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segunda-feira, 11 de outubro de 2021

CONTO: EXERCÍCIO PARA - NATHALIE LOURENÇO - COM GABARITO

 Conto: Exercício para

           Nathalie Lourenço

        Existe uma foto que sempre me fazia chorar. São duas crianças de etnias inimigas, mas quase não se vê qual é qual, pois as duas estão cobertas de fuligem, sentadas sobre uns escombros e vestidas apenas com fraldas e sapatinhos. Quem tirou essa foto fui eu. Depois, ela estamparia capas de jornais do mundo todo, ganharia prêmios, me tiraria do nada e me levaria a ser uma das fotógrafas mais procuradas do meio. Nunca foi nada disso que fazia despertar tremores e inundações dentro de mim, e sim a mesma coisa indefinível que me levou a fazer o clique. Uma penugem de cinzas cobrindo os cílios das crianças. A forma que suas mãozinhas se entrelaçavam, sem saber que tinham nascido para se odiar. A vida que continua no meio de um mundo destroçado.

        Essa foto (chama-se Castor e Pólux) foi impressa em um painel de 3 metros de altura. Eu fiquei de frente para ela na exposição em minha homenagem organizado pela fundação de Janus e, pela primeira vez em mais de 30 anos, os meus olhos permaneceram secos. Doutor Kobayashi disse que a perda gradual da emotividade é um sintoma comum de quem usa há muito tempo o CyberCortex: o cérebro artificial tem dificuldade para sinalizar a produção de endorfinas. Assim, pediu que eu fizesse alguns exercícios.

        Exercício para tristeza
        Fa
ça um prato de comida. Assista enquanto ele esfria.
        Ao esquent
á-lo novamente, imagine se o sabor é o mesmo ou se algo se perdeu.
        Pense sobre isso por dois minutos.

        Hoje vou tomar um café com Janus. Impossível não associar sua figura barbuda a um acampamento, uma mochila surrada e uma câmera no pescoço. Ninguém entende melhor as zonas de guerra do que ele.

        O medo nunca passa nas zonas de guerra. Mesmo depois de muitos anos e muitas guerras diferentes. Você precisa se concentrar no que está a sua frente, no visor da câmera, e pode não perceber algo importante, como um estilhaço ou uma bala vindo em direção à sua cabeça. Graças ao medo, fui uma das primeiras a fazer o download de memórias para a tecnologia do CyberCortex, em uma época em que isso ainda era considerado excêntrico e antinatural. Hoje, apenas um louco faria o que eu e Janus fazíamos sem antes fazer um upload cerebral completo. Hoje, apenas Janus continua a fazê-lo. Eu não. E quando o estilhaço veio, morte cerebral não significava mais morte. Na volta, foi difícil me acostumar. Caía muito. A maior diferença é o peso da cabeça. Um chip não pesa muito, mesmo com a espuma de alta densidade que é usada para que a cabeça não fique – literalmente – oca.

        Era perigoso, e eu era inconsequente. Janus arranjou trabalhos freelance para mim em revistas de notícia e de moda, mas não era isso que eu queria fazer. Em pouco tempo estava de volta às trincheiras. Sei que perdi o equilíbrio perto de um campo minado por causa das pernas cibernéticas que uso hoje. Mandei que deletassem a memória do meu HD, por causa do stress pós-traumático. Assim, a única lembrança que tenho desse momento é uma foto tirada sem querer, por um dedo crispado de dor, um borrão 85% terra e 15% céu.

        Meus arquivos saltam diretamente para o momento que acordei na ala de BioTech do hospital. Janus está lá, o que me preocupou de imediato. Seu contrato previa ainda 2 meses no campo de refugiados. Ele explicou sobre o funcionamento dos joelhos mecânicos, primeiro receoso, mas logo voltou a ser ele mesmo, brincando que eu sempre tive umas belas dumas pernas e que agora elas seriam eternas. Se gabou de ter feito com que fossem modeladas a partir de umas fotos de quando eu tinha 25 anos. As duas longas traquitanas se dobram de forma involuntária quando eu começo a rir.

        Exercício para amor
        Escolha uma parte pequena de uma pessoa
à sua escolha.
        Observe detalhes como: uma dobra da orelha, a forma que as cores se alteram na borda das pupilas. N
ão pare até encontrar a beleza insuportável que há nisto.

        Janus está atrasado para nosso café. Peço mais um duplo, correndo o risco de desregular o PH do meu estômago químico. Passam-se duas horas, e nada de Janus. Envio mensagens para seu aparelho pessoal e para o serviço de nanomensagens. É desagradável, mas faço uma ligação para sua casa, torcendo que sua nova esposa não atenda, e sim um Janus esquecido e de pijamas. Segundo Vivian, ele saiu há mais de duas horas. Saio do café e caminho no ar gelado da rua. De costas, algumas pessoas se parecem com ele, mas apenas de costas. De frente, vemos os vidros e as chapas metálicas, os braços mecânicos e unhas microchipadas. Apenas Janus é todo carne e obsolescência. Recebo uma ligação de Lóris, da exposição, pedindo que eu vá para lá o quanto antes.

        É dia de semana, e às 17h, há quase ninguém no hall. Distingo logo a figura de Janus, pequeno contra a gigantesca reprodução de Castor e Pólux. Lóris está ao seu lado e diz em voz tranquilizadora Está Vendo, Cali Chegou, Cali Está Aqui, e ele se cala e me mede com os olhos gelatinosos, os mesmos olhos com que nasceu, e pelo modo que abre e fecha boca, vejo que não sabe quem eu sou. Abana a cabeça e, sem dizer palavra, ergue os olhos para as duas crianças titânicas, cobertas de cinza e desamparo.

        Ainda não consigo chorar.

LOURENÇO, Nathalie. Exercício para. In: Raimundo – Revista de nova literatura brasileira. Disponível em: http://www.revistaraimundo.com.br/9/nl1_c.php. Acesso em: 27 fev. 2019.

Fonte: Língua Portuguesa – Programa mais MT – Ensino fundamental anos finais – 9° ano – Moderna – Thaís Ginícolo Cabral. p. 34-40.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Endorfinas: neurotransmissor produzido pelo corpo humano cuja elevação reduz a ansiedade, os sintomas de depressão e o apetite.

·        Titânica: adjetivo utilizado para caracterizar algo grande e forte; relativo a titãs, divindades clássicas que enfrentaram Zeus.

·        Traquitanas: engrenagem; módulo móvel de ferro para sustentação e deslocamento.

02 – Retorne o que pensou a respeito do título da narrativa e responda por que o título parece estar incompleto?

      Resposta pessoal do aluno.

03 – Antes de ler o texto, você levantou hipóteses sobre os exercícios mencionados. O que você havia imaginado se confirmou após a leitura do texto?

      Resposta pessoal do aluno.

04 – No início do conto, a personagem descreve uma fotografia que retrata uma questão social.

a)   Qual é a questão social retratada?

A imagem retrata duas crianças, de etnias inimigas, cobertas por poeira de escombros.

b)   Em que cenário a foto tirada por Cali foi ambientada?

Provavelmente em uma guerra entre duas etnias num futuro não datado.

c)   O retrato fotográfico criado pela narradora tem um nome e faz referência a uma figura mítica. Qual?

A foto recebe o título de “Castor e Pólux” e faz referência aos irmãos por parte de mãe Castor e Pólux, personagens da mitologia grega, mas apenas o segundo é filho de Zeus e, portanto, imortal. Diante de um conflito, Pólux divide sua imortalidade com Castor para que permaneçam juntos para sempre. Ela foi utilizada como título da foto, provavelmente, para marcar a fraternidade entre as duas crianças, que, mesmo sendo de etnias diferentes, estavam ligadas como irmãs numa situação de conflito.

05 – Para se referir à imagem que retratou, a narradora utiliza duas palavras diferentes.

a)   Quais são essas palavras?

Para se referir à imagem, Cali utiliza foto e clique.

b)   Que outras palavras poderiam ser utilizadas pela autora para evitar repetição dessa palavra?

Fotografia, registro fotográfico, retrato, entre outros sinônimos.

06 – No conto, a autora se vale de diferentes expressões para revelar o modo como a personagem não conseguia mais sentir as coisas. Quais são?

      As expressões meus olhos permaneceram secos, sempre me fazia chorar, nunca foi nada disso que fazia despertar tremores e inundações dentro de mim, etc.

07 – Releia agora um trecho do conto:

        Hoje vou tomar um café com Janus. Impossível não associar sua figura barbuda a um acampamento, uma mochila surrada e uma câmera no pescoço. Ninguém entende melhor as zonas de guerra do que ele.

        O medo nunca passa nas zonas de guerra. Mesmo depois de muitos anos e muitas guerras diferentes. Você precisa se concentrar no que está a sua frente, no visor da câmera, e pode não perceber algo importante, como um estilhaço ou uma bala vindo em direção à sua cabeça. [...]”.

LOURENÇO, Nathalie. Exercício para. In: Raimundo – Revista de nova literatura brasileira. Disponível em: http://www.revistaraimundo.com.br/9/nl1_c.php. Acesso em: 27 fev. 2019.

·        Ainda que o conto não anuncie diretamente a profissão de Janus, podemos inferi-la a partir do trecho lido. Com o que Janus trabalhava?

Janus também era fotógrafo de guerra, assim como Cali.

08 – Por que Cali perdeu a emotividade?

      Cali trabalhava como fotografa, cobrindo reportagens de guerras e conflitos. Em um desses trabalhos, um estilhaço atingiu sua cabeça e a fez sofrer uma espécie de morte cerebral. No entanto, tempos antes de isso ocorrer, a humanidade havia criado uma nova tecnologia que permitiria o upload de memórias. Dessa forma, ela teve seu cérebro transplantado e substituído por um chip, perdendo assim a capacidade de sentir as coisas e de emocionar.

09 – O que seria o CyberCortex?

      CyberCortex é o nome da tecnologia que permitiu à personagem principal permanecer viva, fazendo com que as memórias humanas fossem armazenadas em um arquivo digital e depois transferidas para um chip.

10 – Leia novamente um dos exercícios que o Doutor Kobayashi pediu a Cali que fizesse:

        Exercício para tristeza
          Fa
ça um prato de comida. Assista enquanto ele esfria.
          Ao esquent
á-lo novamente, imagine se o sabor é o mesmo ou se algo se perdeu.
          Pense sobre isso por dois minutos.”

LOURENÇO, Nathalie. Exercício para. In: Raimundo – Revista de nova literatura brasileira. Disponível em: http://www.revistaraimundo.com.br/9/nl1_c.php. Acesso em: 27 fev. 2019.

a)   Os trechos que marcam os exercícios feitos pela personagem para recuperar a sensibilidade estão destacados de que forma ao longo do texto? Por que a autora do conto optou por fazer esse destaque?

Os trechos foram destacados em itálico e obedecem a um recuo em relação ao restante do texto. A autora possivelmente optou por esses destaques porque queria dar visibilidade ao texto dos exercícios.

b)   Imagine agora que você fosse convidado a colaborar com a pesquisa do Doutor Kobayashi. Que exercícios você sugeriria que Cali fizesse para recuperar as emoções apresentadas?

Resposta pessoal do aluno.

c)   Agora pense em uma sensação ou emoção e crie uma receita para ela.

        Exercício para...

Resposta pessoal do aluno.

11 – No final do conto, o discurso direto, ou seja, as falas da personagem Lóris são marcadas de modo não convencional. Que recurso foi utilizado pela autora para marcar as falas? Por que ela utiliza esse recurso?

      A autora utiliza letras maiúsculas no trecho “Está Vendo, Cali Chegou, Cali Está Aqui”. Resposta pessoal do aluno.

12 – Outro aspecto interessante na organização da narrativa são os nomes dos personagens. Tanto Janus como Cali são referências a nomes de divindades. Faça uma breve pesquisa sobre essas figuras míticas e levante uma hipótese sobre o uso desses termos.

      Resposta pessoal do aluno.