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sexta-feira, 15 de outubro de 2021

CONTO: KHOLSTOMÉR (FRAGMENTO) - LIEV TOLSTÓI - COM GABARITO

 Conto: Kholstomér (fragmento)

           Liev Tolstói

        [...] Era inverno, época de festas. Não me deram nem de comer nem de beber durante o dia inteiro. Fiquei sabendo depois que aquilo acontecera porque o cavalariço estava bêbado. Naquele mesmo dia, o chefe veio à minha baia, deu pela falta de ração e foi-se embora xingando com os piores nomes o cavalariço, que não estava ali. No dia seguinte, acompanhado de um peão, o cavalariço trouxe feno à nossa baia; notei que ele estava especialmente pálido, abatido, tinha nas costas longas algo significativo que despertava piedade. Ele atirou feno por cima da grade, com raiva; eu ia metendo a cabeça em seu ombro, mas ele deu um murro tão dolorido no meu focinho, que me fez saltar pra trás. E ainda por cima chutou-me a barriga com a bota.

        -- Não fosse esse lazarento, nada disso tinha acontecido.

        -- Mas o que aconteceu? – perguntou o outro cavalariço.

        -- Os potros do conde ele não inspeciona, mas este ele examina duas vezes por dia.

        -- Será que deram o malhado mesmo pra ele?

        -- Se deram ou venderam, só o diabo sabe. O certo é que você pode até matar de fome todos os cavalos do conde, e nada acontece, mas você se atreva a deixar o potro dele sem ração... Deita aí, diz ele, e tome chicotada. Não tem senso cristão. Tem mais pena de animal do que de homem; logo se vê que não usa cruz no pescoço... ele mesmo contou as chicotadas que me deu, o bárbaro. O general não bate assim, ele deixou as minhas costas em carne viva... pelo visto, não tem alma cristã.

        Eu entendi bem o que eles disseram sobre os lanhões e o cristianismo, mas naquela época era absolutamente obscuro para mim o significado das palavras meu, meu potro, palavras através das quais eu percebia que as pessoas estabeleciam uma espécie de vínculo entre mim e o chefe dos estábulos. Não conseguia entender de jeito nenhum o que significava me chamarem de propriedade de um homem. As palavras “meu cavalo”, referidas a mim, um cavalo vivo, pareciam-me tão estranhas quanto as palavras “minha terra”, “meu ar”, “minha água”.

        No entanto, essas palavras exerciam uma enorme influência sobre mim. Eu não parava de pensar nisso e só muito depois de ter as mais diversas relações com as pessoas compreendi finalmente o sentido que atribuíam àquelas estranhas palavras. Era o seguinte: os homens não orientam suas vidas por atos, mas por palavras. Eles não gostam tanto da possibilidade de fazer ou não fazer alguma coisa quanto da possibilidade de falar de diferentes objetos utilizando-se de palavras que convencionam entre si. Dessas, as que mais consideram são “meu” e “minha”, que aplicam a várias coisas, seres e objetos, inclusive à terra, às pessoas e aos cavalos. Convencionaram entre si que, para cada coisa apenas um deles diria “meu”. E aquele que diz “meu” para o maior número de coisas é considerado o mais feliz, segundo esse jogo. Para que isso, não sei, mas é assim. Antes eu ficava horas a fio procurando alguma vantagem imediata nisso, mas não dei com nada.

        Muitas das pessoas que me chamavam, por exemplo, de “meu cavalo” nunca me montavam; as que o faziam eram outras, completamente diferentes. Também eram bem outras as que me alimentavam. As que cuidavam de mim, mais uma vez, não eram as mesmas que me chamavam “meu cavalo”, mas os cocheiros. Os tratadores, estranhos de modo geral. Mais tarde, depois que ampliei o círculo de minhas observações, convenci-me de que, não só em relação a nós, cavalos, o conceito de “meu” não tem nenhum outro fundamento senão o do instinto vil e animalesco dos homens, que eles chamam de sentimento ou direito de propriedade. O homem diz: “minha casa”, mas nunca mora nela, preocupa-se apenas em construí-la e mantê-la. O comerciante diz: “meu bazar”, “meu bazar de lãs”, por exemplo, mas não tem roupa feita das melhores lãs que há no seu bazar. Existem pessoas que chamam a terra de “minha”, mas nunca a viram nem andaram por ela. Existem outras que chamam de “meus” outros seres humanos, mas nenhuma vez sequer botaram os olhos sobre eles, e toda a sua relação com essas pessoas consiste em lhes causar mal. Existem homens que chamam de “minhas” as suas mulheres ou esposas, mas essas mulheres vivem com outros homens. As pessoas não aspiram a fazer na vida o que consideram bom, mas a chamar de “minhas” o maior número de coisas. Agora estou convencido de que é nisso que consiste a diferença essencial entre nós e os homens. É por isso que, sem falar das outras vantagens que temos sobre eles, já podemos dizer sem vacilar que, na escada dos seres vivos, estamos acima das pessoas; a vida das pessoas pelo menos daquelas com as quais convivi traduz-se em palavras; a nossa, em atos. E eis que foi o chefe dos estábulos que recebeu o direito de me chamar de “meu cavalo”; por isso açoitou o cavalariço. Essa descoberta me deixou profundamente impressionado e [...] levou-me a me tornar o malhado ensimesmado e sério que eu sou.

TOLSTÓI, Liev. O diabo e outras histórias. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

Fonte: Livro – Tecendo Linguagens – Língua Portuguesa – 8º ano – Ensino Fundamental – IBEP 4ª edição São Paulo 2015 p. 167-9.

Entendendo o conto:

01 – O primeiro parágrafo do texto situa o leitor. De que maneira ele faz isso?

      Esse parágrafo indica o tempo em que a narrativa se desenrola (“Era inverno, época de festas”), e localiza o leitor a respeito de onde ocorreram os fatos e explica em quais condições o cavalo vivia.

02 – Que tipo de narrador esse conto apresenta? Quem é ele?

      Narrador-personagem. Ele é assumido pela figura de um animal, um cavalo.

03 – Releia o trecho a seguir, em que a personagem principal expõe suas ideias:

        “[...] O homem diz: “minha casa”, mas nunca mora nela, preocupa-se apenas em construí-la e mantê-la. O comerciante diz: “meu bazar”, “meu bazar de lãs”, por exemplo, mas não tem roupa feita das melhores lãs que há em seu bazar. Existem pessoas que chamam a terra de “minha”, mas nunca a viram nem andaram por ela. Existem outras que chamam de “meus” outros seres humanos, mas nenhuma vez sequer botaram os olhos sobre eles, e toda a sua relação com essas pessoas consiste em lhes causar mal. [...]”

a)   Nesse trecho, que ideia é reforçada pela repetição das expressões “O homem diz”, “O comerciante diz”, “Existem pessoas” e “Existem outras”?

Os exemplos que o cavalo apresenta mostram como a postura dos seres humanos se repete, corroborando a teoria da personagem sobre a necessidade humana de ter, de possuir. A repetição dessas expressões ajuda a construir a argumentação do cavalo e também dá a ideia de generalização.

b)   Em seu caderno, indique qual das frases a seguir, retiradas do texto, corresponde à ideia apresentada no trecho:

I. E aquele que diz meu para o maior número de coisas é considerado o mais feliz [ ].

II. As pessoas não aspiram a fazer na vida o que consideram bom [...].

III. [ ] já podemos dizer sem vacilar que, na escada dos seres vivos, estamos acima das pessoas [ ].

04 – Era o dono do cavalo quem cuidava dele? O que o cavalo pensava a respeito desse fato?

      Não. O cavalo estranhava o comportamento do dono, sentia a ausência de seus cuidados e julgava estranha a maneira como os humanos lidavam com questões de propriedade, pois aquele que o chamava “meu” não era o mesmo que cuidava dele.

05 – O que o cavalo percebeu a respeito do uso que os humanos faziam da palavra meu? Que relação ele estabeleceu entre essa palavra e o conceito de felicidade?

      Ele percebeu que o uso dessa palavra era atribuído à noção de propriedade e de felicidade, ou seja, era considerado mais feliz aquele que dissesse “meu” para o maior número de coisas.

06 – O cavalo conseguia compreender esse tipo de comportamento? Em seu caderno, transcreva um trecho que comprove a sua resposta.

      Não. “Para que isso, não sei, mas é assim. Antes eu ficava horas a fio procurando alguma vantagem imediata nisso, mas não dei com nada.”

07 – Que sentido a palavra “meu” tinha para o cavalo? O que ele argumenta sobre isso?

      Para o cavalo, a palavra “meu” só fazia sentido em uma relação próxima, concreta, de afetividade. Ele argumenta que quem era seu dono não o alimentava nem montava, e isso o decepcionava.

08 – É possível afirmar que, no texto, a personagem do cavalo foi humanizada? Por quê?

      Sim, pois o cavalo apresenta sentimentos e atitudes normalmente atribuídos a seres humanos, visto que faz reflexões no decorrer do conto.

09 – No conto, há uma inversão entre o que é humano e o que é animal. Explique essa afirmação.

      O cavalo, um animal, aparece na história repleto de características que o humanizam, enquanto o ser humano é apresentado de maneira animalizada em consequência do significado que atribui à palavra “meu”, do modo como entende o conceito de propriedade e de como se relaciona com o outro e com aquilo que lhe pertence.

10 – Estabeleça relação entre o conto e o título deste capítulo: “Entre o ser e o ter”.

      O conto nos mostra que o primordial não está no “ter”, mas no “ser”.