionário público?

      O autor tem uma visão positiva da vida de funcionário público, descrevendo-a como calma, suave e sem sobressaltos, adequada às suas inclinações pessoais.

04 – Quais são os três personagens destacados na Secretaria dos Cultos?

      Os três personagens destacados na Secretaria dos Cultos são: Doutor Xisto Rodrigues, o "charadista" e o "auxiliar de gabinete".

05 – Como o autor descreve o Doutor Xisto Rodrigues?

      O autor descreve o Doutor Xisto Rodrigues como um funcionário honesto, que não faz bajulações nem recebe gratificações.

06 – Qual é a característica principal do "auxiliar de gabinete" na Secretaria dos Cultos?

      O "auxiliar de gabinete" é descrito como alguém que veio de fora do Rio, arranjou um casamento para obter um sogro influente, e busca um emprego seguro no governo.

07 – Como o "auxiliar de gabinete" conseguiu o emprego na Secretaria dos Cultos?

      O "auxiliar de gabinete" conseguiu o emprego na Secretaria dos Cultos através do seu sogro, que era examinador do concurso e o nomeou para o cargo.

08 – Qual é a atitude do "auxiliar de gabinete" em relação aos seus concorrentes?

      O "auxiliar de gabinete" desacredita traiçoeiramente seus concorrentes, espalhando informações negativas sobre eles.

09 – Como o autor descreve a burocracia?

      O autor descreve a burocracia como uma instituição que tende a anular a inteligência, o caráter e os influxos naturais e físicos do indivíduo, criando uma seleção inversa.

10 – O que o autor critica em relação à sociedade burguesa no texto?

      O autor critica a seleção inversa que ocorre na sociedade burguesa, permitindo o triunfo de indivíduos como o "auxiliar de gabinete" em detrimento dos mais talentosos em inteligência, saber e caráter.

 

sábado, 3 de outubro de 2020

CRÔNICA: A CARROÇA DOS CACHORROS - LIMA BARRETO - COM GABARITO

 Crônica: A carroça dos cachorros

                  Lima Barreto 

   Quando de manhã cedo, saio da minha casa, triste e saudoso da minha mocidade que se foi fecunda, na rua eu vejo o espetáculo mais engraçado desta vida.

     Amo os animais e todos eles me enchem do prazer natureza.

    Sozinho, mais ou menos esbodegado, eu, pela manhã desço a rua e vejo.

        O espetáculo mais curioso é o da carroça dos cachorros. Ela me lembra a antiga caleça dos ministros de Estado, tempo do império, quando eram seguidas por duas praças de cavalaria de polícia.

        Era no tempo da minha meninice e eu me lembro disso com as maiores saudades.

        -- Lá vem a carrocinha! - dizem.

        E todos os homens, mulheres e crianças se agitam e tratam de avisar os outros.

        Diz Dona Marocas a Dona Eugênia:

        -- Vizinha! Lá vem a carrocinha! Prenda o Jupi!

        E toda a “avenida" se agita e os cachorrinhos vão presos e escondidos.

        Esse espetáculo tão curioso e especial mostra bem de que forma profunda nós homens nos ligamos aos animais.

        Nada de útil, na verdade, o cão nos dá; entretanto, nós o amamos e nós o queremos.

        Quem os ama mais, não somos nós os homens; mas são as mulheres e as mulheres pobres, depositárias por excelência daquilo que faz a felicidade e infelicidade da humanidade – o Amor.

        São elas que defendem os cachorros dos praças de polícia e dos guardas municipais; são elas que amam os cães sem dono, os tristes e desgraçados cães que andam por aí à toa.

        Todas as manhãs, quando vejo semelhante espetáculo, eu bendigo a humanidade em nome daquelas pobres mulheres que se apiedam pelos cães.

        A lei, com a sua cavalaria e guardas municipais, está no seu direito em persegui-los; elas, porém, estão no seu dever em acoitá-los.

Lima Barreto

Entendendo a crônica:

01 – A partir a leitura da crônica, o adjetivo “pobres” caracteriza:

a)   As mulheres.

b)   Os policiais.

c)   Os sentimentos do cronista.

d)   Os cães.

02 – A crônica é narrada em 1ª ou em 3ª pessoa? Destaque do texto elementos que justifiquem o foco narrativo escolhido.

      É narrada em 1ª pessoa, conforme este trecho: “— Quando de manhã cedo, saio...”.

03 – O narrador participa da história ou apenas observa?

      Não, apenas observa.

04 – Onde e quando se passa a história?

      Na rua onde mora o narrador e o fato acontece de manhã, cedo.

05 – No trecho: “E toda a “avenida” se agita e os cachorrinhos vão presos e escondidos”, as aspas na palavra avenida foram utilizadas com propósito:

a)   Expressivo figurativo.

b)   Apenas de chamar a atenção para a passagem da carrocinha.

c)   De marcar ironia.

d)   De indicar que se trata de palavra de língua estrangeira.

06 – Transcreva do texto adjetivos e/ou locuções adjetivas que se referem:

a)   Aos sentimentos do cronista.

Triste, saudoso, solitário, esbodegado.

b)   Aos cachorros.

Tristes, desgraçados.

07 – No trecho: “São elas que defendem os cachorros dos praças de polícia e dos guardas municipais; são elas que amam os cães sem dono, os tristes e desgraçados cães que andam por aí à toa.”, as palavras destacadas se referem a:

a)   Vizinhas.

b)   Às mulheres.

c)   Dona Marocas e Dona Eugênia.

d)   Às mulheres e às mulheres pobres.

08 – Em:

        “E todos os homens, mulheres e crianças se agitam e tratam de avisar os outros.

        Diz Dona Marocas a Dona Eugênia:

        -- Vizinha! Lá vem a carrocinha! Prenda o Jupi!”.

        A transformação correta do trecho sublinhado no texto para o discurso indireto no pretérito está na alternativa:

a)   Dona Marocas disse à vizinha que está vindo a carrocinha e que ela prende o Jupi!

b)   Dona Marocas disse à vizinha que está vindo a carrocinha e que ela devesse prende o Jupi!

c)   Dona Marocas disse à vizinha que virá a carrocinha e que Dona Eugênia deve prender o Jupi.

d)   Dona Marocas dizia à vizinha que aqui viria a carrocinha e que Dona Marocas deverá prender o Jupi.

09 – São características da crônica:

I – A presença de heróis e seres sobrenaturais.

II – Explicar acontecimentos misteriosos e sobrenaturais nos quais a natureza tem papel marcante.

III – Gênero narrativo marcado pela brevidade, narra fatos históricos em ordem cronológica.

IV – Gênero narrativo publicado em jornal ou revista, destina-se à leitura diária ou semanal, pois trata de acontecimentos cotidianos.

V – Ausência de autor conhecido, em razão de sua origem muito antiga e oral.

        Após analisar as afirmativas acima, marque a única alternativa correta.

a)   I e II.

b)   I e III.

c)   IV e V.

d)   I e V.

e)   III e IV.

10 – O texto apresenta um fato que faz parte do cotidiano das pessoas de uma rua. Que fato é esse?

      O fato de uma vizinha ter avisado a outra que era para esconder seu cachorro que a carrocinha estava passando. Ser solidário com outro vizinho.

11 – Das alternativas a seguir, qual a que melhor sintetiza a crônica de Lima Barreto?

a)   O cronista está saudoso de sua mocidade, portanto escreve um texto sobre os cachorros.

b)   Em sua crônica, Lima Barreto faz uma crítica severa à carroça dos cachorros, que torna a vida das pessoas mais simples, um transtorno.

c)   Lima Barreto demonstra, em sua crônica, que as pessoas são mais solidárias com os cachorros que com outras pessoas.

d)   O olhar do cronista, quase ingênuo, observa um episódio corriqueiro, a passagem da carroça dos cachorros, e o transforma em um tributo à natureza humana.

e)   O episódio da passagem da carroça dos cachorros leva o cronista a refletir sobre questões cruciais para a realidade do Brasil, como a segurança, por exemplo.

 

 

CONTO: A MULHER DO ANACLETO - LIMA BARRETO - COM GABARITO

 Conto: A Mulher do Anacleto

                Lima Barreto

       Este caso se passou com um antigo colega meu de repartição.

  Ele, em começo, era um excelente amanuense, pontual, com magnífica letra e todos os seus atributos do ofício faziam-no muito estimado dos chefes.

      Casou-se bastante moço e tudo fazia crer que o seu casamento fosse dos mais felizes. Entretanto, assim não foi.

        No fim de dois ou três anos de matrimônio, Anacleto começou a desandar furiosamente. Além de se entregar à bebida. Deu-se também ao jogo.

        A mulher muito naturalmente começou a censurá-lo.

        A princípio, ele ouvia as observações da cara metade com resignação; mas, em breve, enfureceu-se com ela e deu em maltratar fisicamente a pobre rapariga.

        Ela estava no seu papel, ele, porém, é que não estava no dele.

        Motivos secretos e muito íntimos, talvez explicassem a sua transformação; a mulher, porém, é que não queria entrar em indagações psicológicas e reclamava. As respostas a estas acabaram por pancadaria grossa. Suportou-a durante algum tempo. Um dia, porém, não esteve mais pelos autos e abandonou o lar precário. Foi para a casa de um parente e de uma amiga, mas, não suportando a posição inferior de agregada, deixou-se cair na mais relaxada vagabundagem de mulher que se pode imaginar.

        Era uma verdadeira "catraia" que perambulava suja e rota pelas praças mais reles deste Rio de Janeiro.

        Quando se falava a Anacleto sobre a sorte da mulher, ele se enfurecia doidamente:

        — Deixe essa vagabunda morrer por aí! Qual minha mulher, qual nada!

        E dizia cousas piores e injuriosas que não se podem pôr aqui.

        Veio a mulher a morrer, na praça pública; e eu que suspeitei, pelas notícias dos jornais, fosse ela, apressei-me em recomendar a Anacleto que fosse reconhecer o cadáver. Ele gritou comigo:

        — Seja ou não seja! Que morra ou viva, para mim vale pouco!

        Não insisti, mas tudo me dizia que era a mulher do Anacleto que estava como um cadáver desconhecido no necrotério.

        Passam-se anos, o meu amigo Anacleto perde o emprego, devido à desordem de sua vida. Ao fim de algum tempo, graças à interferência de velhas amizades, arranja um outro, num Estado do Norte.

        Ao fim de um ano ou dois, recebo uma carta dele, pedindo-me arranjar na polícia certidão de que sua mulher havia morrido na via pública e fora enterrada pelas autoridades públicas, visto ter ele casamento contratado com uma viúva que tinha "alguma cousa", e precisar também provar o seu estado de viuvez.

        Dei todos os passos para tal, mas era completamente impossível. Ele não quisera reconhecer o cadáver de sua desgraçada mulher e para todos os efeitos continuava a ser casado.

        E foi assim que a esposa do Anacleto vingou-se postumamente. Não se casou rico, como não se casará nunca mais.

www.nead.unama.br

Entendendo o conto:

01 – Identifique no texto:

a)   Título e autor:

A mulher de Anacleto, de Lima Barreto.

b)   Como inicia a história:

O autor apresenta o Anacleto.

c)   Tema ou acontecimento:

A separação do casal devido a comportamento agressivos de Anacleto.

d)   Tipo de linguagem:

Linguagem culta, norma padrão da língua.

e)   Fatos que formam a história (enredo):

Anacleto torna-se agressivo. A mulher vai embora de casa. Vai morar com amiga, mas não suporta a vida de agregada. Cai na “vida”. Morre em praça pública. O órgão de segurança pública a sepultada como indigente, pois o ex-marido não faz reconhecimento. Anacleto tenta casar novamente, mas não pode, porque não reconhece o matrimônio.

f)    Personagens:

Anacleto e sua esposa.

g)   Tempo:

Passado.

h)   Espaço:

Rio de Janeiro.

i)     Narrador:

O narrador, além de narrar, participa de alguns momentos da história. Identifica-se tanto a 3ª como a 1ª pessoa.

j)     Localize no texto lido trechos que representam a fala do narrador e a fala do(a) personagem(ns).

·        Fala do narrador:

“Este caso se passou com um antigo colega meu de repartição.

Ele, em começo, era um excelente amanuense, pontual, com magnífica letra e todos os seus atributos do ofício faziam-no muito estimado dos chefes.

Casou-se bastante moço e tudo fazia crer que o seu casamento fosse dos mais felizes. Entretanto, assim não foi.”

·        Fala da personagem:

Discurso direto: “— Seja ou não seja! Que morra ou viva, para mim vale pouco!”

k)   Que emoção o conto desperta?

O conto traz uma lição, um ensinamento: “o que faz aqui, paga-se aqui”.

l)     O final é inesperado?

O final é inesperado porque não se espera que Anacleto receba com a mesma moeda o favor que não fez.

 

 

 

 

terça-feira, 30 de abril de 2019

ROMANCE: TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA - (FRAGMENTO) - LIMA BARRETO

Romance: Triste fim de Policarpo Quaresma                
                   Fragmento 

                                  Lima Barreto
        [...]
        Como lhe parecia ilógico com ele mesmo estar ali metido naquele estreito calabouço. Pois ele, o Quaresma plácido, o Quaresma de tão profundos pensamentos patrióticos, merecia aquele triste fim?
        De que maneira sorrateira o Destino o arrastara até ali, sem que ele pudesse pressentir o seu extravagante propósito, tão aparentemente sem relação com o resto da sua vida? Teria sido ele com os seus atos passados, com as suas ações encadeadas no tempo, que fizera com que aquele velho deus docilmente o trouxesse até à execução de tal desígnio? Ou teriam sido os fatos externos, que venceram a ele, Quaresma, e fizeram-no escravo da sentença da onipotente divindade? Ele não sabia, e, quando teimava em pensar, as duas coisas se baralhavam, se emaranhavam e a conclusão certa e exata lhe fugia.
        Não estava ali há muitas horas. Fora preso pela manhã, logo ao erguer-se da cama; e, pelo cálculo aproximado do tempo, pois estava sem relógio e mesmo se o tivesse não poderia consultá-lo à fraca luz da masmorra, imaginava podiam ser onze horas.
        Por que estava preso? Ao certo não sabia; o oficial que o conduzira, nada lhe quisera dizer; e, desde que saíra da ilha das Enxadas para a das Cobras, não trocara palavra com ninguém, não vira nenhum conhecido no caminho, nem o próprio Ricardo que lhe podia, com um olhar, com um gesto, trazer sossego às suas dúvidas. Entretanto, ele atribuía a prisão à carta que escrevera ao presidente, protestando contra a cena que presenciara na véspera.
        Não se pudera conter. Aquela leva de desgraçados a sair assim, a desoras, escolhidos a esmo, para uma carniçaria distante, falara fundo a todos os seus sentimentos; pusera diante dos seus olhos todos os seus princípios morais; desafiara a sua coragem moral e a sua solidariedade humana; e ele escrevera a carta com veemência, com paixão, indignado. Nada omitiu do seu pensamento; falou claro, franca e nitidamente.
        Devia ser por isso que ele estava ali naquela masmorra, engaiolado, trancafiado, isolado dos seus semelhantes como uma fera, como um criminoso, sepultado na treva, sofrendo umidade, misturado com os seus detritos, quase sem comer... Como acabarei? Como acabarei? E a pergunta lhe vinha, no meio da revoada de pensamentos que aquela angústia provocava pensar. Não havia base para qualquer hipótese. Era de conduta tão irregular e incerta o Governo que tudo ele podia esperar: a liberdade ou a morte, mais esta que aquela.
        O tempo estava de morte, de carnificina; todos tinham sede de matar, para afirmar mais a vitória e senti-la bem na consciência coisa sua, própria, e altamente honrosa.
        Iria morrer, quem sabe se naquela noite mesmo? E que tinha ele feito de sua vida? Nada. Levara toda ela atrás da miragem de estudar a pátria, por amá-la e querê-la muito, no intuito de contribuir para a sua felicidade e prosperidade. Gastara a sua mocidade nisso, a sua virilidade também; e, agora que estava na velhice, como ela o recompensava, como ela o premiava, como ela o condecorava? Matando-o. E o que não deixará de ver, de gozar, de fruir, na sua vida? Tudo. Não brincara, não pandegara, não amara - todo esse lado da existência que parece fugir um pouco à sua tristeza necessária, ele não vira, ele não provara, ele não experimentara.
        Desde dezoito anos que o tal patriotismo lhe absorvia e por ele fizera a tolice de estudar inutilidades. Que lhe importavam os rios? Eram grandes? Pois que fossem... Em que lhe contribuiria para a felicidade saber o nome dos heróis do Brasil? Em nada... O importante é que ele tivesse sido feliz. Foi? Não. Lembrou-se das suas coisas de tupi, do folk-lore, das suas tentativas agrícolas... Restava disso tudo em sua alma uma satisfação? Nenhuma! Nenhuma!
        O tupi encontrou a incredulidade geral, o riso, a mofa, o escárnio; e levou-o à loucura. Uma decepção. E a agricultura? Nada. As terras não eram ferazes e ela não era fácil como diziam os livros. Outra decepção. E, quando o seu patriotismo se fizera combatente, o que achara? Decepções. Onde estava a doçura de nossa gente? Pois ele não a viu combater como feras? Pois não a via matar prisioneiros, inúmeros? Outra decepção. A sua vida era uma decepção, uma série, melhor, um encadeamento de decepções.

                                             São Paulo: Saraiva, 2007. p. 199-201.
Entendendo o romance:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo;
·        Desora: tarde da noite, altas horas.
·        Feraz: muito produtivo, fecundo, fértil.
·        Fruir: desfrutar, aproveitar, gozar.
·        Mofa: zombaria, troça.
·        Pandegar: viver em festa.

02 – Policarpo Quaresma participava como voluntário na Revolta da Armada, ao lado de Floriano Peixoto, quando foi preso. De acordo com as pistas do texto, levante hipóteses:
a)   Por que Quaresma foi preso?
Por ter feito uma crítica ao modo como os presos eram tratados na prisão.

b)   O que provavelmente ele viu na prisão, e o teria levado a escrever a carta-denúncia?
Ele vira presos serem levados para serem fuzilados às escondidas.

c)   Como Quaresma supõe que Floriano Peixoto interpretou essa iniciativa dele?
Como traição.

03 – Na prisão, Quaresma faz uma retrospectiva e uma avaliação de sua vida, de sua conduta e de seus valores. A que conclusão chega?
      Ele chega à conclusão de que tudo fora inútil, pois não houve reconhecimento de seus esforços pelo bem do Brasil.

04 – Observe estes fragmentos do texto:
          “E, agora estava na velhice, como ela (a pátria) o recompensava, como ela o premiava, como ela o condecorava? Matando-o.”
          “Onde estava a doçura de nossa gente? Pois ele não a viu combater como feras?”

a)   Nesses fragmentos, a quem Quaresma atribui a responsabilidade, respectivamente, por sua prisão e pela violência da guerra?
À pátria e ao povo.

b)   Quem, na verdade, tinha responsabilidade por tais ocorrências?
O governo do Marechal Floriano.

c)   Apesar de Quaresma fazer uma autocrítica, que característica da personagem ainda se mantém nesses fragmentos?
A ingenuidade.

05 – No texto, é empregada a técnica do discurso indireto livre. Identifique um trecho em que tal recurso foi utilizado e explique o efeito de sentido que ele provoca no texto.
      Entre outros: “Como acabarei? Como acabarei?”. O emprego do discurso indireto livre permite retratar de modo mais aprofundado o estado psicológico de Quaresma na prisão.

06 – No final do texto se lê: “A sua vida era uma decepção, uma série, melhor, um encadeamento de decepções”. Explique a diferença de sentido entre “série de decepções” e “encadeamento de decepções”.
      “Série de decepções” dá uma noção de sequência, apenas. Já “Encadeamento de decepções” dá uma ideia de causa e efeito, isto é, uma decepção leva a outra, e assim sucessivamente.

07 – Policarpo Quaresma, muitas vezes associado a D. Quixote, personagem de Miguel de Cervantes, é um típico herói problemático. Explique por quê?
      Porque era um idealista, um visionário, que se frustra ao ver que seus projetos não são compatíveis com a realidade do país.

08 – Pode-se dizer que o romance Triste fim de Policarpo Quaresma faz uma crítica à sociedade da época. Qual é o alvo dessa crítica?
      Entre outras possibilidades: por um lado, o nacionalismo ingênuo e desprovido de críticas cultivado por algumas pessoas e grupos sociais; por outro lado, o autoritarismo e a falta de valores éticos e morais dos governantes.