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segunda-feira, 25 de novembro de 2024

CONTO: O DIABO - (FRAGMENTO) - LIEV TOLSTÓI - COM GABARITO

 Conto: O diabo – Fragmento

            Liev Tolstói

        “Meu Deus, meu Deus! O que é que eu faço? Será que vou acabar mesmo sucumbindo?”, dizia a si mesmo “Não posso tomar alguma medida? Ora, eu preciso fazer alguma coisa. Não, preciso agir com determinação. Não pensar nela!”, ordenava-se a si mesmo. “Não pensar!”, e de repente começava a pensar, enxergava-a diante de si, via-a à sombra dos bordos.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjjsX4HCCIMnyWJKGu2ysrdHDONLM76EJYi4wDESu4o4haH8ufH5LhLl1saPqVN8Q-VEKYyR4LcNGH581KdzFoBoC1OFAnbi7HjZsLKVuV8MIYrvvB27En3Rh-YHo77OKOIptBj8NKOCkUDjuNgWmJv1gGe35RDMV7KtYIE9OBArihuJstaNIw-DE_qJIs/s320/DEUS.png


        Lembrou-se de uma história que lera sobre um velho monge que, para fugir à tentação de uma mulher sobre a qual devia pousar a mão para curá-la, colocou a outra mão num braseiro e queimou os dedos. Refletiu. “É, estou mais bem preparado para queimar os dedos do que para sucumbir”. E, certificando-se de que não havia ninguém por perto, acendeu um fósforo e pôs um dedo na chama. “Vamos, pense nela agora”, disse com ironia. Sentiu dor, afastou bruscamente o dedo chamuscado e jogou fora o fósforo, rindo de si mesmo. “Que absurdo! Não é assim que se resolve o problema. Tenho é que tomar providências para não vê-la mais, ir embora daqui ou afastá-la. Sim, afastá-la! [...]”.

        [...] Ai, Deus, com que fascínios sua imaginação a [Stiepanida] desenhava! E isso se repetiu não uma, mais cinco, seis vezes. E quanto mais a desenhava maior era o fascínio. Ela nunca lhe parecera tão sedutora.

        Sentia que ia perdendo a vontade própria, que estava a ponto de enlouquecer. A severidade consigo mesmo não enfraquecera um minuto; ao contrário, percebia toda a vileza de seus desejos, de suas ações, porque esperá-la no bosque era uma ação. Sabia que bastaria deparar-se com ela em qualquer lugar, no escuro, e quem sabe tocá-la, para se render ao sentimento. Sabia que só a vergonha perante os outros, perante ela e perante si mesmo o continha. E sabia também que buscava circunstâncias que escondessem essa vergonha – o escuro e aquele toque, no qual essa vergonha seria abafada pela paixão animal. E por saber que era um criminoso vil,  desprezava-se e odiava-se com todas as forças da alma. Detestava-se porque ainda não se entregara. Rezava a Deus todos os dias pedindo que lhe desse forças, que o salvasse da perdição, todos os dias decidia não dar nem mais um passo, não a olhar mais, esquecê-la. Todos os dias imaginava meios de livrar-se dessa alucinação, e os punha em prática.

        Mas tudo em vão.

        [...] Tudo em sua casa era tão bom, alegre e puro, mas sua alma era suja, vil e horrível. Ievguiêni passou a noite angustiado por saber que, apesar do nojo sincero que sentia por sua fraqueza, apesar de firme intenção de romper com Stiepanida, no dia seguinte aconteceria a mesma coisa.

        “Não, impossível”, disse consigo, andando de um lado para outro no quarto. “Tem que haver alguma coisa que eu possa fazer contra isso. Meu Deus! O que fazer?” [...].

Liev Tolstói. “O diabo”. In: O diabo e outras histórias. São Paulo: Cosac Naify, 2001, p. 138-151.

Fonte: Linguagem em Movimento – língua Portuguesa Ensino Médio – vol. 1 – 1ª edição – FTD. São Paulo – 2010. Izeti F. Torralvo/Carlos A. C. Minchillo. p. 164-165.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Sucumbindo: não resistindo, cedendo.

·        Vileza: indignidade, baixeza, infâmia.

·        Bordos: árvores de cuja seiva se extrai um xarope adocicado.

·        Vil: desprezível, indigno, sem valor.

02 – Qual a principal luta interna que o protagonista vivencia? Como ele tenta superar essa batalha entre razão e desejo? A autoflagelação como forma de punição é eficaz?

      Conflitos psicológicos: O protagonista trava uma batalha constante entre seus desejos carnais e suas convicções morais. A tentação é representada pela figura de Stiepanida, que simboliza o pecado e a transgressão.

      Mecanismos de defesa: A autoflagelação é um mecanismo de defesa primitivo e ineficaz. Ela demonstra a angústia do personagem e sua incapacidade de lidar com seus impulsos de forma racional.

      A busca pela redenção: O protagonista busca constantemente a redenção, mas seus esforços são sabotados por seus próprios desejos.

03 – Qual o papel de Stiepanida na narrativa? Ela é uma tentação, um símbolo do pecado ou algo mais complexo? Como a visão do protagonista sobre ela evolui ao longo do fragmento?

      Símbolo da tentação: Stiepanida é mais do que apenas uma mulher; ela representa o pecado e a força irresistível da paixão.

      Objeto de desejo: A beleza e a sedução de Stiepanida exercem um fascínio incontrolável sobre o protagonista, intensificando sua luta interna.

      Evolução da visão: A visão do protagonista sobre Stiepanida é ambivalente. Ele a deseja ardentemente, mas também a culpa por sua própria fraqueza.

04 – O protagonista se reconhece como um "criminoso vil". Quais os dilemas morais que ele enfrenta? A sociedade da época influenciava esses dilemas?

      Dilema ético: O protagonista se sente culpado por seus desejos e pela possibilidade de trair sua esposa. Ele questiona sua própria moralidade e se vê como um pecador.

      Influência social: A sociedade da época exercia uma forte pressão moral sobre os indivíduos, reforçando a ideia do pecado e da culpa.

      Vergonha e autodesprezo: O protagonista experimenta profundos sentimentos de vergonha e autodesprezo por seus desejos, o que o leva a se isolar e a se torturar psicologicamente.

05 – A fé desempenha um papel importante na vida do protagonista. Como a religião se relaciona com sua luta interna? Ela o fortalece ou o fragiliza?

      Fé e culpa: A religião oferece ao protagonista um sistema de valores e uma busca pela redenção. No entanto, sua fé é abalada por seus próprios desejos, gerando um sentimento de culpa e angústia.

      Oração e penitência: A oração e a penitência são recursos utilizados pelo protagonista para tentar controlar seus impulsos e se aproximar de Deus.

      Falha da fé: A fé, apesar de ser importante para o protagonista, não é suficiente para superar seus conflitos internos.

06 – A linguagem utilizada por Tolstói para descrever os sentimentos do protagonista é intensa e vívida. Que recursos linguísticos são utilizados para transmitir a angústia e a confusão do personagem?

      Intensidade emocional: Tolstói utiliza uma linguagem rica em adjetivos e comparações para transmitir a intensidade dos sentimentos do protagonista.

      Fluxos de consciência: O narrador acompanha os pensamentos caóticos do protagonista, revelando a complexidade de sua mente.

      Repetição: A repetição de determinadas palavras e expressões enfatiza a obsessão do protagonista por Stiepanida e sua luta interna.

07 – A natureza humana: O fragmento levanta questões sobre a natureza humana. Qual a visão de Tolstói sobre os desejos, a fraqueza e a capacidade de mudança do ser humano?

      Intensidade emocional: Tolstói utiliza uma linguagem rica em adjetivos e comparações para transmitir a intensidade dos sentimentos do protagonista.

      Fluxos de consciência: O narrador acompanha os pensamentos caóticos do protagonista, revelando a complexidade de sua mente.

      Repetição: A repetição de determinadas palavras e expressões enfatiza a obsessão do protagonista por Stiepanida e sua luta interna.

08 – Apesar de ser um conto do século XIX, o tema da luta interna entre razão e desejo é universal. Quais as semelhanças e diferenças entre as experiências do protagonista e os dilemas que enfrentamos na sociedade contemporânea?

      Relevância contemporânea: Os conflitos internos do protagonista são universais e atemporais, pois todos nós enfrentamos dilemas semelhantes entre razão e emoção, desejo e dever.

      Complexidade da condição humana: A obra nos convida a refletir sobre a complexidade da condição humana e a importância de compreender nossos próprios desejos e motivações.

 

sexta-feira, 15 de outubro de 2021

CONTO: KHOLSTOMÉR (FRAGMENTO) - LIEV TOLSTÓI - COM GABARITO

 Conto: Kholstomér (fragmento)

           Liev Tolstói

        [...] Era inverno, época de festas. Não me deram nem de comer nem de beber durante o dia inteiro. Fiquei sabendo depois que aquilo acontecera porque o cavalariço estava bêbado. Naquele mesmo dia, o chefe veio à minha baia, deu pela falta de ração e foi-se embora xingando com os piores nomes o cavalariço, que não estava ali. No dia seguinte, acompanhado de um peão, o cavalariço trouxe feno à nossa baia; notei que ele estava especialmente pálido, abatido, tinha nas costas longas algo significativo que despertava piedade. Ele atirou feno por cima da grade, com raiva; eu ia metendo a cabeça em seu ombro, mas ele deu um murro tão dolorido no meu focinho, que me fez saltar pra trás. E ainda por cima chutou-me a barriga com a bota.

        -- Não fosse esse lazarento, nada disso tinha acontecido.

        -- Mas o que aconteceu? – perguntou o outro cavalariço.

        -- Os potros do conde ele não inspeciona, mas este ele examina duas vezes por dia.

        -- Será que deram o malhado mesmo pra ele?

        -- Se deram ou venderam, só o diabo sabe. O certo é que você pode até matar de fome todos os cavalos do conde, e nada acontece, mas você se atreva a deixar o potro dele sem ração... Deita aí, diz ele, e tome chicotada. Não tem senso cristão. Tem mais pena de animal do que de homem; logo se vê que não usa cruz no pescoço... ele mesmo contou as chicotadas que me deu, o bárbaro. O general não bate assim, ele deixou as minhas costas em carne viva... pelo visto, não tem alma cristã.

        Eu entendi bem o que eles disseram sobre os lanhões e o cristianismo, mas naquela época era absolutamente obscuro para mim o significado das palavras meu, meu potro, palavras através das quais eu percebia que as pessoas estabeleciam uma espécie de vínculo entre mim e o chefe dos estábulos. Não conseguia entender de jeito nenhum o que significava me chamarem de propriedade de um homem. As palavras “meu cavalo”, referidas a mim, um cavalo vivo, pareciam-me tão estranhas quanto as palavras “minha terra”, “meu ar”, “minha água”.

        No entanto, essas palavras exerciam uma enorme influência sobre mim. Eu não parava de pensar nisso e só muito depois de ter as mais diversas relações com as pessoas compreendi finalmente o sentido que atribuíam àquelas estranhas palavras. Era o seguinte: os homens não orientam suas vidas por atos, mas por palavras. Eles não gostam tanto da possibilidade de fazer ou não fazer alguma coisa quanto da possibilidade de falar de diferentes objetos utilizando-se de palavras que convencionam entre si. Dessas, as que mais consideram são “meu” e “minha”, que aplicam a várias coisas, seres e objetos, inclusive à terra, às pessoas e aos cavalos. Convencionaram entre si que, para cada coisa apenas um deles diria “meu”. E aquele que diz “meu” para o maior número de coisas é considerado o mais feliz, segundo esse jogo. Para que isso, não sei, mas é assim. Antes eu ficava horas a fio procurando alguma vantagem imediata nisso, mas não dei com nada.

        Muitas das pessoas que me chamavam, por exemplo, de “meu cavalo” nunca me montavam; as que o faziam eram outras, completamente diferentes. Também eram bem outras as que me alimentavam. As que cuidavam de mim, mais uma vez, não eram as mesmas que me chamavam “meu cavalo”, mas os cocheiros. Os tratadores, estranhos de modo geral. Mais tarde, depois que ampliei o círculo de minhas observações, convenci-me de que, não só em relação a nós, cavalos, o conceito de “meu” não tem nenhum outro fundamento senão o do instinto vil e animalesco dos homens, que eles chamam de sentimento ou direito de propriedade. O homem diz: “minha casa”, mas nunca mora nela, preocupa-se apenas em construí-la e mantê-la. O comerciante diz: “meu bazar”, “meu bazar de lãs”, por exemplo, mas não tem roupa feita das melhores lãs que há no seu bazar. Existem pessoas que chamam a terra de “minha”, mas nunca a viram nem andaram por ela. Existem outras que chamam de “meus” outros seres humanos, mas nenhuma vez sequer botaram os olhos sobre eles, e toda a sua relação com essas pessoas consiste em lhes causar mal. Existem homens que chamam de “minhas” as suas mulheres ou esposas, mas essas mulheres vivem com outros homens. As pessoas não aspiram a fazer na vida o que consideram bom, mas a chamar de “minhas” o maior número de coisas. Agora estou convencido de que é nisso que consiste a diferença essencial entre nós e os homens. É por isso que, sem falar das outras vantagens que temos sobre eles, já podemos dizer sem vacilar que, na escada dos seres vivos, estamos acima das pessoas; a vida das pessoas pelo menos daquelas com as quais convivi traduz-se em palavras; a nossa, em atos. E eis que foi o chefe dos estábulos que recebeu o direito de me chamar de “meu cavalo”; por isso açoitou o cavalariço. Essa descoberta me deixou profundamente impressionado e [...] levou-me a me tornar o malhado ensimesmado e sério que eu sou.

TOLSTÓI, Liev. O diabo e outras histórias. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

Fonte: Livro – Tecendo Linguagens – Língua Portuguesa – 8º ano – Ensino Fundamental – IBEP 4ª edição São Paulo 2015 p. 167-9.

Entendendo o conto:

01 – O primeiro parágrafo do texto situa o leitor. De que maneira ele faz isso?

      Esse parágrafo indica o tempo em que a narrativa se desenrola (“Era inverno, época de festas”), e localiza o leitor a respeito de onde ocorreram os fatos e explica em quais condições o cavalo vivia.

02 – Que tipo de narrador esse conto apresenta? Quem é ele?

      Narrador-personagem. Ele é assumido pela figura de um animal, um cavalo.

03 – Releia o trecho a seguir, em que a personagem principal expõe suas ideias:

        “[...] O homem diz: “minha casa”, mas nunca mora nela, preocupa-se apenas em construí-la e mantê-la. O comerciante diz: “meu bazar”, “meu bazar de lãs”, por exemplo, mas não tem roupa feita das melhores lãs que há em seu bazar. Existem pessoas que chamam a terra de “minha”, mas nunca a viram nem andaram por ela. Existem outras que chamam de “meus” outros seres humanos, mas nenhuma vez sequer botaram os olhos sobre eles, e toda a sua relação com essas pessoas consiste em lhes causar mal. [...]”

a)   Nesse trecho, que ideia é reforçada pela repetição das expressões “O homem diz”, “O comerciante diz”, “Existem pessoas” e “Existem outras”?

Os exemplos que o cavalo apresenta mostram como a postura dos seres humanos se repete, corroborando a teoria da personagem sobre a necessidade humana de ter, de possuir. A repetição dessas expressões ajuda a construir a argumentação do cavalo e também dá a ideia de generalização.

b)   Em seu caderno, indique qual das frases a seguir, retiradas do texto, corresponde à ideia apresentada no trecho:

I. E aquele que diz meu para o maior número de coisas é considerado o mais feliz [ ].

II. As pessoas não aspiram a fazer na vida o que consideram bom [...].

III. [ ] já podemos dizer sem vacilar que, na escada dos seres vivos, estamos acima das pessoas [ ].

04 – Era o dono do cavalo quem cuidava dele? O que o cavalo pensava a respeito desse fato?

      Não. O cavalo estranhava o comportamento do dono, sentia a ausência de seus cuidados e julgava estranha a maneira como os humanos lidavam com questões de propriedade, pois aquele que o chamava “meu” não era o mesmo que cuidava dele.

05 – O que o cavalo percebeu a respeito do uso que os humanos faziam da palavra meu? Que relação ele estabeleceu entre essa palavra e o conceito de felicidade?

      Ele percebeu que o uso dessa palavra era atribuído à noção de propriedade e de felicidade, ou seja, era considerado mais feliz aquele que dissesse “meu” para o maior número de coisas.

06 – O cavalo conseguia compreender esse tipo de comportamento? Em seu caderno, transcreva um trecho que comprove a sua resposta.

      Não. “Para que isso, não sei, mas é assim. Antes eu ficava horas a fio procurando alguma vantagem imediata nisso, mas não dei com nada.”

07 – Que sentido a palavra “meu” tinha para o cavalo? O que ele argumenta sobre isso?

      Para o cavalo, a palavra “meu” só fazia sentido em uma relação próxima, concreta, de afetividade. Ele argumenta que quem era seu dono não o alimentava nem montava, e isso o decepcionava.

08 – É possível afirmar que, no texto, a personagem do cavalo foi humanizada? Por quê?

      Sim, pois o cavalo apresenta sentimentos e atitudes normalmente atribuídos a seres humanos, visto que faz reflexões no decorrer do conto.

09 – No conto, há uma inversão entre o que é humano e o que é animal. Explique essa afirmação.

      O cavalo, um animal, aparece na história repleto de características que o humanizam, enquanto o ser humano é apresentado de maneira animalizada em consequência do significado que atribui à palavra “meu”, do modo como entende o conceito de propriedade e de como se relaciona com o outro e com aquilo que lhe pertence.

10 – Estabeleça relação entre o conto e o título deste capítulo: “Entre o ser e o ter”.

      O conto nos mostra que o primordial não está no “ter”, mas no “ser”.