Conto: EMÍLIA
NO PAÍS DA GRAMÁTICA – Uma ideia da Senhora Emília
Monteiro Lobato
Dona Benta, com aquela paciência de
santa, estava ensinando gramática a Pedrinho. No começo Pedrinho rezingou.
—
Maçada, vovó. Basta que eu tenha de lidar com essa caceteação lá na
escola. As férias que venho passar aqui são só para brinquedo. Não, não e não.
. .
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—
Mas, meu filho, se você apenas recordar com sua avó o que anda
aprendendo na escola, isso valerá muito para você mesmo, quando as aulas se
reabrirem. Um bocadinho só, vamos! Meia hora por dia. Sobram ainda vinte e três
horas e meia para os famosos brinquedos.
Pedrinho fez bico, mas afinal cedeu; e
todos os dias vinha sentar-se diante de Dona Benta, de pernas cruzadas como um
oriental, para ouvir explicações de gramática.
—
Ah, assim, sim! — dizia ele. — Se meu professor ensinasse como a
senhora, a tal gramática até virava brincadeira.
Mas o homem obriga a gente a decorar
uma porção de definições que ninguém entende. Ditongos, fonemas, gerúndios. . .
Emília habituou-se a vir assistir às
lições, e ali ficava a piscar, distraída, como quem anda com uma grande ideia
na cabeça.
É que realmente andava com uma grande
ideia na cabeça.
—
Pedrinho — disse ela um dia depois de terminada a lição —, por que, em
vez de estarmos aqui a ouvir falar de gramática, não havemos de ir passear no
País da Gramática?
O menino ficou tonto com a proposta.
—
Que lembrança, Emília! Esse país não existe, nem nunca existiu.
Gramática é um livro.
— Existe, sim. O rinoceronte, que é um
sabidão, contou-me que existe. Podemos ir todos, montados nele. Topa?
Perguntar a Pedrinho se queria meter-se
em nova aventura era o mesmo que perguntar a macaco se quer banana. Pedrinho
aprovou a ideia com palmas e pinotes de alegria, e saiu correndo para convidar
Narizinho e o Visconde de Sabugosa. Narizinho também bateu palmas — e se não
deu pinotes foi porque estava na cozinha, de peneira ao colo, ajudando Tia
Nastácia a escolher feijão.
—
E onde fica esse país? — perguntou ela.
—
Isso é lá com o rinoceronte — respondeu o menino. — Pelo que diz a
Emília, esse paquiderme é um grandessíssimo gramático.
—
Com aquele cascão todo?
—
É exatamente o cascão gramatical — asneirou Emília, que vinha entrando com
o Visconde.
Os meninos fizeram todas as combinações
necessárias, e no dia marcado partiram muito cedo, a cavalo no rinoceronte, o
qual trotava um trote mais duro que a sua casca. Trotou, trotou e, depois de
muito trotar, deu com eles numa região onde o ar chiava de modo estranho.
—
Que zumbido será esse? — indagou a menina.
— Parece que andam voando por aqui
milhões de vespas invisíveis.
—
É que já entramos em terras do País da Gramática — explicou o
rinoceronte.
— Estes zumbidos são os SONS ORAIS, que
voam soltos no espaço.
—
Não comece a falar difícil que nós ficamos na mesma — observou Emília. —
Sons Orais, que pedantismo é esse?
—
Som Oral quer dizer som produzido pela boca, A, E, I, O, U são Sons
Orais, como dizem os senhores gramáticos,
—
Pois diga logo que são letras! — gritou Emília.
—
Mas não são letras! — protestou o rinoceronte. — Quando você diz A ou O,
você está produzindo um som, não está escrevendo uma letra. Letras são
sinaizinhos que os homens usam para representar esses sons. Primeiro há os Sons
Orais; depois é que aparecem as letras, para marcar esses Sons Orais. Entendeu?
O ar continuava num zunzum cada vez
maior. Os meninos pararam, muito atentos, a ouvir.
—
Estou percebendo muitos sons que conheço — disse Pedrinho, com a mão em
concha ao ouvido.
—
Todos os sons que andam zumbindo por aqui são velhos conhecidos seus,
Pedrinho.
—
Querem ver que é o tal alfabeto? — lembrou Narizinho. — E é mesmo!...
Estou distinguindo todas as letras do alfabeto...
—
Não, menina; você está apenas distinguindo todos os sons das letras do
alfabeto — corrigiu o rinoceronte com uma pachorra igual à de Dona Benta. — Se
você escrever cada um desses sons, então, sim; então surgem as letras do
alfabeto.
—
Que engraçado! — exclamou Pedrinho, sempre de mão em concha ao ouvido. —
Estou também distinguindo todas as letras do alfabeto: o A, o C, o D, o X, o M...
O rinoceronte deu um suspiro.
—
Mas chega de sons invisíveis — gritou a menina. —-Toca para diante.
Quero entrar logo no tal País da Gramática.
— Nele já estamos — disse o paquiderme.
— Esse país principia justamente ali onde o ar começa a zumbir. Os sons
espalhados pelo ar, e que são representados por letras, fundem-se logo adiante
em SÍLABAS, e essas Sílabas formam PALAVRAS — as tais palavras que constituem a
população da cidade onde vamos. Reparem que entre as letras há cinco que
governam todas as outras. São as Senhoras VOGAIS — cinco madamas emproadas e
orgulhosíssimas, porque palavra nenhuma pode formar-se sem a presença delas. As
demais letras ajudam; por si mesmas nada valem. Essas ajudantes são as
CONSOANTES e, como a palavra está dizendo, só soam com uma Vogai adiante ou
atrás. Pegue as dezoito Consoantes do alfabeto e procure formar com elas uma
palavra. Experimente, Pedrinho.
Pedrinho experimentou de todos os
jeitos, sem nada conseguir.
—
Misture agora as Consoantes com uma Vogai, com o A, por exemplo, e veja
quantas palavras pode formar.
Pedrinho misturou o A com as dezoito
Consoantes e imediatamente viu que era possível formar um grande número de
palavras.
Nisto dobraram uma curva do caminho e
avistaram ao longe o casario de uma cidade. Na mesma direção, mais para além,
viam-se outras cidades do mesmo tipo.
—
Que tantas cidades são aquelas, Quindim? — perguntou Emília.
Todos olharam para a boneca, franzindo
a testa. Quindim? Não havia ali ninguém com semelhante nome.
—
Quindim — explicou Emília — é o nome que resolvi botar no rinoceronte.
—
Mas que relação há entre o nome Quindim, tão mimoso, e um paquiderme
cascudo destes? — perguntou o menino, ainda surpreso.
—
A mesma que há entre a sua pessoa, Pedrinho, e a palavra Pedro — isto é,
nenhuma. Nome é nome; não precisa ter relação com o "nomado". Eu sou
Emília, como podia ser Teodora, Inácia, Hilda ou Cunegundes. Quindim!... Como
sempre fui a botadeira de nomes lá do sítio, resolvo batizar o rinoceronte
assim — e pronto! Vamos, Quindim, explique-nos que cidades são aquelas.
O rinoceronte olhou, olhou e disse:
— São as cidades do País da Gramática.
A que está mais perto chama-se Portugália, e é onde moram as palavras da língua
portuguesa. Aquela bem lá adiante é Anglópolis, a cidade das palavras inglesas.
—
Que grande que é! — exclamou Narizinho.
—
Anglópolis é a maior de todas — disse Quindim. — Moram lá mais de
quinhentas mil palavras.
— E Portugália, que população de palavras tem?
—
Menos de metade — aí umas duzentas e tantas mil, contando tudo.
—
E aquela, à esquerda?
—
Galópolis, a cidade das palavras francesas. A outra é Castelópolis, a
cidade das palavras espanholas. A outra é Italópolis, onde todas as palavras
são italianas.
—
E aquela, bem, bem, bem lá no fundo, toda escangalhada, com jeito de
cemitério?
— São os escombros duma cidade que já foi muito
importante — a cidade das palavras latinas; mas o mundo foi mudando e as
palavras latinas emigraram dessa cidade velha para outras cidades novas que
foram surgindo. Hoje, a cidade das palavras latinas está completamente morta.
Não passa dum montão de velharias. Perto dela ficam as ruínas de outra cidade
célebre do tempo antigo — a cidade das velhas palavras gregas. Também não passa
agora dum montão de cacos veneráveis.
Puseram-se a caminho; à medida que se
aproximavam da primeira cidade viram que os sons já não zumbiam soltos no ar,
como antes, mas sim ligados entre si.
—
Que mudança foi essa? — perguntou a menina.
—
Os sons estão começando a juntar-se em SÍLABAS, depois as Sílabas descem
e vão ocupar um bairro da cidade.
—
E que quer dizer Sílaba? — perguntou a boneca.
—
Quer dizer um grupinho de sons, um grupinho ajeitado; um grupinho de
amigos que gostam de andar sempre juntos; o G, o R e o A, por exemplo, gostam
de formar a Sílaba Gra, que entra em muitas palavras.
—
Graça, Gravata, Gramática... — exemplificou Pedrinho.
—
Isso mesmo aprovou Quindim. — Também o M e o U gostam de formar a Sílaba
Mu, que entra em muitas palavras.
—
Muro, Mudo, Mudança. . . — sugeriu a menina.
—
Isso mesmo — repetiu Quindim. — E reparem que em cada palavra há uma
Sílaba mais emproada e importante que as outras pelo fato de ser a depositária
do ACENTO TÔNICO. Essa Sílaba chama-se a TÔNICA.
—
O mesmo nome da mãe de Pedrinho!... — observou Emília arregalando os
olhos.
—
Não, boba. Mamãe chama-se Tônica e o rinoceronte está falando em Sílaba
Tônica. É muito diferente.
—
Perfeitamente — confirmou Quindim. — No nome de Dona Tônica a Sílaba
Tônica é Ni; e na palavra que eu disse a Sílaba Tônica é o To. E na palavra
Pedrinho, qual é a Tônica?
—
Dri — responderam todos a um tempo.
—
Isso mesmo. Mas os senhores gramáticos são uns sujeitos amigos de
nomenclaturas rebarbativas, dessas que deixam as crianças velhas antes do
tempo. Por isso dividem as palavras em OXÍTONAS, PAROXÍTONAS e PROPAROXÍTONAS,
conforme trazem o Acento Tônico na última Sílaba, na penúltima ou na antepenúltima.
—
Nossa Senhora! Que "luxo asiático"! — exclamou Emília. —
Bastava dizer que o tal acento cai na última, na penúltima ou na antepenúltima.
Dava na mesma e não enchia a cabeça da gente de tantos nomes feios.
Proparoxítona! Só mesmo dando com um gato morto em cima até o rinoceronte miar...
—
E há mais ainda — disse Quindim. — As pobres palavras que têm a desgraça
de ter o acento na antepenúltima sílaba, quando não são xingadas de Pro-pa-ro-xí-to-nas,
são xingadas de ESDRÚXULAS. As palavras Áspero, Espírito, Rícino, Varíola, etc,
são Esdrúxulas.
— Es-drú-xu-las! — repetiu Emília. — Eu
pensei que Esdrúxulas quisesse dizer esquisito.
—
E pensou certo — confirmou o rinoceronte. — Como na língua portuguesa as
palavras com acento na antepenúltima não são muitas, elas formam uma
esquisitice, e por isso são chamadas de Esdrúxulas.
E assim conversando, o bandinho chegou
aos subúrbios da cidade habitada pelas palavras portuguesas e brasileiras.
OBRA
INFANTO-JUVENIL DE MONTEIRO LOBATO. Edição do Círculo do Livro. Emília no País
da Gramática. As
figuras de sintaxe. https://www.fortaleza.ce.gov.br.
Entendendo o conto:
01
– Por que Pedrinho inicialmente se recusa a ter aulas de Gramática com Dona
Benta, e o que o faz ceder?
Pedrinho rezinga,
alegando que as férias são apenas para brincadeiras e que a Gramática é uma
"caceteação" que ele já tem que aturar na escola. Ele cede quando
Dona Benta o convence a estudar apenas meia hora por dia, garantindo que as 23
horas e meia restantes seriam para os brinquedos.
02
– Qual é a "grande ideia na cabeça" de Emília que dá origem à
aventura, e quem ela convida para participar?
A grande ideia de Emília é que, em vez de apenas ouvir falar
de Gramática, eles deveriam "ir passear no País da Gramática". Ela
convida Pedrinho, Narizinho, e o Visconde de Sabugosa para a aventura.
03
– Quem Emília informa ser o guia da viagem, e qual o novo nome que ela batiza
esse guia e por quê?
O guia da viagem
é o rinoceronte, que Emília batiza com o nome de Quindim. Ela justifica o nome
dizendo que é a mesma relação entre a pessoa de Pedrinho e a palavra Pedro:
"Nome é nome; não precisa ter relação com o 'nomado'."
04
– Qual é a primeira manifestação sonora que os viajantes percebem ao entrar em
terras do País da Gramática, e o que Quindim explica serem esses sons?
Eles percebem um
zumbido estranho no ar, como se fossem "milhões de vespas
invisíveis". Quindim explica que estes são os SONS ORAIS, ou seja, sons
produzidos pela boca (como A, E, I, O, U), que voam soltos no espaço e que,
quando escritos, são representados por letras.
05
– Qual a diferença essencial entre Vogais e Consoantes no País da Gramática,
conforme explica Quindim?
As Vogais (A, E,
I, O, U) são as "cinco madamas emproadas e orgulhosíssimas" que
governam todas as outras letras, pois palavra nenhuma pode formar-se sem a
presença delas. As Consoantes são apenas "ajudantes" que, por si
mesmas, nada valem e "só soam com uma Vogal adiante ou atrás."
06
– Quais são duas das cidades vizinhas de Portugália (cidade das palavras
portuguesas) que eles avistam, e qual a que se destaca por ser a maior?
Eles avistam
Anglópolis (palavras inglesas), Galópolis (palavras francesas), Castelópolis
(palavras espanholas) e Italópolis (palavras italianas). A cidade de Anglópolis
é a maior de todas, com mais de quinhentas mil palavras.
07
– Qual a crítica de Emília aos nomes que os gramáticos dão às classificações de
palavras quanto à Sílaba Tônica (Oxítonas, Paroxítonas e Proparoxítonas)?
Emília critica os
nomes por serem "nomenclaturas rebarbativas" e um "luxo
asiático" que deixa as crianças velhas antes do tempo. Ela afirma que
bastava dizer que o acento cai na última, penúltima ou antepenúltima sílaba,
sem precisar usar nomes feios como "Proparoxítona" e
"Esdrúxulas."