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domingo, 31 de dezembro de 2023

CONTO: A VIAGEM PELO JARDIM - (FRAGMENTO) - MONTEIRO LOBATO - COM GABARITO

 Conto: A VIAGEM PELO JARDIM – Fragmento

            Monteiro Lobato

        O mede-palmos vinha descendo pela haste dum ramo de hortênsia. Era dos peludinhos. Emília, ansiosa por se ver no chão, teve uma ideia. 

        -- E se eu montasse nele e ficasse bem agarrada aos pelos? Os mede-palmos não mordem.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiA4xKEhgaknNRo6yw65iHKDVQIlHM0PnHIEY3yxn9RENQ52WnxKJOyE44itpy5Lv-auNqCPKJH6thV1OCSRqh5ZyjyZq1WZZkkNpaeJGyLITKUe8gDUqXQqzlr-8jMRkRybY4SkVGuniDz_BRqEqRh86Ka_U3Cb8KSQfww2HiaoOSA5TF5TUBd-NVUGr8/s320/a-lagartamedepalmo.jpg

        Emília aproximou-se e zás! Cavalgou-o. O mede-palmos deteve-se estranhando aquilo; ergueu a cabecinha e ficou uns instantes a virá-la dum lado para o outro. Por fim começou a descer.

        -- Primeira descoberta! – gritou Emília. – A escada-rolante viva! [ ...]

        Ao chegar ao chão, debaixo da moita de hortênsia, estranhou o escuro. Como se visse de cima da flor, onde a luz era intensa, custou-lhe acostumar os olhinhos a tanta sombra.

        Que frescura ali! Até demais. É úmido. Se ficasse muito tempo naquela sombra, apanharia um resfriado. A primeira coisa que a impressionou foi a aspereza do chão. Era irregularíssimo! 

        -- Como há pedras no mundo! – exclamou, tropicando e machucando os delicados pezinhos. – Isso que nós chamávamos terra ou chão, não é terra nada, é pedra, pedra e mais pedra. A crosta do planeta é uma pedreira sem fim. Hum! Por isso é que os bichinhos do meu tamanho usam tantos pés. Cada inseto tem seis. [...] Agora compreendo o motivo – é que só com dois pés não poderiam caminhar pelas infinitas pedreiras destes chãos. [...]

MONTEIRO LOBATO – A chave do tamanho. São Paulo: Globo, 2016. (Fragmento).

Fonte: Coleção Desafio Língua Portuguesa – 5° ano – Anos Iniciais do Ensino Fundamental – Roberta Vaiano – 1ª edição – São Paulo, 2021 – Moderna – p. MP100.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Mede-palmo: espécie de lagarta. 

·        Tropicando: tropeçando.

02 – O que Emília descobre ao cavalgar o mede-palmos?

      Emília descobre uma espécie de "escada-rolante viva", usando o mede-palmos para descer até o chão.

03 – Como Emília descreve a sensação ao chegar ao chão?

      Ao chegar ao chão, Emília estranha a escuridão e a umidade. Ela menciona que é como se estivesse acostumando seus olhos à sombra depois de estar em um lugar muito iluminado.

04 – Qual foi a primeira impressão de Emília sobre o chão?

      Emília ficou surpresa com a aspereza do chão, percebendo que não era terra como ela conhecia, mas sim pedras irregulares. Ela tropeça e machuca os pés, constatando que a crosta do planeta é como uma pedreira sem fim.

05 – O que Emília compreende sobre os insetos ao observar o chão?

      Emília compreende o motivo de os insetos terem vários pés, percebendo que eles usam muitos pés para caminhar pelas infinitas pedreiras do chão. Ela entende que, com apenas dois pés, seria impossível para seres do tamanho dela caminhar nesse ambiente.

06 – Por que Emília menciona que os insetos têm vários pés?

      Emília menciona isso ao notar a quantidade de pedras no chão e compreender que a superfície é tão irregular que seria difícil caminhar com apenas dois pés. Ela conclui que os insetos têm muitos pés para se locomoverem nesse tipo de terreno.

 

 

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

TEXTO: NO LABIRINTO DE CRETA - MONTEIRO LOBATO - COM GABARITO

 TEXTO: NO LABIRINTO DE CRETA

               Monteiro Lobato

         Foram despertar na Ilha de Creta, onde logo descobriram o labirinto. Era um palácio imenso, com mil corredores dispostos de tal maneira que quem entrasse, nunca mais conseguiria sair – e acabaria devorado pelo monstro. O Minotauro só comia carne humana.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg1Fss-6vCuBqkwOF3hJFJmvfFSGsDDpyX3gCADP7qfhs_EhxWzXdnzgTjoAExM-Af-pHP2bOD2jPYipDFxP5Zd3HwEJbaRbfCDQ2_H9aspRC-CEoTUy7vUjY_36TSMR32JhFQi54sE_rht3wzrXtbuYYrrXnFzy74Vm81zMglkA7SgvAXFpY_zxQjC7Zo/w181-h126/LABIRINTO.jpg


 Diante do labirinto, os três “pica-paus” pararam para refletir.

         — Quem entra, não sai mais e acaba no papo do monstro – disse Pedrinho - Mas nós sabemos o jeito de entrar e sair: é irmos desenrolando um fio de linha. Ah, se eu tivesse trazido um carretel...

         — Pois eu trouxe três! – gritou Emília triunfalmente - E dos grandes, número 50. Desça a mala, Visconde, abra-a.

        A mala foi descida e aberta. Emília tirou os carretéis e deu um a Pedrinho, outro ao Visconde, ficando com o terceiro.

         Entraram no Labirinto e foram desenrolando o primeiro carretel; quando a linha acabou, desenrolaram o segundo; e quando a linha do segundo acabou, começaram a desenrolar o terceiro. Eram corredores e mais corredores, construídos da maneira mais atrapalhada possível de propósito para que quem entrasse, não pudesse sair. Antes do terceiro carretel chegar ao fim, Emília “sentiu” a aproximação de qualquer coisa.

          Percebo uma catinga no ar – disse ela baixinho, farejando – O monstro deve ter seus aposentos por aqui...

         Uns passos mais e pronto: lá estava o Minotauro, numa espécie de trono, a mastigar lentamente qualquer coisa que havia numa grande cesta.

         — Mas como está gordo! – cochichou Emília - Muito mais que aquele célebre cevado que Dona Benta comprou do Elias Turco. Parece que nem pode erguer-se do trono.

         De fato, o monstro estava gordíssimo, quase obeso, com três papadas caídas; o seu corpanzil afundava dentro do tronco. Que teria acontecido?

         Mesmo assim, era perigoso aproximar-se, de modo que novamente, Emília recorreu ao Visconde.  

       — Vá lá, meu bem, chegue-se ao “gordo” e com muito cuidado peça informações sobre a tia Nastácia.

      — E se ele me devorar?

      — Não há perigo. Nem a Esfinge o devorou, quanto mais o Minotauro. Só as vacas devoram os sabugos.

      — Mas ele é um touro, e os touros também comem sabugos.

     — Menos este, que é antropófago. Vá sem medo.

    O Visconde arriou a maletinha e foi. Instantes depois, voltara.

    — E então? - perguntou Pedrinho.

    — Não fala, não responde. Perguntei por tia Nastácia e ele só me olhou com um olho parado, sempre a mastigar umas coisas que tira daquela cesta – “isto” e mostrou o que havia na cesta.

     Emília arrancou-lhe o “isto” da mão. Era um bolinho. Era um bolinho de tia Nastácia. Que alegria! Aquele bolinho era a prova mais absoluta que tia Nastácia estava lá – e viva! Pedrinho comeu o bolinho inteiro e lamentou que o Visconde só tivesse trazido um.

      — Vamos procurá-la com o resto de linha que ainda temos – disse Emília examinando o carretel - Há de dar.

 [...]

LOBATO, Monteiro. O Minotauro. Editora Brasiliense: São Paulo, 1954. p. 206-209.

O texto que você leu foi escrito por Monteiro Lobato, que criou obras consideradas clássicas da literatura infanto-juvenil brasileira. As aventuras do Sítio do Picapau Amarelo foram adaptadas para várias mídias e formatos, como séries para a televisão, histórias em quadrinhos, jogos etc. Conhecer essa obra de forma crítica é muito importante para compreender o universo fantástico e rico criado pelo autor.

 Após a leitura do texto, responda às questões propostas.

01.  O que o uso de aspas em “pica-paus” indica?

O uso das aspas indica uma referência a Pedrinho, Emília e Visconde (eles são os “pica-paus”, personagens do Sítio criado por Lobato).

02.  No texto, duas palavras estão em negrito: antropófago e cevado. Pesquise o significado delas. Sugere-se orientar os estudantes a pesquisarem o significado das palavras no dicionário (é importante tê-los na sala de aula) físico ou digital.

Antropófago: aquele que se alimenta de carne humana. 9 Cevado: nutrido, saciado.

03.  O que o comportamento da personagem Emília nos permite inferir sobre ela? E a personagem Visconde? Como o texto apresenta a relação dos dois?

Explicar aos estudantes sobre a inferência de informações no texto, fazendo a correlação entre as personagens apresentadas. Emília é precavida, pois leva os carretéis para marcar o caminho a fim de não se perderem na volta do labirinto. O Visconde demonstra submissão, pois segue todas as ordens de Emília.

04.  Como o uso dos carretéis iria ajudar as personagens a saírem do labirinto?

O uso dos carretéis ajudaria a encontrar o caminho de volta do labirinto, fazendo as marcações pelo caminho por onde passavam.

05.  Minotauro é um ser considerado antropófago. Isso se confirma no texto lido?

Sim, porque o Minotauro se alimentava de carne humana.

domingo, 26 de novembro de 2023

CONTO: O MATA-PAU - MONTEIRO LOBATO - COM GABARITO

 Conto: O mata-pau

            Monteiro Lobato

        Píncaros arriba e Perambeiras abaixo, a serra do Palmital escurece de mataria virgem, sombria e úmida, tramada de taquaruçus, afestoada de taquaris, com grandes árvores velhas de cujos galhos pendem cipós e escorrem barbas-de-pau e musgos.

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj9qkNdZmIrTyCXmKrAmWK99j2NTwXZKgyaTSwd7L0tEphYTxbRf3sdParPKgWLsdhp9IPDQHNt-Gyt1MtnOyjnhJ2jp2bWltpdVfgKMGy7coAoRDiUJ7f2G6VChuIN7OW6roeVvWTAnqrlX5Gv5_8clx2CdYxS-qOSrqpcGmlU-FwMwv2NcMthJNg9yY0/s320/SERRA.jpg

 Quem sobe da várzea, depois de transpostas as capoeiras da raiz, ao emboscar-se de chofre no frio túnel vegetal que é ali a estrada inevitavelmente espirra. E se é homem das cidades, pouco afeito aos aspectos bravios do sertão, depois do espirro abre a boca, pasmado da paulama. Extasia-se ante a graciosa copa dos samambaiaçus, ante as borboletas azuis, ante as orquídeas, os líquens, tudo.

        Sofria o animal sem o sentir, mas não para. Vai parar adiante, na Volta Fria, onde um broto d’água gelada, a fluir entremeio às pedras, o tenta a sorver um gole aparado em folha de caeté. Bebida a água, e dito que nas cidades não há daquilo, leva-lhe a vista o soberbo mata-pau que domina o grotão.

        — Que raio de árvore é esta? — pergunta ele ao capataz, pasmado mais uma vez.

        E tem razão de parar, admirar e perguntar, porque é duvidoso existir naquelas sertanias exemplar mais truculento da árvore assassina.

        Eu, de mim, confesso, fiz as três coisas. O camarada respondeu à terceira:

        — Não vê que é um mata-pau?

        — E que vem a ser o mata-pau?

        — Não vê que é uma árvore que mata outra? Começa, quer ver como? — disse ele escabichando as frondes com o olhar agudo em procura dum exemplar típico. — Está ali um!

        — Onde? — perguntei, tonto.

        — Aquele fiapinho de planta, ali no gancho daquele cedro — continuou o cicerone, apontando com dedo e beiço uma parasita mesquinha grudada na forquilha de um galho, com dois filamentos escorridos para o solo. — Começa assinzinho, meia dúzia de folhas piquiras; bota pra baixo esse fio de barbante na tenção de pegar a terra. E vai indo, sempre naquilo, nem pra mais nem pra menos, até que o fio alcança o chão. E vai então o fio vira raiz e pega a beber a sustância da terra. A parasita cria fôlego e cresce que nem imbaúba. O barbantinho engrossa todo dia, passa a cordel, passa a corda, passa a pau de caibro e acaba virando tronco de árvore e matando a mãe — como este guampudo aqui — concluiu, dando com o cabo do relho no meu mata-pau.

        — Com efeito! — exclamei admirado. — E a árvore deixa?

        — Que é que há de fazer? Não desconfia de nada, a boba. Quando vê no seu galho uma isca de quatro folhinhas, imagina que é parasita e não se precata. O fio, pensa que é cipó. Só quando o malvado ganha alento e garra de engrossar, é que a árvore sente a dor dos apertos na casca. Mas é tarde. O poderoso daí por diante é o mata-pau. A árvore morre e deixa dentro dele a lenha podre.

        Era aquilo mesmo! O lenho gordo e viçoso da planta facinorosa envolvia um tronco morto, a desfazer-se em carcoma. Viam-se por ele arriba, intervalados, os terríveis cíngulos estranguladores; inúteis agora, desempenhada já a missão constritora, jaziam frouxos e atrofiados.

        Imaginação envenenada pela literatura, pensei logo nas serpentes de Laocoonte, na víbora aquecida no seio do homem da fábula, nas filhas do rei Lear, em todas as figuras clássicas da ingratidão. Pensei e calei, tanto o meu companheiro era criatura simples, pura dos vícios mentais que os livros inoculam. Encavalgamos de novo e partimos.

        Não longe dali a serra complana-se em rechã e a mata míngua em capoeira rala, no meio da qual, em terreiro descoivarado, entremostra-se uma tapera. Esverdece o melão-de-são-caetano por sobre o derruído tapume do quintalejo, onde laranjeiras com erva-de-passarinho e uma ou outra planta doméstica marasmam agoniadas pelo mato sufocante.

        — Antigo sítio de Elesbão do Queixo d’Anta — explicou o camarada.

        — Largado? — perguntei.

        — Há que anos! Desde que mataram o homem ficou assim.

        Bacorejou-me história como as quero.

        — Mataram-no? Conte lá isso como foi.

        O camarada contou a história que para aqui traslado com a possível fidelidade. O melhor dela evaporou-se, a frescura, o correntio, a ingenuidade de um caso narrado por quem nunca aprendeu a colocação dos pronomes e por isso mesmo narra melhor que quantos por aí sorvem literaturas inteiras, e gramáticas, na ânsia de adquirir o estilo. Grandes folhetinistas andam por este mundo de Deus perdidos na gente do campo, ingramaticalíssima, porém pitoresca no dizer como ninguém.

        Elesbão morava com o pai no Queixo d’Anta, onde nascera. Quando a puberdade lhe engrossou a voz, disse ao velho:

        — Meu pai, quero casar.

        O pai olhou para o filho pensativamente; em seguida falou:

        — Passarinho cria pena é para voar. Se você já é homem, case. O rapaz pediu-lhe que pusesse em prova a sua virilidade.

        O pai refletiu e disse:

        — Derrube o jataí da grotinha, sem tomar fôlego.

        Elesbão afiou o machado, arregaçou as mangas e feriu o pau. Em toada de compasso, bateu firme a manhã inteira. À hora do almoço, o pan pan continuava sem esmorecimento. Só quando o sol aprumou no pino é que a madeira gemeu o primeiro estalido.

        — Está no chão — disse o pai, que se acercara do filho exausto mas vitorioso. — Pode casar. É homem.

        Elesbão trazia de olho uma menina das redondezas, filha do balaieiro João Poca, Rosinha, bilro sapiroquento de treze anos, feiosa como um rastolho.

        — Meu pai, eu quero Rosinha Poca.

        — Case. Mas ouça o que digo. Os Pocas não são boa gente. Os machos ainda servem — João é um coitado, Pedro não é má bisca; mas as saias nunca valeram nada. A mãe de Rosa é falada. Laranjeira azeda não dá laranja-lima. Você pense.

        — Meu pai, o futuro é de Deus. Eu quero casar com Rosinha.

        — Pois case.

        Deliberado com tal firmeza, Elesbão tratou de sitiar-se. Arrendou a rechã da tapera, roçou, derrubou, queimou, plantou, armou a choça. Barreadas que foram as paredes, pediu a menina e casou-se.

        Rosa só o era no nome. No corpo, simples botão inverniço, desses que melam aos frios extemporâneos de maio. Olhos cozidos e nariz arrebitado, tal qual a mãe. Feia, mas da feiura que o tempo às vezes conserta. Talvez se fiasse nisso o noivo.

        Elesbão, rijo no trabalho, prosperou. Aos três anos de labuta era já sitiante de monjolo, escaroçador e cevadeira, com dois agregados no eito.

        Prole, até esse tempo nenhuma; e isso entristecia a casa. Mas resignavam - se já ao vazio da esterilidade quando certa noite soou choro de criança no terreiro.

        Não se conta o terror de ambos — que aquilo era na certa alma penada de criança morta pagã. Como, entretanto, a pobre alma berrasse com pulmões muito da terra, e cada vez mais, Elesbão duvidou do bruxedo e, acendendo uma braçada de palha, lançou-a fora pela janela. O terreiro clareou até longe e eles viram, a pouca distância, uma criaturinha de gatas a berrar com desespero de quem é absolutamente deste mundo.

        — E não é que é uma criança de verdade? — exclamou ele, saído de um assombro e entrado noutro. — E agora?

        — Pois é recolhê-la — disse Rosa, cujo instinto de mulher só via no caso um pobre enjeitadinho ao léu, a reclamar conchego.

        Recolheu-o Elesbão, depondo o chorincas no colo da esposa. Rosa o estreitou ao seio, acalmando-o, ao mesmo tempo que “assentava” o marido.

        — Se não aparecer a mãe, cria-se o aparecido. Faz tanta falta um chorinho por aqui...

        No dia seguinte bateram as vizinhanças em indagações, sem nada colherem explicativo do estranho caso. Resolveram, pois, adotar o pequeno.

        O pai de Elesbão, consultado, ponderou:

        — Não presta criar filho alheio.

        Mas como o consulente armasse cara de vacilação, remendou logo a sua filosofia:

        — Também não é caridade enjeitar um enjeitado — e ficou-se nisso.

        Rosa conservou o pequeno e deu com ele criado à força de leite de cabra e caldinhos.

        À medida, porém, que medrava, o menino punha a nu a má índole congenial. Não prometia boa coisa, não.

        — Eu avisei — recordou o velho, como Elesbão se queixasse um dia da ruim casta do recolhido.

        — Meu pai disse também que não era caridade enjeitar um enjeitado...

        — É verdade, é verdade... — confirmou o filósofo de pé no chão, e calou-se.

        Manoel Aparecido era o nome do rapazinho. Como tivesse olhos gateados e cabelos louros de milho, denunciadores de origem estrangeira, puseram-lhe os vizinhos a alcunha de Ruço.

        Ganhou fama de madraço, e o era perfeito, inimigo de enxada e foice, só atento a negociatas, barganhas, espertezas. Amado por Rosa como filho, livrava-o ela da sanha do esposo escondendo suas malandragens, porque Elesbão vivia ameaçando endireitá-lo a rabo de tatu.

        Não endireitou coisa nenhuma. Com dezoito anos era Ruço a peste do bairro, atarantador dos pacíficos e traiçoeiro para com os escoradores.

        — É ruim inteirado! — dizia o povo.

        Por esse tempo navegava Rosa na casa dos trinta anos. Como a não estragaram filhos, nem se estragou ela em grosseiros trabalhos de roça, valia muito mais do que em menina. O tempo curou-lhe a sapiroca, e deu-lhe carnes a boa vida. De tal forma consertou que todo mundo gabava o arranjo.

        — Ninguém perca a esperança. Olhem a mulher de Elesbão, aquela Poquinha sapiroquenta, como está chibante!...

        A sua boniteza residia na saúde dos olhos e na gordura. Na roça, gordura é sinônimo de beleza — gordura e “olhos azuis que nem uma conta”...

        Além disso Rosinha cuidava de si. Virou faceira. Sempre limpa, vestida de boas chitas da sua cor, cabelos bem alisados para trás, torcidos em pericote lustroso à força de pomada de lima, não havia na serra pimpona assim nem moça de fazenda com pai coronel.

        Suas relações com Ruço, maternais até ali, principiaram a mudar de rumo, como quer que espigasse em homem o menino. Por fim degeneraram em namoro — medroso no começo, descarado ao cabo. A má casta das Pocas, desmentida no decurso da primavera, reafirmava-se em plena sazão calmosa. O verão das Pocas! Que forno...

        Tudo transpira. Transpirou nas redondezas a feia maromba daqueles amores. Boas línguas, e más, boquejavam o quase incesto.

        Quem de nada nunca suspeitou foi o honradíssimo Elesbão; e como na porta dos seus ouvidos paravam os rumores do mundo, a vida das três criaturas corria-lhes na toada mansa a que se dá o nome de felicidade.

        Foi quando caiu de cama o pai de Elesbão, doente de velhice.

        Mandou chamar o filho e falou-lhe com voz de quem está com o pé na cova:

        — Meu filho, abra os olhos com Poca...

        — Por que fala assim, meu pai?

        O velho ouvira o zum-zum da má vida; vacilava, entretanto, em abrir os olhos ao empulhado. Correu a mão trêmula pela cabeça do filho, afagou-a e morreu sem mais palavra. Sempre fora amigo de reticências, o bom velho.

        Elesbão regressou ao sítio com aquele aviso a verrumar-lhe os miolos.

        Passou dias de cara amarrada, acastelando hipóteses.

        Vendo o marido assim demudado, casmurro, de prazenteiro que era, Rosa caiu em guarda. Chamou de banda Ruço e disse-lhe:

        — Lesbão, desde que morreu o pai, anda amode que ervado. Mas não é sentimento, não. Ele desconfia... Às vezes pega de olhar para mim dum jeito esquisito, que até me gela o coração...

        Manoel segurou o queixo e refletiu. Continuar naquela vida era arriscado. Ir-se, pior; nada possuía de seu e trabalhar para outrem não era com ele. Se Elesbão morresse...

        Não se sabe se houve concerto entre os amásios. Mas Elesbão morreu. E como!

        Certa vez, de volta da vila próxima ali pelo escurecer, caiu de borco na Volta Fria, barbaramente foiçado na nuca. Descobriram-lhe o cadáver pela manhã, bem rente ao mata-pau.

        A justiça, coitadinha, apalpou daqui e dali, numa cegueira... Desconfiou de Ruço — mas cadê provas? Era Ruço mais fino que o delegado, o promotor, o juiz — mais até que o vigário da vila, um padre gozador da fama de enxergar através das paredes.

        A viúva chorou como mamoeiro lanhado — fosse de sentimento, de remorso ou para iludir aos outros. Talvez sem cálculo nenhum pelos três motivos.

        Manoel permaneceu na casa. Viviam como filho e mãe, dizia ela; como marido e mulher, resmungava o povo.

        O sítio, porém, entrou logo a desmedrar. Comiam do plantado, sem lembrança de meter na terra novas sementes. O moço ambicionava vender as benfeitorias para mergulhar no Oeste, e como Rosa relutasse deu de maltratá-la.

        Estes amores serôdios são como a vide: mais judiam deles, mais reviçam. Às brutalidades de Ruço respondia a viúva com redobros de carinho. Seu peito maduro, onde o estio no fim anunciava o inverno próximo, chamejava em fogo bravo, desses que roncam nas retranças dos taquaruçuzais. E isso vingava Elesbão, esse amor sem jeito, sem conta, sem medida, duas vezes criminoso sobre sacrílego e, o que era pior, aborrecido pelo facínora, já farto.

        — Coroca! Sapicuá de defunto! Cangalha velha!

        Não havia insulto com o peão do veneno plantado na nota da velhice que lhe não desfechasse, o monstro.

        Rosa depereceu a galope. Adeus, gordura! Boniteza outoniça, adeus! Saias a ruflar tesas de goma, pericote luzidio recendente a lima, quando mais?

        Os vizinhos comentavam:

        — Ruço dá cabo dela, como deu cabo do marido — e é bem feito. Voz do povo...

        Um dia Ruço ameaçou de largá-la, se não vendesse tudo, já e já; e a pobre mulher deu ao bandido essa derradeira prova de amor. Vendeu por uma bagatela o que restava acumulado pelo esforço do defunto — a moenda, o monjolo, a casa, o canavial em soca. E combinaram para o outro dia o ambicionado mergulho na terra roxa.

        Nessa noite Rosa despertou sufocada por violenta fumaceira. A casa ardia.

        Saltou como louca da enxerga e berrou por Ruço.

        Ninguém lhe respondeu.

        Atirou-se contra a porta: estava fechada por fora.

        O instinto fê-la agarrar o machado e romper a furiosos golpes as tábuas rijas. Escapa-se da fornalha, rola para o terreiro com as vestes em fogo, precipita-se no tanque e, livre das chamas, cai inerte para um lado — justamente onde vinte anos atrás vira o enjeitadinho chorando ao relento...

        Quando de manhã passantes a recolheram, estava de olhos pasmados, muda. Levaram-na em maca para o hospital, onde sarou das queimaduras, mas nunca mais do juízo. Foi feliz, Rosa. Enlouqueceu no momento preciso em que seu viver ia tornar-se puro inferno.

        — E Ruço?

        — Abalou com o dinheiro...

        Aí parava a história de Elesbão, como a sabia o meu camarada. Um crime vulgar como os há na roça às dezenas, se a lembrança do mata-pau o não colorisse com tintas de símbolo.

        — Não é só no mato que há mata-paus!... — murmurei eu filosoficamente, à guisa de comentário.

        O capataz entreparou um momento, como quem não entende. Depois abriu na cara o ar de quem entendeu e gostou.

        — Não é por gabar, mas vosmecê disse aí uma palavra que merece escrita. É tal e qual...

        E calou-se, de olho parado, pensativo.

Monteiro Lobato.

Entendendo o conto:

01 – Qual é o cenário principal descrito no início do conto?

      O cenário inicial é a serra do Palmital, uma região coberta por matas densas e virgens.

02 – Qual é o "mata-pau" mencionado no conto?

      O "mata-pau" é uma árvore parasita que cresce sobre outra árvore, eventualmente matando-a.

03 – Quais são os principais personagens do conto?

      Elesbão, Rosa, Ruço, o pai de Elesbão, e o narrador são os principais personagens.

04 – Quais são os eventos cruciais que levam à tragédia na história?

      O casamento de Elesbão com Rosinha, a chegada de Ruço, os problemas familiares e o incêndio criminoso que leva à loucura de Rosa.

05 – Qual é o significado simbólico do "mata-pau" na história?

      O "mata-pau" pode ser interpretado como um símbolo da destruição e do mal que crescem dentro das pessoas, assim como a árvore parasita cresce sobre a árvore hospedeira.

06 – Como é a evolução dos relacionamentos entre os personagens ao longo do conto?

      Elesbão e Rosa começam com um relacionamento promissor, mas a chegada de Ruço e as tensões familiares deterioram a dinâmica familiar, levando a um desfecho trágico.

07 – Quais são os temas principais abordados no conto?

      O conto explora temas como relações familiares disfuncionais, influência do ambiente na formação do caráter, e a presença do mal latente na natureza e nas pessoas.

08 – Como o conto aborda a questão da moralidade e do caráter dos personagens?

      Mostra como a criação, as decisões e as influências externas moldam o caráter dos personagens, levando a atos moralmente questionáveis.

09 – Qual é o papel do ambiente natural na história?

      O ambiente natural serve como pano de fundo para as ações dos personagens e é usado como metáfora para refletir as dinâmicas e os conflitos internos.

10 – Como o desfecho da história impacta na mensagem geral do conto?

      O desfecho trágico reforça a ideia de que o mal, muitas vezes, está presente nas relações humanas e pode levar a consequências devastadoras, mesmo em um ambiente aparentemente tranquilo.

 

 

 

CONTO: A COLCHA DE RETALHOS - MONTEIRO LOBATO - COM GABARITO

 Conto: A colcha de retalhos

            Monteiro Lobato

        — Upa!

        Cavalgo e parto.

        Por estes dias de março a natureza acorda tarde.

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjygRnVZujSHX3sUi3LmEBPl3dPLcNGaYvsLFxMBEMpeHICqQJd-FfGS6I2sYX982PUAdNkkpogrCVB-q7XTfqvUP797C-vK-N9iFNwYULTivpFDxK3yj7_C_mW1UlJWoIUYtUkjjeDrv3z-nuw5I9TpKb8ZvFPL5yE_d50Ag2brb6WgYVaU4ynF74QVsU/s1600/COLCHA.jpg


  Passa as manhãs embrulhada num roupão de neblina e é com espreguiçamentos de mulher vadia que despe os véus da cerração para o banho de sol.

        A névoa esmaia o relevo da paisagem, desbota-lhe as cores. Tudo parece coado através dum cristal despolido.

        Vejo a orla de capim tufada como debrum pelo fio dos barrancos; vejo o roxo-terra da estrada esmaecer logo adiante; e nada mais vejo senão, a espaços, o vulto gotejante de alguns angiqueiros marginais.

        Agora, uma porteira.

        Ali, a encruzilhada do Labrego.

        Tomo à destra, em direitura ao sítio de José Alvorada. Este barba-rala mora-me a jeito de empreitar um roçado no capoeirão do Bilu, nata de terra que pelas bocas do caeté legítimo, da unha-de-vaca e da caquera está a pedir foice e covas de milho.

        Não é difícil a puxada: com cinquenta braças de carreador boto a roça no caminho.

        Três alqueires, só no bom. Talvez quatro. A noventa por um — nove vezes quatro, trinta e seis; trezentos e sessenta alqueires de oito mãos. Descontadas as bandeiras que o porco estraga e o que comem a paca e o rato…

        Será a filha de Alvorada?

        — Bom dia, menina! O pai está em casa?

        É a filha única. Pelo jeito não vai além de catorze anos. Que frescura! Lembra os pés de avenca viçados nas grotas noruegas.

        Mas arredia e ité como a fruta do gravatá. Olhem como se acanhou! De olhos baixos, finge arrumar a rodilha. Veio pegar água a este córrego e é milagre não se haver esgueirado por detrás daquela moita de taquaris, ao ver-me.

        — O pai está lá? — insisti.

        Respondeu um “está” enleado, sem erguer os olhos da rodilha.

        Como a vida no mato asselvaja estas veadinhas! Note-se que os Alvoradas não são caipiras. Quando comprou a situação dos Periquitos, o velho vinha da cidade; lembro-me até de que entrava em sua casa um jornal.

        Mas a vida lhes correu áspera na luta contra as terras ensapezadas e secas, que encurtam a renda por mais que dê de si o homem. Foram rareando as idas à cidade e ao cabo de todo se suprimiram. Depois que lhes nasceu a menina, rebento floral em anos outoniços, e que a geada queimou o café novo — uma tamina, três mil pés —, o velho, amuado, nunca mais espichou o nariz fora do sítio.

        Se o marido deu assim em urumbeva, a mulher, essa enraizou de peão para o resto da vida. Costumava dizer: mulher na roça vai à vila três vezes — uma a batizar, outra a casar, terceira a enterrar.
Com tais casmurrices na cabeça dos velhos, era natural que a pobrezinha da Pingo d’Água (tinha esse apelido Maria das Dores) se tolhesse na desenvoltura ao extremo de ganhar medo às gentes. Fora uma vez à vila com vinte dias, a batizar. E já lá ia nos catorze anos sem nunca mais ter-se arredado dali.

        Ler? Escrever? “Patacoadas, falta de serviço”, dizia a mãe. Que lhe valeu a ela ler e escrever que nem uma professora, se desde que casou nunca mais teve jeito de abrir um livro? Na roça, como na roça.

        Deixei a menina às voltas com a rodilha e embrenhei-me por um atalho conducente à morada.

        Que descalabro!…

        Da casa velha aluíra uma ala, e o restante, além da cumeeira selada, tinha o oitão fora do prumo.

        O velho pomar, roído de formiga, morrera de inanição; na ânsia de sobreviver, três ou quatro laranjeiras macilentas, furadas de broca e sopesando o polvo retrançado da erva-de-passarinho, ainda abrolhavam rebentos cheios de compridos acúleos. Fora disso, mamoeiros, a silvestre goiaba e araçás, promiscuamente com o mato invasor que só respeitava o terreirinho batido, fronteiro à casa. Tapera quase e, enluradas nela, o que é mais triste, almas humanas em tapera.

        Bati palmas.

        — Ó de casa!

        Apareceu a mulher.

        — Está seu Zé?

        — Inda agorinha saiu, mas não demora. Foi queimar um mel na maçaranduva do pasto. Apeie e entre.

        Amarrei o cavalo a um moirão de cerca e entrei.

         Acabadinha, a Sinh’Ana. Toda rugas na cara — e uma cor… Estranhei-lhe aquilo.

        — Doença! — gemeu. — Estou no fim. Estômago, fígado, uma dor aqui no peito que responde na cacunda. Casa velha, é o que é.

        — Metade é cisma — disse-lhe para consolo.

        — Eu é que sei! — retrucou-me suspirando.

        Entrementes, surgiu da cozinha uma velhota bem-apessoada, no cerne, rija e tesa, que saudou e:

        — Está espantado do jeito de Nhana? Esta gente de agora não presta para nada. Olhe, eu com setenta no lombo não me troco por ela. Criei minha neta e inda lavo, cozinho e coso. Admira-se? Coso, sim!…

        — Mecê é gabola porque nunca padeceu doença — nem dor de dente! Mas eu? Pobre de mim! Só admiro ainda estar fora da cova… Aí vem Zé.

        Chegava Alvorada. Ao ver-me abriu a cara.

        — Ora viva quem se lembra dos pobres! Não pego na sua mão porque estou assim… É só melado. Bonito, hein? Estava difícil, num oco muito alto e sem jeito. Mas sempre tirei. Não é jiti, não! É mel-de-pau.

        Depôs num mocho a cuia dos favos e se foi à janela, lavar as mãos à caneca d’água que a mulher despejava. Pôs os olhos no meu cavalo.

        — Hoje veio no picaço… Bom bicho! Eu sempre digo: animais aqui no redor, só este picaço e a ruana do Izé de Lima. O mais é eguada de moenda.

        Neste momento entrou a menina de pote à cabeça. Ao vê-la o pai apontou para a cuia de mel.

        — Está aí, filha, o doce da aposta. Perdi, paguei. Que aposta? Ah! ah! Brincadeira. A gente cá na roça, quando não tem serviço, com qualquer coisa se diverte. Vinha passando um bando de maritacas. Eu disse à toa: “São mais de dez!”. Pingo negou: “Não chega lá!”. Apostamos. Eram nove. Ela ganhou o doce. Doce da roça mel é. Esta songuinha só vendo; não é o que parece, não…

        A loquacidade daquele homem não desmedrara com o atraso da vida. Em se lhe dando corda, ressurgia nele o tagarela da cidade.
Expus-lhe o negócio. Alvorada enrugou a testa; refletiu um bocado, de queixo preso. Depois:

        — Eu hoje, franqueza, não valho mais nada. Desde que caí daquela amaldiçoada ponte do Labrego, fiquei assim como quebrado por dentro. Não escoro serviço, e para lidar com camaradas no eito não basta ter boca. Sem puxar a enxada de par com eles, a coisa não vai, não! Lembra-se da empreitada do ano retrasado? Pois saí perdendo. O tranca do João Mina me quebrou um machado e furtou uma foice. Com esses prejuízos, não livrei o jornal. Desde então fiz cruz em serviço alheio. Se ainda teimo neste sapezal amaldiçoado é por via da menina; senão, largava tudo e ia viver no mato, como bicho. É Pingo que inda me dá um pouco de coragem — concluiu com ternura.

        A velhinha sentara-se à luz da janela e, abrindo uma caixeta, pusera-se a coser, de óculos na ponta do nariz.

        Aproximei-me, admirativo.

        — Sim, senhora! Com setenta anos!

        Sorriu, lisonjeada.

        — É para ver. E isto aqui tem coisa. É uma colcha de retalhos que venho fazendo há catorze anos, desde que Pingo nasceu. Dos vestidinhos dela vou guardando cada retalho que sobeja e um dia os coso. Veja que galantaria de serviço…

        Estendeu-me ante os olhos um pano variegado, de quadrinhos maiores e menores, todos de chita, cada qual de um padrão.

        — Esta colcha é o meu presente de noivado. O último retalho há de ser do vestido de casamento, não é, Pingo?

        Pingo d’Água não respondeu. Metida na cozinha, percebi que nos espiava por uma fresta.

        Mais dois dedos de prosa com Alvorada, um cafezinho ralo — escolha com rapadura — e:

        — Está bem — rematei, levantando-me do mocho de três pernas.

        — Como não pode ser, paciência. Apesar disso acho que deve pensar um bocado. Olhe que este ano se estão pagando os roçados a 80 mil-réis o alqueire. Dá para ganhar, não?

        — Que dá, sei que dá — mas também sei para quem dá. Um perrengue como eu não pensa mais nisso, não. Quando era gente, muitos peguei a 60 e não me arrependi. Mas hoje…

        — Nesse caso…


Transcorreram dois anos sem que eu tornasse aos Periquitos. Nesse intervalo Sinh’Ana faleceu. Era fatal a dor que respondia na cacunda. E não mais me aflorava à memória a imagem daqueles humildes urupês, quando me chegou aos ouvidos o zum-zum corrente no bairro, uma coisa apenas crível: o filho de um sitiante vizinho, rapaz de todo pancada, furtara Pingo d’Água aos Periquitos.

         — Como isso? Uma menina tão acanhada!…

        — É para ver! Desconfiem das sonsas… Fugiu, e lá rodou com ele para a cidade — não para casar, nem para enterrar. Foi ser “moça”, a pombinha…

        O incidente ficou a azoinar-me o bestunto. À noite perdi o sono, revivendo cenas da minha última visita ao sítio, e nasceu-me a ideia de lá tornar. Para? Confesso: mera curiosidade, para ouvir os comentários da triste velhinha. Que golpe! Desta feita ia-se-lhe a rijeza de cerne.

        Fui.

        Setembro entumecia gomos em cada arbusto. Nenhuma neblina. A paisagem desenhava-se nítida até aos cabeços dos morros distantes.

        Por amor à simetria, montava eu o mesmo picaço. Transpus a mesma porteira. Atalhei pelo mesmo trilho.

        No córrego vi, com os olhos da imaginação, o vulto da menina envergonhada com o pote em repouso na laje e toda às voltas com a rodilha. Mais uns passos e a tapera antolhou-se-me, deserta. As três árvores do pomar extinto eram já galhaça resseca e poenta. Só os mamoeiros subsistiam, mais crescidos, sempre apinhados de frutos. O resto piorara, descambando para o lúgubre. Ruíra o oitão e o terreirinho pintalgara-se de moitas de guanxuma, cordão-de-frade e joás.

        — Ó de casa! — gritei.

        Silêncio. Três vezes repeti o apelo. Por fim surgiu dos fundos uma sombra acurvada e trêmula.

        — Bom dia, nhá Joaquina. Está seu Zé?

        Não me reconheceu a velhinha. Zé fora à vila, vender a sitioca para mudar de terra.

        Fez-me entrar, logo que me dei a conhecer, pedindo escusas da má vista.

        — Tem coragem de estar aqui sozinha?


— Eu? Sozinha estou em toda parte. Morreu-me tudo, a filha, a neta… Sente-se — murmurou apontando para o mocho de dois anos atrás.

        Sentei-me, com um nó na garganta. Não sabia o que dizer. Por fim:

        — O que é a vida, nhá Joaquina! Parece que foi ontem que estive aqui. Apesar das doenças, iam vivendo felizes. Hoje…

        A velha limpou no canhão da manga uma lágrima.

        — Viver setenta e dois anos para acabar assim… Felizmente a morte não tarda. Já a sinto cá dentro.

        Confrangia-me o coração aquele ermo onde tudo era passado — a terra, as laranjeiras, a casa, as vidas —, salvo, trêmulo espectro sobrevivente como a alma da tapera, a triste velhinha encanecida, cujos olhos poucas lágrimas estilavam, tantas chorara.

        — Que mais agora? — murmurou pausadamente em voz de quem já não é deste mundo. — Até a “desgraça”, eu não queria morrer.

        Velha e inútil, inda gostava do mundo. Morreu-me a filha, mas restava a neta — que era duas vezes filha e o meu consolo.

        Desencaminharam a pobrezinha… Agora, que mais? Só peço a Deus que me retire, logo e logo.

        Relanceei um olhar pela sala vazia. A caixeta de costura inda estava sobre a arca no lugar de sempre. Meus olhos pousaram ali, marasmados.

        A velha adivinhou-me o pensamento e, levantando-se, tomou-a nas mãos mal firmes. Abriu-a. Tirou de dentro a colcha inacabada, contemplou-a longamente. Depois, com tremuras na voz:

        — Dezesseis anos — e não pude acabar a colcha… Ninguém imagina o que é para mim esta prenda. Cada retalho tem sua história e me lembra um vestidinho de Pingo d’Água. Aqui leio a vidinha dela desde que nasceu. “Este, olhe, foi da primeira camiseta que vestiu… Tão galantinha! Estou a vê-la no meu braço, tentando pegar os óculos com a mãozinha gorda…

        “Este azul, de listas, lembra um vestido que a madrinha lhe deu aos três anos. Ela já andava pela casa inteira armando reinações, perseguindo o Romão — que um dia, por sinal, lhe meteu as unhas no rostinho. Chamava-me ‘óó aquina’…

        “Este vermelho de rosinhas foi quando completou os cinco anos. Estava com ele por ocasião do tombo na pedra do córrego, donde lhe veio aquela marquinha no queixo, não reparou?

        “Este cá, de xadrezinho, foi pelos sete anos, e eu mesma o fiz, e o fiz de saia comprida e paletó de quartinho. Ficou tão engraçada, feita uma mulherzinha!

        “Pingo d’Água já sabia temperar um virado, quando usou este aqui, de argolinhas roxas em fundo branco. Digo isto porque foi com ele que entornou uma panela e queimou as mãos.

        “Este cor de batata foi quando tinha dez anos e caiu com sarampo, muito malzinha. Os dias e as noites que passei ao pé dela, a contar histórias! Como gostava da Gata Borralheira!…”

        A velha enxugou na colcha uma lágrima perdida e calou-se.

        — E este? — perguntei para avivá-la, apontando um retalho amarelo.

        Pausou um bocado a triste avó, em contemplação.

        Depois:

        — Este é novo. Já tinha quinze anos quando o vestiu pela primeira vez num mutirão do Labrego. Não gosto dele. Parece que a “desgraça” começa aqui. Ficou um vestido muito assentadinho no corpo, e galante, mas pelas minhas contas foi o culpado do Labreguinho engraçar-se da coitada. Hoje sei disso. Naquele tempo de nada suspeitava.

        — Este — disse-lhe eu, fingindo recordar-me — é o que ela vestia quando cá estive.

        — Engano seu. Era, quer ver qual? Era este de pintas vermelhas, repare bem.

        — É verdade, é verdade! — menti. — Agora me lembro, isso mesmo. E este último?

        Após uma pausa dorida, a pobre criatura oscilou a cabeça e balbuciou:

        — Este é o da “desgraça”. Foi o derradeiro que fiz. Com ele fugiu… e me matou.

        Calou-se, a lacrimejar, trêmula.

        Calei-me também, opresso dum infinito apertão de alma.

        Que quadro imensamente triste, aquele fim de vida machucado pela mocidade louca!…

        E ficamos ambos assim, imóveis, de olhos presos à colcha.

        Ela por fim quebrou o silêncio.

        — Ia ser o meu presente de noivado. Deus não quis. Será agora a minha mortalha. Já pedi que me enterrassem com ela.

        E guardou-a dobradinha na caixa, envolta num suspiro arrancado ao imo do coração.

        Um mês depois morria. Vim a saber que lhe não cumpriram a última vontade.

        Que importa ao mundo a vontade última duma pobre velhinha da roça?

        Pieguices…

Monteiro Lobato, no livro “Contos completos”. São Paulo: Biblioteca Azul, 2014.

Entendendo o conto:

01 – Quem é o protagonista principal deste conto?

      O protagonista principal é um narrador não especificado que visita repetidamente a família de José Alvorada, testemunhando a vida na roça ao longo do tempo.

02 – Como a paisagem é descrita no conto?

      A paisagem é descrita como coberta por neblina em certas manhãs de março, dando uma sensação de embrulho e cores desbotadas, obscurecendo os detalhes.

03 – Quais são as características da vida dos Alvoradas?

      Os Alvoradas são uma família que passou por dificuldades na roça, enfrentando problemas financeiros após perdas na colheita e isolamento do convívio da cidade.

04 – Qual é o elemento que a velha Joaquina guarda e por que é significativo para ela?

      Joaquina guarda uma colcha de retalhos feita com pedaços dos vestidos de sua neta, Pingo d'Água, ao longo dos anos. É significativa porque cada pedaço representa uma fase da vida de Pingo.

05 – O que acontece com Pingo d'Água ao longo da história?

      Pingo d'Água, uma menina tímida e reservada, é raptada por um rapaz da cidade, abandonando sua família e o ambiente rural para uma vida na cidade como "moça".

06 – Por que a última parte da colcha é descrita como o "vestido da desgraça"?

      O último retalho da colcha representa o vestido que Pingo d'Água usava quando fugiu com o rapaz da cidade, sendo o símbolo da desventura que se abateu sobre a família.

07 – O que acontece com a velha Joaquina no final do conto?

     Joaquina morre, pedindo para ser enterrada com a colcha de retalhos, mas seu último desejo não é cumprido.

08 – Como a narrativa trata os temas de perda, solidão e mudança ao longo do tempo?

      A história explora a perda gradual da família, da propriedade e da vida na roça, destacando a solidão e a mudança que acompanham essas perdas ao longo do tempo.

09 – Qual é o significado simbólico da colcha de retalhos na história?

      A colcha simboliza a vida de Pingo d'Água, mas também representa a história da família Alvorada, seus momentos felizes e tristes, além de ser um testemunho das mudanças e tragédias que enfrentaram.

10 – Qual é a mensagem central transmitida pelo conto "A colcha de retalhos"?

      A história transmite a ideia de que a vida é feita de fragmentos, momentos que se unem para formar uma narrativa, mas que podem ser marcados por tragédias imprevistas, e que mesmo os objetos mais simples podem carregar histórias profundamente significativas.