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quinta-feira, 3 de julho de 2025

CONTO: AS HISTÓRIAS QUE NOS POSSUEM - FRAGMENTO - HELOISA PRIETO - COM GABARITO

 Conto: As histórias que nos possuem – Fragmento

           Heloisa Prieto

        Jonas recebeu de Deus a missão de ir à cidade de Nínive. Caminhou até o porto e encontrou um navio que partia para aquele destino. Porém, durante a viagem, o Senhor enviou sobre o mar um vento furioso e o navio corria perigo de naufrágio. Os marinheiros, apavorados, invocaram cada um o seu deus. Entretanto, Jonas desceu ao porão do navio e lá dormiu um profundo sono.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhGQVUFfPy6Z28nCUOFpgsBshLyIKCZkSSJEFZuI4uCHJoUVymLJZ00Mr-JLyEPyf8oellYStDJEIj6BseJAsvif-ONRtqfEvws8WXjl6BU3P-2uRwO5exW50UNMKWbu-wIwqQDzR4TTk9DrwwZV3xXv-DPt3hSHygmvJ5TzeJe1Yxin1vKaIJ8EtPq0Rg/s1600/2e7781ca-ee7f-4873-ab2d-ba8fe1b397ed-jonasc.jpg


        Logo chegou perto dele o piloto e lhe disse: "Como você pode dormir assim? Desperte, invoque seu deus e peça-lhe proteção".

        Nisso, os marinheiros consultaram os seus diferentes oráculos para saber por que a tempestade havia tombado sobre eles. Concluíram que o responsável por aquele perigo era Jonas. Foram até ele e lhe perguntaram: "Onde é a sua terra? Para onde você vai?".

        Jonas respondeu: "Eu sou hebreu, eu temo o Senhor Deus do Céu, que fez o mar e a terra". Todos os marinheiros se assustaram. "Que faremos de você para que o mar se acalme?", perguntaram. E Jonas respondeu-lhes: "Lancem-me ao mar, pois sei que é por minha causa que surgiu esta terrível tempestade!".

        Os marinheiros obedeceram ao seu desejo. Jonas foi lançado às águas. Nesse mesmo momento o mar ficou calmo. Porém, ao mesmo, o Senhor preparou uma imensa criatura marinha que engoliu Jonas. Na barriga dela, Jonas permaneceu vivo durante três dias e três noites. "As águas me cercaram até a alma", disse Jonas ao Senhor, "o abismo me engoliu e as ondas do mar me cobriram a cabeça. Porém, o Senhor preservou minha vida".

        Então, deus ordenou à baleia que o libertasse e ela abriu a sua enorme boca para que Jonas descesse calmamente na praia.

 "História de Jonas", adaptada da Bíblia Sagrada

        Professora de uma classe de pré-escola, tive um aluno que se chamava Jonas. Ele era adorável, olhos castanhos, meigos, uma criança que se expressava por gestos largos, carinhosos. Sempre que o observava brincando, lembrava-me da história bíblica de Jonas e da baleia. Ficava imaginando o quanto a baleia havia amado Jonas, que acolhera em sua imensa barriga até libertá-lo na praia. Encantada com o meu aluno, resolvi reler a narrativa bíblica, o mito milenar do homem que sobreviveu a uma terrível tempestade, dentro da barriga de um animal. Essa narrativa pode ser interpretada de várias maneiras. Por exemplo, ela aponta a nobreza de Jonas, que preferiu ser lançado ao mar a pôr em risco as vidas dos tripulantes. A sua coragem comove a Deus, que o protege e liberta. Jonas sobrevive sem lutar. Ao contrário dos heróis que têm de nadar bravamente através dos mares para sobreviver, Jonas é salvo pela própria natureza. Não entra em pânico, nem se desespera. Por isso, consegue permanecer na barriga da baleia até que ela o deixe na praia, e ele possa dar início a uma nova vida.

        Quando um bebê nasce, chega ao mundo cercado de histórias. É quase como se deixasse a barriga da mãe e fosse envolto numa rede de histórias. A começar pela história do próprio nome. Por que lhe foi dado este nome e não aquele? Quem o escolheu? O que significa? O nome contém uma história? A que tradição étnica pertence?

        Em certas culturas indígenas, como a dos povos munduruku, no norte do Pará, as crianças recebem dois nomes: o nome social e o nome mágico, secreto. Cada um deles faz referência a uma função mítica, a uma narrativa significativa.

        Na cultura afro-brasileira do candomblé, as pessoas vivem de acordo com os Odus, ou seja, narrativas míticas que orientam as nossas vidas. Cada pessoa deve descobrir o seu mito pessoal, o seu Odu, para compreender melhor o roteiro da sua própria vida. O Odu pessoal está entrelaçado ao familiar e ao contexto cultural. Uma vez descoberto o enredo que conduz uma vida, é preciso quebrá-lo. Só assim, liberta da trama de histórias que a acolheram quando veio ao mundo, uma pessoa pode atingir a autonomia da escolha e da criação do seu próprio destino.

        Citei exemplos de três tradições religiosas distintas – a judaico-cristã, a indígena e a afro-brasileira – com a intenção de mostrar que as narrativas exercem funções primordiais em todos os credos e culturas. É como se narrar fosse uma forma de pensar o mundo.

        Na antiga tradição oriental sufi (o sufismo é a tradição esotérica do islamismo), a sabedoria se aloja nas histórias. Quando uma pessoa enlouquecia, chamava-se um contador de histórias para curá-la. Histórias e mais histórias eram narradas ao louco até ele recuperar a capacidade de "pensar o mundo".

        Esse é o princípio básico das famosas “Mil e uma noites”. Um príncipe enlouquece ao ser traído por sua esposa. Transforma-se em uma espécie de assassino em série, como nos filmes americanos de hoje. A cada noite ele se casa com uma jovem, apenas para matá-la depois da cerimônia.

        Acontece que vive na sua cidade uma moça belíssima e inteligente chamada Sherazade. Como era mercador, seu pai lhe trazia muitos livros. Sherazade conclui de suas leituras que pode curar o príncipe. Declara ao pai que pretende casar-se com ele. Naturalmente, o pai fica apavorado e protesta. Não deseja perder a sua filha mais querida pela espada de um louco. Porém, firme em sua intenção, Sherazade prossegue com seu plano. O casamento é celebrado com todas as pompas. Quando termina a cerimônia e se aproxima o momento em que sua vida será ceifada, Sherazade pede ao príncipe que lhe satisfaça um pequeno desejo: todas as noites, tinha o hábito de contar uma história à sua irmã caçula e, agora, gostaria de narrar-lhe a última história antes de iniciar sua vida de casada.

        O príncipe concede-lhe o desejo. Sherazade começa a narrar. Porém, ciente da sua capacidade de seduzir por meio de narrativas, a bela jovem mantém o príncipe preso ao fio de suas palavras. Quando o sol nasce, ela interrompe a narração da aventura que narrava na melhor parte. Curioso de saber o final da história, o príncipe poupa-lhe a vida.

        Assim prossegue Sherazade durante mil e uma noites. Lentamente, pelo contato com as histórias, o príncipe vai se tranquilizando até que, certo dia, declara estar curado. Daquele momento em diante, passa a reinar como o mais sábio dos soberanos.

        É interessante notar que a própria Sherazade jamais se arrisca a declarar que o príncipe está curado. Ao longo das narrativas, eles têm vários filhos, mas ela só as interrompe quando ele mesmo afirma sentir-se profundamente feliz.

        Qual é a diferença entre a última história narrada ao príncipe e as outras? Todas são de grande beleza, com uma arquitetura narrativa tão perfeita que até hoje se recorre à estrutura do suspense utilizada por Sherazade, por exemplo, nas novelas de televisão. Ou seja, interrompe-se a narrativa em um ponto de virada. No momento em que se introduz um perigo, uma nova informação, algo que desperta a curiosidade do telespectador a ponto de obrigá-lo a ligar a televisão no mesmo horário, no mesmo canal, no dia seguinte. [...]

        Por hora, basta ressaltar a força das narrativas nessa obra-prima da cultura oriental.

        Voltando à Bíblia, é interessante pensar nas respostas que Cristo dava aos inimigos sempre que era provocado. Em vez de dar longas explicações, ele simplesmente respondia por meio de parábolas. Contudo, as breves narrativas que proferia contêm uma trama de significados tão profundos que são citadas mesmo fora do contexto religioso.

        Como responder a uma criança de cerca de cinco ou seis anos o que significa exatamente a palavra justiça? Utilizando longas explicações? Geralmente, quando um adulto tenta explicar alguma coisa e não consegue, recorre a um exemplo. Naturalmente, o exemplo escolhido acaba terminando em uma breve narrativa. A criança que ouve a história às vezes percebe outras nuances que o próprio adulto ignora. E pode simplesmente acontecer de uma pergunta sobre justiça acabar gerando uma narrativa que conduza a criança a outra questão fundamental para ela.

        Vamos imaginar um diálogo desses:

        -- Papai, o que é um traidor? – pergunta a criança.

        -- E um sujeito que não respeita os amigos – responde o pai.

        -- Como assim? – insiste a criança.

        -- Ah, por exemplo, todos combinam que não se deve mentir e, aí, alguém mente. Essa pessoa traiu a confiança do seu grupo – explica o pai.

        -- Entendi – diz a criança, que sai para brincar.

        -- Entendeu mesmo? – pergunta o pai.

        -- Todo traidor é mentiroso – responde a criança.

        Conforme afirma Yves de La Taille, em seu livro Limites – três dimensões educacionais: "Hoje se tende a admitir que não há apenas uma chave para o conhecimento, mas várias". A mesma narrativa pode conter muitas chaves para a compreensão de uma verdade.

        Pessoalmente, sempre associei a palavra traição à figura de judas Iscariotes, que considerava ao mesmo tempo fascinante e repugnante. Judas era o discípulo amado de Cristo que o traiu, vendendo-o aos inimigos. Para que os soldados soubessem qual era o homem que deviam prender, Judas os avisa que o cumprimentaria com um beijo. De modo que Cristo é traído com uma manifestação de carinho.

        Mais tarde, arrependido, Judas enforca-se. Cristo é morto, porém ressuscita e vive para sempre.

        Somente muitos anos depois, quando reli as histórias da Bíblia do ponto de vista literário, é que me dei conta de que Pedro, outro discípulo, também havia traído Cristo. Porém, sua traição contém outro significado. Ele trai a Cristo motivado pelo medo. Ao passo que Judas o trai motivado pelo dinheiro. Pedro resgata seu vínculo com Cristo, mas o mesmo não acontece com Judas. O interessante nesses dois exemplos é que Cristo compreende e perdoa a ambos.

        Já na universidade, voltei a ler essas passagens da Bíblia comparando-as a textos, narrativas e histórias de outras culturas, ou seja, utilizando outras chaves de compreensão.

        Do ponto de vista da teoria literária, o vilão, no caso Judas, é o propulsor à ação. Sem ele, Cristo não se teria transformado no redentor.

        Como se pode ver, passei anos tentando compreender a complexidade da figura do traidor. Associei narrativas de diferentes culturas e, mesmo assim, creio que apenas estou começando a compreender por que Cristo foi tão complacente com Judas.

        Assim são as narrativas. Múltiplas em significados. Inesgotáveis. Passíveis de inúmeras leituras. Ao longo da vida, conforme amadurecemos, "lemos" as mesmas histórias de diferentes ângulos.

        Quando uma história nos possui, ou seja, quando uma narrativa é recorrente, uma história sempre presente em nossa vida, seja ela Cinderela, João e o Pé de Feijão, Branca de Neve, Chapeuzinho Vermelho, 0 pequeno príncipe, do autor francês Saint-Exupéry, ou um filme como Casablanca ou ...E o vento levou, o Sítio do Pica-Pau Amarelo, essa história se transforma em um tema fascinante que se relaciona com a forma pela qual decodificamos nossas experiências.

        Além da trama de histórias milenares, culturais, somos também cercados pelas pequenas narrativas pessoais e intransferíveis.

        Há, por exemplo, a história do romance dos nossos pais. Será que namoraram muitos anos? Será que se encontraram por acaso? Somos fruto de uma história feliz ou de um amor desesperado?

        Há crianças que nascem em elevadores, enquanto outras, preguiçosas, custam a nascer, e suas mães são obrigadas a fazer cesarianas. Existem histórias de pais nervosos, que desmaiam na sala de parto, de irmãozinhos ciumentos, que destroem os brinquedos do recém-nascido.  

        Existem vários autores que criaram suas obras com base em histórias familiares. O jovem amazonense Milton Hatoum, um dos expoentes da nossa literatura contemporânea, lança seus leitores no ambiente caloroso de uma família árabe que vive na Amazônia, em seu livro Relato de um certo Oriente, do qual reproduzo o trecho abaixo:

        -- Lembram como fazia Emilie? – disse tio Hakim, sorvendo o último gole de café. – Ela pedia para que todos emborcassem a xícara na bandeja, e depois examinava o fundo da porcelana para decifrar no emaranhado de linhas negras do líquido ressequido o destino de cada um.

        A conversa se estendia por toda a noite, porque as pessoas não conseguiam ouvir as histórias sem emitir uma opinião ou recordar algo; alguém já começara a abrir as caixas de bombons e doces para acompanhar a próxima rodada de café; depois viriam os sucos e aguardentes, e quem sabe uma refeição improvisada no meio da madrugada.

        É interessante notar que Emilie, uma das personagens centrais desse romance, lia o destino na borra de café. No parágrafo seguinte, pelas descrições das conversas noturnas regadas a café, sucos, aguardentes, e alimentadas por doces e bombons, é como se pudéssemos "ler" o ambiente das rodas de histórias, nas quais era impossível ficar calado.

        Uma xícara de café, o ruído de uma caixa de doces sendo aberta e conversas que não terminam mais fazendo parte da vida de cada um; mas, com o talento de um autor como Milton Hatoum, deslocam-se para a categoria das "horas inesquecíveis", ecos de um bem-estar, momentos que valem a pena ser vividos.

        Contudo, sempre é preciso lembrar-se de que a palavra "ler", etimologicamente, significa "enovelar". Portanto, mesmo que autores como Milton Hatoum, ou Steinbeck, tenham tomado como ponto de partida as próprias experiências familiares, isso não significa que elas sejam absolutamente fiéis à realidade. Quem aprecia a obra de Lobato sabe que mergulhar em uma aventura do Sítio do Pica-Pau Amarelo era caminhar em outra realidade, "lagartear, o prazer de viver, puro, sem mistura".

        Afinal, onde mora a verdade? O que é mais revelador, a biografia de um artista ou sua obra? Na verdade, nenhuma biografia jamais dará conta dos segredos, da riqueza interior da vida de um artista ou de uma personalidade famosa. Contudo, a recíproca também é verdadeira: mesmo que se disseque uma obra em busca de traços e informações a respeito da vida do autor, ela aponta sempre para outro nível de realidade, para a dimensão das emoções, da percepção, de outra verdade. Uma obra contém basicamente o imaginário do seu autor. Quando se escreve, instaura-se um jogo entre leitor e escritor. Um jogo verdadeiro, porém, ambivalente, repleto de segredos.

        John Steinbeck, um dos maiores autores da literatura norte-americana, criou a obra-prima A leste do Éden, inspirando-se nas narrativas que ouvia na Califórnia. Até que ponto ele as ouviu realmente? Será que existiram as pessoas que teriam dado origem aos seus personagens? Na verdade, muito além da dimensão do diálogo entre a vida e obra, esse livro é particularmente interessante porque trata da forma como uma história marcou a vida dos personagens de uma família.

        Escrita como uma saga, descrevendo as vidas de gerações sucessivas, a narrativa culmina com o conflito entre dois irmãos gêmeos, Caleb e Aron. Ambos tinham sido fruto de um amor transgressivo. Adam Trask, o pai deles, um fazendeiro protestante, apaixonara-se por Cathy, garota rebelde com passagens pela prostituição, mentirosa compulsiva, uma mente perversa oculta sob um rosto belíssimo, angelical.

        Adam casa-se com Cathy com o intuito de oferecer-lhe a segurança e o carinho que ela jamais tivera. Porém, a garota não se adapta a uma vida pacata e abandona o marido e os filhos. Passa a viver no bordel, deixando Adam não só com o coração inteiramente despedaçado, mas também diante do difícil encargo de criar os gêmeos sozinho.

        Infeliz e angustiado, Adam conta com seu criado chinês para auxiliá-lo nos afazeres domésticos e na criação dos garotos. Ocorre que, embora de aparência modesta, de comportamento atencioso e humilde, o criado chinês era, na realidade, um grande erudito, pertencente a um grupo de sábios que se reunia semanalmente no hoje famoso bairro chinês da cidade de San Francisco, Chinatown.

        Pois bem, Lee, o sábio chinês, não se conforma com a maneira como os gêmeos são criados. Percebendo que Adam atribuía a Caleb o papel do personagem bíblico Caim e a Aron, o papel de Abel, Lee contesta a história bíblica. Considera a decisão divina de privilegiar a oferenda de Abel injusta e irresponsável. Como pode um deus enaltecer um filho em detrimento do outro?

        Na verdade, o perspicaz sábio chinês percebe que Adam reservava aos filhos o mesmo destino que os personagens bíblicos. Aron cresce fraco, superprotegido e revela-se incapaz de lidar com os reveses da vida. Caleb, o rejeitado, habitua-se à incompreensão; contudo, desenvolve uma força interior que o obriga a sobreviver às frustrações que tem de enfrentar.

        Um triângulo amoroso configura-se quando ambos se apaixonam por Abra, menina de sabedoria, honestidade e integridade. Essa personagem feminina, forte e realizadora, contrapõe-se ao impacto devastador da personagem de Cathy, a mãe, cuja existência, aliás, é ignorada por Aron, que acredita ser órfão.

        A situação bíblica configura-se à medida que Adam desenvolve um projeto agrícola que consiste em levar alfaces californianas para outros estados. Seu plano de transportá-las de trem, preservadas no gelo, fracassa, e Adam perde dinheiro e prestígio na empreitada. Infeliz, afunda-se ainda mais na depressão.

        Para tentar ajudar o pai, provar seu valor e demonstrar seu carinho, Caleb faz negócios com outros comerciantes e é extremamente bem-sucedido. Corre até o pai e declara ter conseguido o valor necessário para ressarci-lo do seu prejuízo. Porém, desconfiado, amargo, o pai não só recusa a aceitar a soma como também acusa o filho de estar envolvido em negócios ilícitos.

        Inconformado com a injustiça paterna, Caleb, ciente do paradeiro da mãe, leva o irmão até o bordel. Diante do rosto materno, cuja semelhança com o seu é inacreditável, Aron vê seu mundo desabar. Desesperado, alista-se no exército e é morto em combate.

        Adam acusa Caleb pela morte do irmão e a situação bíblica ficaria claramente configurada não fosse a presença de Abra, cujo amor latente por Caleb explode, e pela intercessão de Lee, o sábio chinês.

        Pois, quando Caleb está prestes a cumprir seu destino de Caim, a deixar o pai moribundo, a abdicar do amor pela antiga namorada do irmão, e a partir para vagar infeliz pela terra, Lee decide intervir. Aproxima-se de Adam e declara ter passado três anos estudando hebraico para decifrar a verdadeira história da Bíblia.

        Após estudos minuciosos, o grupo de sábios do qual fazia parte descobrira que cada palavra do idioma hebraico possuía diversos significados. Contudo, a maior parte das traduções publicadas optava por um significado simplista, chegando até mesmo a alterar inteiramente o sentido da palavra original. Porque a palavra que Deus diz a Caim no momento em que ele é jogado ao mundo, após ter matado o próprio irmão, na verdade significa "liberta-te".

        Essa revelação altera o comportamento do pai, que, finalmente, abraça o filho e se permite amá-lo, libertando-o do seu destino fatídico.

        Nesse momento, quebra-se o enredo trágico que Adam destinara aos dois filhos pela troca do significado de uma única palavra. Troca que só é possível por meio do olhar de um estrangeiro, de alguém proveniente de outra cultura.

        Utilizando um termo da antropologia, a tradução dessa palavra ressignifica toda a história de Caim e Abel, revelando o amor divino que tudo perdoa e compreende.

        Todos nós nascemos, como os gêmeos da obra de Steinbeck, Caleb e Aron, imersos em uma imensa trama de narrativas. Certas narrativas exercem uma grande influência sobre o imaginário familiar, cultural, ou ambos, como se nos possuíssem. Elas condicionam o nosso modo de ver a vida, de tomar decisões, de resolver os problemas afetivos e assim por diante.

        Trata-se do nosso currículo oculto, da bagagem que uma criança traz à escola, só detectável pela sensibilidade do professor que não considera seu aluno um vaso oco a ser preenchido por conhecimentos predeterminados pelos currículos oficiais.

        Contudo, há também o risco oposto: imaginemos um professor, sensível à causa indígena, com um descendente direto de indígenas na sua classe. A tentação de usá-lo para saciar a nossa curiosidade natural a respeito de suas lendas, crenças e costumes também pode ter um efeito devastador.

        Portanto, seja em sala de aula, seja no espaço familiar, é importante lembrar que as histórias constituem um material de grande carga afetiva. Relacionar uma pessoa a uma determinada história pode significar aprisioná-la dentro dela.

        Isso fica mais claro quando pensamos nos escritores. Há um livro de suspense de Stephen King, americano mestre do terror, chamado Louca obsessão, no qual um escritor é raptado por sua maior fã. Cansado de escrever sempre sobre a mesma personagem, ele a mata. Inconformada, sua fã número I o aprisiona, quebra suas pernas e obriga-o a ressuscitar a personagem que ela tanto amava.

        E muito fácil um escritor ser preso pelo sucesso do seu estilo ou de seus personagens. Manter-se sempre obediente a uma determinada fórmula. Contudo, ao mencionar os "Odus do candomblé", as Mil e uma noites, ou a bela saga de Steinbeck, a função primeira das narrativas é a busca da liberdade. Nem que isso signifique, simplesmente, a liberdade de mergulhar em novos rios de histórias.

        Pode ocorrer que o aluno indígena que imaginei em uma classe esteja apaixonado pelos contos de fadas europeus e não sinta vontade alguma de falar sobre suas lendas. Que a ele seja dada então a liberdade de apaixonar-se por outras narrativas.

        "Mar de histórias" é a expressão que se usava em sânscrito para se referir ao universo das narrativas. Ao transitar por essas rotas imaginárias, é sempre bom ter em mente a metáfora do mar. Ou seja, é preciso ter um caminho, é preciso manter o leme firme, mas é também necessária a consciência de que se navega em águas que ora podem ser muito tranquilas, ora podem se transformar em verdadeiros maremotos.

        Esta aventura literária da qual fazem parte o mestre e seus alunos: é preciso coragem para trafegar por mundos imaginários; porém, as viagens serão sempre cheias de descobertas.

Heloisa Prieto.

Fonte: Letra e Vida. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos – Módulo 3 – CENP - São Paulo – 2005. p. 33-40.

Entendendo o conto:

01 – Qual a primeira história bíblica recontada no texto, e o que ela simboliza na visão da autora?

      A primeira história recontada é a de Jonas e a baleia, adaptada da Bíblia. Na visão da autora, ela simboliza a nobreza e a coragem de Jonas, que prefere ser lançado ao mar para salvar os tripulantes. Além disso, representa a proteção e a salvação pela natureza, sem que o herói precise lutar, e a capacidade de sobreviver e recomeçar. A autora também reflete sobre como a baleia "amou" Jonas, acolhendo-o.

02 – Como as culturas indígena e afro-brasileira são citadas para ilustrar a importância das narrativas no nascimento e na vida das pessoas?

      Na cultura indígena Munduruku, as crianças recebem dois nomes (social e mágico), cada um ligado a uma narrativa mítica e a uma função significativa. Na cultura afro-brasileira do candomblé, as pessoas vivem de acordo com os Odus, que são narrativas míticas que orientam suas vidas. Ambas as culturas demonstram que, ao nascer, o indivíduo já é envolvido por uma "rede de histórias" que moldam sua existência.

03 – Qual o papel do "contador de histórias" na tradição oriental Sufi, e como isso se relaciona com a história das "Mil e uma noites"?

      Na tradição Sufi, o contador de histórias era chamado para curar pessoas enlouquecidas, narrando "histórias e mais histórias" até que recuperassem a capacidade de "pensar o mundo". A história das "Mil e uma noites" exemplifica isso, com Sherazade curando o príncipe assassino ao seduzi-lo e prendê-lo ao fio de suas narrativas incompletas, que o tranquilizam e o transformam no "mais sábio dos soberanos".

04 – Por que, segundo o texto, Cristo respondia a seus inimigos por meio de parábolas?

      Cristo respondia a seus inimigos por meio de parábolas em vez de longas explicações porque essas breves narrativas contêm uma "trama de significados tão profundos" que são compreendidas e citadas mesmo fora do contexto religioso. Isso ilustra o poder das histórias em transmitir verdades complexas de forma acessível e impactante.

05 – Qual a diferença de significado entre as traições de Judas e Pedro a Cristo, e o que a autora aprendeu ao relê-las?

      A autora percebe que Judas trai Cristo motivado pelo dinheiro, enquanto Pedro o trai motivado pelo medo. Ao reler, ela nota que Pedro consegue resgatar seu vínculo com Cristo, o que não acontece com Judas. Além disso, do ponto de vista da teoria literária, Judas é o "propulsor à ação", sem o qual Cristo não se teria transformado no redentor. A autora ainda se pergunta por que Cristo foi tão complacente com Judas.

06 – Como a crônica exemplifica a ideia de que "uma mesma narrativa pode conter muitas chaves para a compreensão de uma verdade"?

      A crônica exemplifica isso através da análise das traições de Judas e Pedro, mostrando como a mesma história bíblica pode ter diferentes interpretações dependendo do ponto de vista (literário, psicológico, cultural). A revelação do sábio chinês Lee sobre a palavra hebraica "liberta-te" dita a Caim também ilustra como uma única palavra, com seus múltiplos significados, pode ressignificar uma narrativa inteira.

07 – Qual a importância da revelação do sábio chinês Lee sobre o significado da palavra dita a Caim na Bíblia?

      A revelação de Lee, de que a palavra que Deus diz a Caim significa "liberta-te", é crucial pois quebra o "enredo trágico" que Adam havia destinado aos seus filhos. Essa ressignificação da história bíblica transforma a perspectiva do pai sobre Caleb e Aron, permitindo que ele abrace o filho e o liberte de um destino fatídico. Isso demonstra como a interpretação de uma narrativa pode ter um impacto profundo na vida real.

08 – O que a crônica entende por "histórias que nos possuem" e como elas influenciam nossa vida?

      "Histórias que nos possuem" são narrativas recorrentes e sempre presentes em nossas vidas, sejam elas contos milenares (Cinderela, Chapeuzinho Vermelho), obras literárias ("O Pequeno Príncipe") ou familiares. Elas condicionam nosso modo de ver a vida, tomar decisões e resolver problemas, funcionando como um "currículo oculto" e uma "bagagem" que cada indivíduo traz consigo.

09 – Que risco a autora aponta em relação ao professor que lida com a "bagagem" cultural dos alunos?

      A autora alerta para o risco de o professor, mesmo sendo sensível à causa indígena, por exemplo, usar o aluno como um meio de saciar sua própria curiosidade sobre lendas e costumes. Isso pode ter um "efeito devastador", pois a história, apesar de ser um material de "grande carga afetiva", pode aprisionar a pessoa se ela for relacionada unicamente a uma determinada narrativa.

10 – Qual a metáfora final utilizada pela autora para descrever a "aventura literária" e o que ela sugere sobre o ato de ler e navegar por histórias?

      A autora utiliza a metáfora do "mar de histórias" (expressão sânscrita) para descrever o universo das narrativas e a aventura literária. Ela sugere que é preciso ter um caminho e manter o leme firme (orientação), mas também ter a consciência de que se navega em "águas que ora podem ser muito tranquilas, ora podem se transformar em verdadeiros maremotos". Isso implica que a leitura é uma jornada corajosa, cheia de descobertas, mas também de imprevisibilidade e desafios.

 

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

TEXTO: O QUE É UM HERÓI? - HELOISA PRIETO - COM GABARITO

 Texto: O que é um herói?

           Heloisa Prieto

        Um homem corajoso? Um campeão na luta? Um sujeito muito inteligente?

        Ou aquele intrépido que vive salvando mocinhas indefesas de vilões igualmente fortes, corajosos e espertos?

        Na idade média, quando os homens lutavam com arcos e flechas, lanças e espadas, surgiram os cavaleiros.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhQ7O1kjpuEKuszEd5vxD2iztUwz8K8k8TGxt9Oy1wJGtC2tR9pbBTGksxU8bXIzMPXdi1Jf2at8a4jLY_xZ2s-Wq4OPLft5lH5sWUhsSrTlw_qGK4b5uvWpqYEmPQVhWA18Z6Rsp_V2TeatFpWt2hebOZDR3kMqo15Mp-bzs9p_s-Uc53-bUPFKEfUej8/s320/cruzadas01.jpg


        E, com eles, um código de honra que se chamava código da cavalaria. Naqueles tempos do passado, o herói era o cavaleiro que seguia esse código. E, segundo as leis da cavalaria, ele deveria ser justo, leal, obedecer ao rei, defender os injustiçados e... proteger donzelas em perigo.

        Quando lutava, o cavaleiro não podia atacar o inimigo pelas costas, mas devia enfrentá-lo face a face. A vitória a qualquer preço não interessava mais. Era melhor morrer com honra do que vencer pela traição e golpes baixos. Aquele que conquistava a vitória por meio da crueldade e deslealdade era considerado um vilão, uma pessoa desprezível.

PRIETO, Heloisa. Heróis e guerreiros – Quase tudo o que você queria saber. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 1995. p. 7.

Fonte: Livro – Português: Linguagem, 6ª Série – William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães, 2ª ed. – São Paulo: Atual Editora, 2002. p. 43-44.

Entendendo o texto:

01 – Quais são algumas das características tradicionais associadas a um herói mencionado no início do texto?

      O herói pode ser descrito como um homem corajoso, um campeão na luta, uma pessoa inteligente ou alguém que salva mocinhas indefesas de vilões.

02 – Quando surgiu o conceito de cavaleiro e o código da cavalaria?

      O conceito de cavaleiro e o código da cavalaria surgiram na Idade Média, quando os homens lutavam com arcos e flechas, lanças e espadas.

03 – O que o código da cavalaria foi projetado para um herói?

      O código da cavalaria prevê que o herói fosse justo, leal, obedecesse ao rei, defendesse os injustiçados e protegesse donzelas em perigo.

04 – Como os cavaleiros deveriam lutar, de acordo com o código da cavalaria?

      Os cavaleiros deveriam lutar contra o inimigo de frente, sem atacá-lo pelas costas. A vitória deveria ser alcançada com honra, sem traição e golpes baixos.

05 – Como eram vistos aqueles que conquistaram vitórias por meio de crueldade ou deslealdade?

      Aqueles que conquistaram a vitória, eram considerado um vilão, uma pessoa desprezível.

 



 

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

CONTO: A DANÇA DA VIDA - HELOÍSA PRIETO - COM GABARITO

 CONTO: A DANÇA DA VIDA – Bahia, 1889

            Heloísa Prieto

        Sempre digo que sou uma pessoa de sorte. Na vida tive tudo o que desejei, como aprender a escrever, em português e francês. No sertão da Bahia, nos arredores de Nossa Senhora do Livramento, poucas são as mulheres letradas e, se forem negras como eu, nem pensar. Creio que nasci abençoada por Maria, como dizia minha mãe, e filha de Iansã, como dizia meu avô.

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjRQ77lKCYdvvgyJBuo0NfgyH5TBGUYuagJY5WOSgiFj3e0_OfpR_7QZ-jJHL4ZuO7jIpcI3z3c1euJX8YseiNQ9FiHqJ4OQqHXR5JlCSjzutrFTu1cRPo4YS5eExMWYZtE4jUadcqG6hONd2MioXMXpuM16gHLn3a4FmlJgZQYmm1MxxrO5B4dE0TbGig/s1600/DAN%C3%87A.jpg 


        Agora que minha vida está por terminar, alegro-me com minhas lembranças. Já tenho oitenta e seis anos. Sinto-me cansada ao caminhar. Mas minhas mãos são ágeis, minha vista é boa e passo os dias recordando e escrevendo. Quem sabe meus netos se interessem pelo que tenho a contar...

        Quando eu era menina, as pessoas me diziam que era muito mimosa. Sinhá Quitéria, que todos chamavam de sinhá Viúva, ordenou que eu trabalhasse na casa grande. Deixei a senzala e comecei a dormir no porão com as outras mucamas. Mas, na verdade passava a maior parte das noites em claro, cuidando de meu sinhozinho.

        Nunca esquecerei a primeira vez em que o vi. A pele tão branca, os olhos tão fundos e delicados, os cabelos castanhos, encaracolados e longos. Ele sorriu para mim, gostou do meu jeito. Passava o dia acamado. Sofria do pulmão. O peito chiava e ele sentia muita fraqueza. Às vezes tossia a noite inteira.

        Mas nos dias em que estava disposto, ele era muito divertido. Vendo como eu adorava os livros encadernados que viviam na sua mesinha-de-cabeceira, sinhozinho resolveu me ensinar a ler. Só para que depois eu lesse histórias para ele. Foi uma alegria. Aprendi tudo num instante.

        Sinhá Quitéria sempre me dizia que não deixasse meu sinhozinho por um minuto sequer. Mas ela nem precisava dar essa ordem. Até hoje continuamos juntos. Só vamos nos separar quando a morte vier.

        Mas como estava dizendo, nas noites em que ele sofria, eu quase morria. Não suportava vê-lo assim. Foi por isso que, certa madrugada, eu o convenci a fugir do quarto.

        Abri as cortinas que viviam fechadas e saímos os dois pela janela. Foi assim que levei meu querido Pedro Manuel de Assis, meu amado sinhozinho, para meu avô examiná-lo.

        Meu avô nascera em Angola; conhecia as ervas e os segredos da cura. Foi uma noite inesquecível. Quando nos aproximamos da senzala, vi que a roda de capoeira já havia começado. Lembro-me ainda hoje do som do berimbau e das cantigas cadenciadas.

        Sinhozinho até parou de tossir. Não tirava os olhos da ginga, dos rabos-de-arraia, das rasteiras, daquela dança mágica da vida. A lua estava cheia, a noite clara e, à luz da fogueira, os homens rodopiavam como se pertencessem a uma constelação de estrelas negras, cortantes e mortais.

        De repente sinhozinho me disse:

        — Eu quero aprender capoeira, Maria Macária. Diga isso ao seu avô.

        Vocês podem imaginar como fiquei apavorada. E se alguma coisa desse errado? E se alguém descobrisse?

        Mas quando meu avô fitou Pedro Manuel bem no fundo dos olhos simplesmente respondeu:

        — Você é filho de Xangô. Se eu ajudar, você nos fará justiça e descobrirá sua própria coragem.

        Foi uma surpresa para mim. Nunca pensei que meu avô um dia aceitasse ensinar capoeira a um branco. Sinhá Quitéria ficou desconfiada quando sinhozinho lhe disse que passaria as tardes em companhia do velho João. Mas como detestava contrariar o filho, acabou permitindo.

        E foi muito, muito divertido. Porque meu avô decidiu que aprenderíamos a ginga juntos. Mandava-nos engatinhar entre as árvores imitando gatos e cachorros. Morríamos de rir dando rasteiras um no outro. Aos poucos fomos aprendendo a dançar e a compreender cada som do berimbau.

        A luz do sol e o toque da terra devolveram a saúde a sinhozinho. A chiadeira foi sumindo, o peito se desenvolvendo, as pernas firmando e finalmente ele conseguia dormir à noite. Sinhá Quitéria ficou muito satisfeita com o “tratamento” de meu avô, e nós começamos a ter regalias. Mas contente mesmo ela ficou no dia da surra.

        Nesse dia, sinhá Quitéria recebeu a visita de dona Raquel, uma mulher muito antipática. Tinha nascido na Europa e detestava a Bahia. Seu filho era seu orgulho: um moleque grandalhão que sempre gritava com as mucamas e adorava matar passarinho. Na tarde da confusão eu estava muito cansada e derrubei chá quente em sua roupa quando fui servi-lo. Ele me deu tabefe tão forte no rosto que eu caí sentada no chão.

        E antes que sinhá Quitéria pudesse dizer qualquer coisa, meu amado sinhozinho já se levantara e segurava o menino pelo colarinho.

        Dona Raquel deu uma risadinha maldosa.

        — Seu filho já está bem de saúde? — perguntou para sinhá Quitéria. — Será que aguenta uma surra?

        Mas a frase ficou perdida no ar, porque rapidamente sinhozinho levou o menino para o meio do quintal. O grandalhão estava contente com a situação. Louco para bater em alguém. Levantou os punhos como se fosse dar socos.

        E sinhozinho começou a gingar. Ele se movimentava sem parar, observando o adversário de soslaio. Depois sorriu levemente, cheio de esperteza e mandinga.

        Quando o grandalhão levou a primeira rasteira, dona Raquel levantou-se indignada. Mas depois nem teve mais tempo de reclamar. Sinhozinho esquivou-se dos socos e o atacou com o arrastão, depois aplicou-lhe a meia-lua, e assim o grandalhão foi levando um tombo atrás do outro. A essas alturas alguém já tocava berimbau e uma roda havia sido formada em torno dos dois meninos. A cada vitória de sinhozinho todos aplaudiam e davam risadas. Ele tomava cuidado para não ferir o grandalhão de verdade. Queria só quebrar aquele orgulho. Mas isso quem fez foi a própria sinhá Quitéria. Pois quando a briga acabou e dona Raquel foi buscar o filho caído no meio do quintal, ela perdeu a compostura e gritou:

        — Muito bem Quitéria, você tem um filho valente. Ele luta como um negro.

        Sinhá Quitéria abraçou Pedro, que ria abraçado ao meu avô, e respondeu com toda a calma:

        — É Raquel, meu filho luta como um homem!

        Nunca mais dona Raquel voltou à fazenda e muitas coisas mudaram depois desse dia. Para mim e sinhozinho essa foi a primeira vitória. Passamos a vida envolvidos em muitas lutas. A luta contra o preconceito, contra a pobreza, contra a ignorância. E hoje, quando vejo nossos netos correndo por aí, acredito que conseguimos várias vitórias. Mas essas são histórias muito longas e ainda levarei dias para escrevê-las. E mesmo sendo velha guerreira, há momentos em que preciso descansar e, quem sabe sonhar. Até mais tarde.

Heloísa Prieto. Heróis e guerreiras. São Paulo, Companhia

das Letrinhas, 1995. Coleção Quase tudo o que você queria saber.

Entendendo o texto:

01 – Onde se passa a história do texto?

      A história do texto se passa no sertão da Bahia, nos arredores de Nossa Senhora do Livramento, em 1889.

02 – Qual é a idade da narradora no início do texto?

      A narradora tem oitenta e seis anos no início do texto.

03 – Como a narradora aprendeu a ler em português e francês?

      A narradora aprendeu a ler em português e francês através do seu sinhozinho, que a ensinou.

04 – Por que a narradora deixou a senzala e passou a dormir no porão?

      A narradora deixou a senzala e passou a dormir no porão porque foi ordenado por Sinhá Quitéria, que todos chamavam de Sinhá Viúva.

05 – Quem é sinhozinho e por que ele estava doente?

      Sinhozinho é o apelido do jovem Pedro Manuel de Assis, que estava doente com problemas pulmonares.

06 – O que a narradora fez para tentar ajudar sinhozinho?

      A narradora convenceu sinhozinho a fugir do quarto e o levou para seu avô, que era conhecedor das ervas e segredos da cura.

07 – Qual é o desejo de sinhozinho após assistir a uma roda de capoeira?

      Sinhozinho expressa o desejo de aprender capoeira após assistir a uma roda de capoeira.

08 – Qual foi a reação do avô da narradora quando sinhozinho pediu para aprender capoeira?

      O avô da narradora aceitou ensinar capoeira a sinhozinho, afirmando que ele era "filho de Xangô".

09 – Como sinhozinho e a narradora aprenderam a ginga da capoeira?

      O avô da narradora decidiu que eles aprenderiam a ginga juntos e os fazia engatinhar entre as árvores imitando gatos e cachorros.

10 – Como sinhozinho enfrentou o grandalhão que agrediu a narradora?

      Sinhozinho usou suas habilidades de capoeira para enfrentar o grandalhão, vencendo a briga e quebrando seu orgulho.

 

sábado, 12 de fevereiro de 2022

CONTO: LUNA, MINHA HEROÍNA - HELOÍSA PRIETO - COM GABARITO

 Conto: Luna, minha heroína

             Heloísa Prieto

        Quando se fala em um herói, sempre se pensa em um homem alto e forte, uma espécie de guerreiro, com uma espada ou arma na mão.

        Mas agora, que já tenho quarenta e cinco anos, sei que todos nós podemos ser heróis. E que muitos daqueles que nos ajudaram durante a vida, nossos heróis íntimos, quase sempre ficam guardados anônimos, em uma lista secreta no fundo de nossa memória.

        Luna foi uma das heroínas da minha infância, minha querida amiga da espécie canina dos dobermanns. Linda, negra, brilhante, musculosa, rápida como ninguém, Luna era nossa babá. Dormíamos, minha irmã Sandra e eu, com a cabeça apoiada em sua barriga macia.

        Passávamos a maior parte do tempo metidos em brincadeiras malucas no quintal, ainda não tínhamos uma televisão, e, às vezes a folia ia longe demais. Como no dia em que resolvemos dar um susto em nossa mãe e costuramos com muito cuidado uma longa “cobra” de pano verde, amarramos uma linha nela e a fizemos rastejar lentamente pelo meio do gramado.

        Mamãe ficou louca. Apanhou a vassoura para matar a “cobra” e, quando descobriu que era tudo brincadeira, virou-se furiosa, com a vassoura ainda levantada, e saiu correndo atrás de nós. No começo não conseguíamos parar de rir, mas depois ficamos com medo – mamãe estava tão brava que quase não a reconhecíamos. Foi nesse momento atroz que Luna se colocou entre nós e mamãe, protegendo-nos da vassoura. Sentou-se na nossa frente a não deixou que ela nos tocasse.

        Hoje sei que mamãe não bateria em nós com a vassoura. Jamais apanhamos. Ela sempre nos disse: “Quem bate está ensinando a bater.” Mas daquele dia em diante, sempre que mamãe ficava brava, antes de nos pôr de castigo ou simplesmente nos dar uma bronca, ela trancava Luna no canil, só para prevenir. Assim, durante boa parte de minha infância, mãe brava virou sinônimo de cachorro preso.

                       Heloísa Prieto – “Minhas três heroínas”. In: Heróis e guerreiros. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 1995.

                    Fonte: Língua Portuguesa – Coleção Mais Cores – 5° ano – 1ª ed. Curitiba 2012 – Ed. Positivo p. 128-131.

Entendendo o conto:

01 – Qual é a diferença entre a imagem de herói que as pessoas geralmente fazem e a heroína desse texto?

      O herói que as pessoas falam, não existe. Mas, já o da história é um personagem real, que quando precisamos ele está pronto a nos ajudar.

02 – Ao contar a história, a narradora resgata de sua memória fatos de sua infância. Que parte do texto comprova essa afirmação?

      “Mas agora, que já tenho quarenta e cinco anos, sei que todos nós podemos ser heróis.”

03 – Relate, resumidamente, como Luna se tornou a heroína das crianças daquela casa.

      Luna defendeu-as quando sua mãe iria bater nelas.

04 – Você concorda com as palavras da mãe das crianças? Justifique sua resposta.

          “Quem bate está ensinando a bater.”

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Não, porque ela só queria ensina-las que o que fizeram foi errado.

05 – Analise os dois trechos em que as aspas foram usadas. A seguir, justifique o uso desse sinal de pontuação em ambos os casos.

        [...] e costuramos com muito cuidado uma longa “cobra” [...] (4° parágrafo). Apanhou a vassoura para matar a “cobra” [...] (5° parágrafo).

        Ela sempre nos disse: “Quem bate está ensinado a bater”. (6° parágrafo).

      Ela é usada para ressaltar o tema empregado (não tem significado real).

a)   Que outro sinal de pontuação poderia substituir as aspas no 2° caso apresentado anteriormente?

Travessão.

b)   Reescreva esse trecho, usando o sinal de pontuação indicado por você na resposta do item anterior. Faça as devidas adequações.

Ela sempre nos disse: -- Quem bate está ensinado a bater.

06 – Nem sempre o travessão é usado para indicar a fala direta de personagens. Analise o uso da travessão no trecho a seguir. Depois, explique por que foi usado.

        “No começo não conseguíamos parar de rir, mas depois ficamos com medo – mamãe estava tão brava que quase não a reconhecíamos.”

      Porque isso é tipo um diálogo.

07 – A que substantivo do texto se referem estes adjetivos?

a)   Linda, negra, brilhante, musculosa, rápida.

Luna.

b)   Malucas.

As brincadeiras.

c)   Louca, furiosa, brava.

Mãe.

08 – Observe os pronomes em destaque no parágrafo abaixo. A seguir, resolva as questões propostas.

        “Mamãe ficou louca. Apanhou a vassoura para matar a “cobra” e, quando descobriu que era tudo brincadeira, virou-se furiosa, com a vassoura ainda levantada, e saiu correndo atrás de nós. No começo não conseguíamos parar de rir, mas depois ficamos com medo – mamãe estava tão brava que quase não a reconhecíamos. Foi nesse momento atroz que Luna se colocou entre nós e mamãe, protegendo-nos da vassoura. Sentou-se na nossa frente a não deixou que ela nos tocasse.”

a)   A quem se refere o pronome se de “virou-se”?

A mãe.

b)   Que expressão está sendo substituída pelo pronome a?

A mãe.

c)   A quem se refere o pronome nos?

As meninas.

d)   A quem se refere o pronome se de “sentou-se”?

Luna.

e)   O pronome ela está no lugar de que palavra?

Mãe.