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domingo, 10 de agosto de 2025

CONTO: BANDEIRA BRANCA - LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO - COM GABARITO

 Conto: Bandeira branca

           Luís Fernando Veríssimo

              Ele, tirolês. Ela: odalisca. Eram de culturas muito diferentes, não podia dar certo. Mas tinham só quatro anos e se entenderam. No mundo dos quatro anos todos se entendem, de um jeito ou de outro. Em vez de dançarem, pularem e entrarem no cordão, resistiram a todos os apelos desesperados das mães e ficaram sentados no chão, fazendo um montinho de confete, serpentina e poeira, até serem arrastados para casa, sob ameaças de jamais serem levados a outro baile de Carnaval.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhToRZ6ko-BJohIY-KX2Ey_JKeMKZ9L98P8WQsevq8nxMBNP7HFUn1SpDkACnMTNsVMlWd7Ruq_emlq-3FatT3iCrM9BdvrvuG-ANPEc-WKurTOUSE5iR_fRsHh-tM4Zbz3MVOP5KmXIikHkH91s1G9mjkuVFLEqHD5mNeujOy502fBROx5P768ci0LcnE/s320/clube.jpg


        Encontraram-se de novo no baile infantil do clube, no ano seguinte. Ele com o mesmo tirolês, agora apertado nos fundilhos, ela de egípcia. Tentaram recomeçar o montinho, mas dessa vez as mães reagiram e os dois foram obrigados a dançar, pular e entrar no cordão, sob ameaça de levarem uns tapas. Passaram o tempo todo de mãos dadas.

        Só no terceiro Carnaval se falaram.

        — Como é teu nome?

        — Janice. E o teu?

        — Píndaro.

        — O quê?!

        — Píndaro.

        — Que nome!

        Ele de legionário romano, ela de índia americana.

        Só no sétimo baile (pirata, chinesa) desvendaram o mistério de só se encontrarem no Carnaval e nunca se encontrarem no clube, no resto do ano. Ela morava no interior, vinha visitar uma tia no Carnaval, a tia é que era sócia.

        — Ah.

        Foi o ano em que ele preferiu ficar com a sua turma tentando encher a boca das meninas de confete, e ela ficou na mesa, brigando com a mãe, se recusando a brincar, o queixo enterrado na gola alta do vestido de imperadora. Mas quase no fim do baile, na hora do Bandeira Branca, ele veio e a puxou pelo braço, e os dois foram para o meio do salão, abraçados. E, quando se despediram, ela o beijou na face, disse "Até o Carnaval que vem" e saiu correndo.

        No baile do ano em que fizeram 13 anos, pela primeira vez as fantasias dos dois combinaram. Toureiro e bailarina espanhola. Formavam um casal! Beijaram-se muito, quando as mães não estavam olhando. Até na boca. Na hora da despedida, ele pediu:

        — Me dá alguma coisa.

        — O quê?

        — Qualquer coisa.

        — O leque.

        O leque de bailarina. Ela diria para a mãe que o tinha perdido no salão.

        No ano seguinte, ela não apareceu no baile. Ele ficou o tempo todo à procura, um havaiano desconsolado. Não sabia nem como perguntar por ela. Não conhecia a tal tia. Passara um ano inteiro pensando nela, às vezes tirando o leque do esconderijo para cheirá-lo, antegozando o momento de encontrá-la outra vez no baile. E ela não apareceu. Marcelão, o mau elemento da sua turma, tinha levado gim para misturar com o guaraná. Ele bebeu demais. Teve que ser carregado para casa. Acordou na sua cama sem lençol, que estava sendo lavado. O que aconteceu?

        — Você vomitou a alma — disse a mãe.

        — Era exatamente como se sentia. Como alguém que vomitara a alma e nunca a teria de volta. Nunca. Nem o leque tinha mais o cheiro dela.

        Mas no ano seguinte, ele foi ao baile dos adultos no clube — e lá estava ela! Quinze anos. Uma moça. Peitos, tudo. Uma fantasia indefinida.

        — Sei lá. Bávara tropical — disse ela, rindo.

        Estava diferente. Era só o corpo. Menos tímida, o riso mais alto. Contou que faltara no ano anterior porque a avó morrera, logo no Carnaval.

        — E aquela bailarina espanhola?

        — Nem me fala. E o toureiro?

        — Aposentado.

        A fantasia dele era de nada. Camisa florida, bermuda, finalmente um brasileiro. Ela estava com um grupo. Primos, amigos dos primos. Todos vagamente bávaros. Quando ela o apresentou ao grupo, alguém disse "Píndaro?!", e todos caíram na risada. Ele viu que ela estava rindo também. Deu uma desculpa e afastou-se. Foi procurar o Marcelão. O Marcelão anunciara que levaria várias garrafas presas nas pernas, escondidas sob as calças da fantasia de sultão.

        O Marcelão tinha o que ele precisava para preencher o buraco deixado pela alma. Quinze anos, pensou ele, e já estou perdendo todas as ilusões da vida, começando pelo Carnaval. Não devo chegar aos 30, pelo menos não inteiro. Passou todo o baile encostado numa coluna adornada, bebendo o guaraná clandestino do Marcelão, vendo ela passar abraçada com uma sucessão de primos e amigos de primos, principalmente um halterofilista, certamente burro, talvez até criminoso, que reduzira sua fantasia a um par de calças curtas de couro. Pensou em dizer alguma coisa, mas só o que lhe ocorreu dizer foi "pelo menos o meu tirolês era autêntico" e desistiu. Mas, quando a banda começou a tocar Bandeira Branca e ele se dirigiu para a saída, tonto e amargurado, sentiu que alguém o pegava pela mão, virou-se e era ela. Era ela, meu Deus, puxando-o para o salão. Ela enlaçando-o com os dois braços para dançarem assim, ela dizendo "não vale, você cresceu mais do que eu" e encostando a cabeça no seu ombro. Ela encostando a cabeça no seu ombro.

        Encontraram-se de novo 15 anos depois. Aliás, neste Carnaval. Por acaso num aeroporto. Ela desembarcando, a caminho do interior, para visitar a mãe. Ele embarcando para encontrar os filhos no Rio. Ela disse "quase não reconheci você sem fantasias". Ele custou a reconhecê-la. Ela estava gorda, nunca a reconheceria, muito menos de bailarina espanhola. A última coisa que ele dissera fora "preciso te dizer uma coisa", e ela dissera "no Carnaval que vem" e no Carnaval seguinte ela não aparecera. Explicou que o pai tinha sido transferido para outro estado, sabe como é, Banco do Brasil, e como ela não tinha o endereço dele, como não sabia nem o sobrenome dele e, mesmo, não teria onde tomar nota na fantasia de falsa bávara...

        — O que você ia me dizer, no outro Carnaval? – perguntou ela.

        — Esqueci – mentiu ele.

        Trocaram informações. Os dois casaram, mas ele já se separou. Os filhos dele moram no Rio, com a mãe. Ela, o marido e a filha moram em Curitiba, o marido também é do Banco do Brasil... E a todas essas ele pensando: digo ou não digo que aquele foi o momento mais feliz da minha vida, Bandeira Branca, a cabeça dela no meu ombro, e que todo o resto da minha vida será apenas o resto da minha vida? E ela pensando: como é mesmo o nome dele? Péricles. Será Péricles? Ele: digo ou não digo que não cheguei mesmo inteiro aos 30, e que ainda tenho o leque? Ela: Petrarco. Pôncio. Ptolomeu...

Extraído de: Os melhores contos brasileiros, organizado por Ítalo Mariconi. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, p. 582 a 585.

Fonte: Programa de Formação de Professores Alfabetizadores. Coletânea de textos – Módulo 1. p. 285-287.

Entendendo o conto:

01 – Qual é o papel do Carnaval na relação dos personagens principais, Janice e Píndaro?

      O Carnaval atua como o único ponto de encontro e o palco principal para o desenvolvimento da relação entre Janice e Píndaro. É o momento em que se veem anualmente, em meio à atmosfera lúdica e desinibida das festas, permitindo que a conexão entre eles floresça e se transforme ao longo dos anos, desde a infância até a vida adulta. Fora dessa época, suas vidas se desenrolam separadamente.

02 – Como a inocência da infância é retratada no início do conto?

      A inocência da infância é retratada pela capacidade de Janice e Píndaro de se entenderem e se conectarem de forma simples, apesar de suas fantasias "de culturas muito diferentes". Eles demonstram essa inocência ao resistir aos apelos maternos para brincar e, em vez disso, preferir fazer um "montinho de confete, serpentina e poeira". Essa pureza é reforçada pela narração, que afirma que "No mundo dos quatro anos todos se entendem, de um jeito ou de outro."

03 – Qual é o significado da música "Bandeira Branca" dentro do conto?

      A música "Bandeira Branca" simboliza um momento de reconciliação, rendição e, principalmente, de conexão autêntica entre Janice e Píndaro. Em diversos momentos cruciais da história, quando parecem distantes ou há um desentendimento, a canção surge como um catalisador para que se unam, simbolizando a trégua de suas diferenças e a celebração de sua ligação. O momento mais marcante é quando, aos quinze anos, Píndaro se sente amargurado e Janice o puxa para dançar ao som da música, restaurando a proximidade entre eles.

04 – Como a passagem do tempo afeta a relação e a percepção dos personagens?

      A passagem do tempo afeta a relação de Janice e Píndaro de forma ambígua e, por vezes, dolorosa. Na infância, a cada ano, a intimidade cresce, culminando em beijos e na troca do leque. No entanto, o tempo também traz a ausência, a perda de ilusões (especialmente para Píndaro após a ausência de Janice e a decepção com o riso dela sobre seu nome), e a inevitável transformação física e pessoal. No reencontro adulto, quinze anos depois, há um choque de realidade, a fantasia da juventude se esvai, e a dificuldade de reconhecer o outro fisicamente contrasta com a persistência de memórias e sentimentos.

05 – Que elemento revela a persistência do sentimento de Píndaro por Janice mesmo após anos?

      O elemento que revela a persistência do sentimento de Píndaro é o leque de bailarina que Janice lhe deu. Mesmo após sua ausência e o sofrimento que isso lhe causou, Píndaro guarda o leque, "às vezes tirando o leque do esconderijo para cheirá-lo, antegozando o momento de encontrá-la outra vez no baile". No reencontro adulto, a revelação de que ele "ainda tenho o leque" sublinha a força e a permanência de sua memória e afeto por ela.

06 – Qual é a principal diferença entre o reencontro na adolescência e o reencontro na vida adulta?

      A principal diferença é a perda da magia e da idealização. No reencontro da adolescência (aos 15 anos), apesar das transformações físicas, a conexão e a atração ainda são fortes, culminando em mais um momento significativo ao som de "Bandeira Branca", reafirmando a paixão adolescente. Já no reencontro na vida adulta, em um aeroporto, a cena é marcada pela realidade crua e pela quebra da fantasia. Há uma dificuldade de reconhecimento físico, uma desconexão com as "fantasias" do passado, e uma sensação de que a vida real, com seus casamentos e filhos, eclipsou a magia dos Carnavais. A mentira de Píndaro sobre ter esquecido o que ia dizer e a dificuldade de Janice em lembrar seu nome evidenciam essa perda.

07 – O que a reflexão final de Píndaro e Janice sobre seus pensamentos sugere sobre a natureza do amor e da memória?

      A reflexão final sugere a complexidade e a subjetividade do amor e da memória. Píndaro idealiza um momento específico ("Bandeira Branca, a cabeça dela no meu ombro") como o ápice de sua vida, indicando que o amor para ele foi um instante mágico e irrecuperável. Ele questiona se "todo o resto da minha vida será apenas o resto da minha vida?", o que aponta para uma nostalgia e uma sensação de que o melhor já passou. Janice, por outro lado, luta para lembrar o nome de Píndaro, o que pode indicar que, para ela, a intensidade daquele passado não teve o mesmo impacto duradouro ou simplesmente que a vida adulta trouxe outras prioridades. Essa dualidade entre a memória vívida e idealizada de um e a dificuldade de recordar do outro mostra como as experiências afetivas podem ser processadas e valorizadas de maneiras muito diferentes por cada indivíduo.

 

Entendendo o conto:

01 – Qual é o papel do Carnaval na relação dos personagens principais, Janice e Píndaro?

      O Carnaval atua como o único ponto de encontro e o palco principal para o desenvolvimento da relação entre Janice e Píndaro. É o momento em que se veem anualmente, em meio à atmosfera lúdica e desinibida das festas, permitindo que a conexão entre eles floresça e se transforme ao longo dos anos, desde a infância até a vida adulta. Fora dessa época, suas vidas se desenrolam separadamente.

02 – Como a inocência da infância é retratada no início do conto?

      A inocência da infância é retratada pela capacidade de Janice e Píndaro de se entenderem e se conectarem de forma simples, apesar de suas fantasias "de culturas muito diferentes". Eles demonstram essa inocência ao resistir aos apelos maternos para brincar e, em vez disso, preferir fazer um "montinho de confete, serpentina e poeira". Essa pureza é reforçada pela narração, que afirma que "No mundo dos quatro anos todos se entendem, de um jeito ou de outro."

03 – Qual é o significado da música "Bandeira Branca" dentro do conto?

      A música "Bandeira Branca" simboliza um momento de reconciliação, rendição e, principalmente, de conexão autêntica entre Janice e Píndaro. Em diversos momentos cruciais da história, quando parecem distantes ou há um desentendimento, a canção surge como um catalisador para que se unam, simbolizando a trégua de suas diferenças e a celebração de sua ligação. O momento mais marcante é quando, aos quinze anos, Píndaro se sente amargurado e Janice o puxa para dançar ao som da música, restaurando a proximidade entre eles.

04 – Como a passagem do tempo afeta a relação e a percepção dos personagens?

      A passagem do tempo afeta a relação de Janice e Píndaro de forma ambígua e, por vezes, dolorosa. Na infância, a cada ano, a intimidade cresce, culminando em beijos e na troca do leque. No entanto, o tempo também traz a ausência, a perda de ilusões (especialmente para Píndaro após a ausência de Janice e a decepção com o riso dela sobre seu nome), e a inevitável transformação física e pessoal. No reencontro adulto, quinze anos depois, há um choque de realidade, a fantasia da juventude se esvai, e a dificuldade de reconhecer o outro fisicamente contrasta com a persistência de memórias e sentimentos.

05 – Que elemento revela a persistência do sentimento de Píndaro por Janice mesmo após anos?

      O elemento que revela a persistência do sentimento de Píndaro é o leque de bailarina que Janice lhe deu. Mesmo após sua ausência e o sofrimento que isso lhe causou, Píndaro guarda o leque, "às vezes tirando o leque do esconderijo para cheirá-lo, antegozando o momento de encontrá-la outra vez no baile". No reencontro adulto, a revelação de que ele "ainda tenho o leque" sublinha a força e a permanência de sua memória e afeto por ela.

06 – Qual é a principal diferença entre o reencontro na adolescência e o reencontro na vida adulta?

      A principal diferença é a perda da magia e da idealização. No reencontro da adolescência (aos 15 anos), apesar das transformações físicas, a conexão e a atração ainda são fortes, culminando em mais um momento significativo ao som de "Bandeira Branca", reafirmando a paixão adolescente. Já no reencontro na vida adulta, em um aeroporto, a cena é marcada pela realidade crua e pela quebra da fantasia. Há uma dificuldade de reconhecimento físico, uma desconexão com as "fantasias" do passado, e uma sensação de que a vida real, com seus casamentos e filhos, eclipsou a magia dos Carnavais. A mentira de Píndaro sobre ter esquecido o que ia dizer e a dificuldade de Janice em lembrar seu nome evidenciam essa perda.

07 – O que a reflexão final de Píndaro e Janice sobre seus pensamentos sugere sobre a natureza do amor e da memória?

      A reflexão final sugere a complexidade e a subjetividade do amor e da memória. Píndaro idealiza um momento específico ("Bandeira Branca, a cabeça dela no meu ombro") como o ápice de sua vida, indicando que o amor para ele foi um instante mágico e irrecuperável. Ele questiona se "todo o resto da minha vida será apenas o resto da minha vida?", o que aponta para uma nostalgia e uma sensação de que o melhor já passou. Janice, por outro lado, luta para lembrar o nome de Píndaro, o que pode indicar que, para ela, a intensidade daquele passado não teve o mesmo impacto duradouro ou simplesmente que a vida adulta trouxe outras prioridades. Essa dualidade entre a memória vívida e idealizada de um e a dificuldade de recordar do outro mostra como as experiências afetivas podem ser processadas e valorizadas de maneiras muito diferentes por cada indivíduo.. Eram de culturas muito diferentes, não podia dar certo. Mas tinham só quatro anos e se entenderam. No mundo dos quatro anos todos se entendem, de um jeito ou de outro. Em vez de dançarem, pularem e entrarem no cordão, resistiram a todos os apelos desesperados das mães e ficaram sentados no chão, fazendo um montinho de confete, serpentina e poeira, até serem arrastados para casa, sob ameaças de jamais serem levados a outro baile de Carnaval.

        Encontraram-se de novo no baile infantil do clube, no ano seguinte. Ele com o mesmo tirolês, agora apertado nos fundilhos, ela de egípcia. Tentaram recomeçar o montinho, mas dessa vez as mães reagiram e os dois foram obrigados a dançar, pular e entrar no cordão, sob ameaça de levarem uns tapas. Passaram o tempo todo de mãos dadas.

        Só no terceiro Carnaval se falaram.

        — Como é teu nome?

        — Janice. E o teu?

        — Píndaro.

        — O quê?!

        — Píndaro.

        — Que nome!

        Ele de legionário romano, ela de índia americana.

        Só no sétimo baile (pirata, chinesa) desvendaram o mistério de só se encontrarem no Carnaval e nunca se encontrarem no clube, no resto do ano. Ela morava no interior, vinha visitar uma tia no Carnaval, a tia é que era sócia.

        — Ah.

        Foi o ano em que ele preferiu ficar com a sua turma tentando encher a boca das meninas de confete, e ela ficou na mesa, brigando com a mãe, se recusando a brincar, o queixo enterrado na gola alta do vestido de imperadora. Mas quase no fim do baile, na hora do Bandeira Branca, ele veio e a puxou pelo braço, e os dois foram para o meio do salão, abraçados. E, quando se despediram, ela o beijou na face, disse "Até o Carnaval que vem" e saiu correndo.

        No baile do ano em que fizeram 13 anos, pela primeira vez as fantasias dos dois combinaram. Toureiro e bailarina espanhola. Formavam um casal! Beijaram-se muito, quando as mães não estavam olhando. Até na boca. Na hora da despedida, ele pediu:

        — Me dá alguma coisa.

        — O quê?

        — Qualquer coisa.

        — O leque.

        O leque de bailarina. Ela diria para a mãe que o tinha perdido no salão.

        No ano seguinte, ela não apareceu no baile. Ele ficou o tempo todo à procura, um havaiano desconsolado. Não sabia nem como perguntar por ela. Não conhecia a tal tia. Passara um ano inteiro pensando nela, às vezes tirando o leque do esconderijo para cheirá-lo, antegozando o momento de encontrá-la outra vez no baile. E ela não apareceu. Marcelão, o mau elemento da sua turma, tinha levado gim para misturar com o guaraná. Ele bebeu demais. Teve que ser carregado para casa. Acordou na sua cama sem lençol, que estava sendo lavado. O que aconteceu?

        — Você vomitou a alma — disse a mãe.

        — Era exatamente como se sentia. Como alguém que vomitara a alma e nunca a teria de volta. Nunca. Nem o leque tinha mais o cheiro dela.

        Mas no ano seguinte, ele foi ao baile dos adultos no clube — e lá estava ela! Quinze anos. Uma moça. Peitos, tudo. Uma fantasia indefinida.

        — Sei lá. Bávara tropical — disse ela, rindo.

        Estava diferente. Era só o corpo. Menos tímida, o riso mais alto. Contou que faltara no ano anterior porque a avó morrera, logo no Carnaval.

        — E aquela bailarina espanhola?

        — Nem me fala. E o toureiro?

        — Aposentado.

        A fantasia dele era de nada. Camisa florida, bermuda, finalmente um brasileiro. Ela estava com um grupo. Primos, amigos dos primos. Todos vagamente bávaros. Quando ela o apresentou ao grupo, alguém disse "Píndaro?!", e todos caíram na risada. Ele viu que ela estava rindo também. Deu uma desculpa e afastou-se. Foi procurar o Marcelão. O Marcelão anunciara que levaria várias garrafas presas nas pernas, escondidas sob as calças da fantasia de sultão.

        O Marcelão tinha o que ele precisava para preencher o buraco deixado pela alma. Quinze anos, pensou ele, e já estou perdendo todas as ilusões da vida, começando pelo Carnaval. Não devo chegar aos 30, pelo menos não inteiro. Passou todo o baile encostado numa coluna adornada, bebendo o guaraná clandestino do Marcelão, vendo ela passar abraçada com uma sucessão de primos e amigos de primos, principalmente um halterofilista, certamente burro, talvez até criminoso, que reduzira sua fantasia a um par de calças curtas de couro. Pensou em dizer alguma coisa, mas só o que lhe ocorreu dizer foi "pelo menos o meu tirolês era autêntico" e desistiu. Mas, quando a banda começou a tocar Bandeira Branca e ele se dirigiu para a saída, tonto e amargurado, sentiu que alguém o pegava pela mão, virou-se e era ela. Era ela, meu Deus, puxando-o para o salão. Ela enlaçando-o com os dois braços para dançarem assim, ela dizendo "não vale, você cresceu mais do que eu" e encostando a cabeça no seu ombro. Ela encostando a cabeça no seu ombro.

        Encontraram-se de novo 15 anos depois. Aliás, neste Carnaval. Por acaso num aeroporto. Ela desembarcando, a caminho do interior, para visitar a mãe. Ele embarcando para encontrar os filhos no Rio. Ela disse "quase não reconheci você sem fantasias". Ele custou a reconhecê-la. Ela estava gorda, nunca a reconheceria, muito menos de bailarina espanhola. A última coisa que ele dissera fora "preciso te dizer uma coisa", e ela dissera "no Carnaval que vem" e no Carnaval seguinte ela não aparecera. Explicou que o pai tinha sido transferido para outro estado, sabe como é, Banco do Brasil, e como ela não tinha o endereço dele, como não sabia nem o sobrenome dele e, mesmo, não teria onde tomar nota na fantasia de falsa bávara...

        — O que você ia me dizer, no outro Carnaval? – perguntou ela.

        — Esqueci – mentiu ele.

        Trocaram informações. Os dois casaram, mas ele já se separou. Os filhos dele moram no Rio, com a mãe. Ela, o marido e a filha moram em Curitiba, o marido também é do Banco do Brasil... E a todas essas ele pensando: digo ou não digo que aquele foi o momento mais feliz da minha vida, Bandeira Branca, a cabeça dela no meu ombro, e que todo o resto da minha vida será apenas o resto da minha vida? E ela pensando: como é mesmo o nome dele? Péricles. Será Péricles? Ele: digo ou não digo que não cheguei mesmo inteiro aos 30, e que ainda tenho o leque? Ela: Petrarco. Pôncio. Ptolomeu...

Extraído de: Os melhores contos brasileiros, organizado por Ítalo Mariconi. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, p. 582 a 585.

Fonte: Programa de Formação de Professores Alfabetizadores. Coletânea de textos – Módulo 1. p. 285-287.

Entendendo o conto:

01 – Qual é o papel do Carnaval na relação dos personagens principais, Janice e Píndaro?

      O Carnaval atua como o único ponto de encontro e o palco principal para o desenvolvimento da relação entre Janice e Píndaro. É o momento em que se veem anualmente, em meio à atmosfera lúdica e desinibida das festas, permitindo que a conexão entre eles floresça e se transforme ao longo dos anos, desde a infância até a vida adulta. Fora dessa época, suas vidas se desenrolam separadamente.

02 – Como a inocência da infância é retratada no início do conto?

      A inocência da infância é retratada pela capacidade de Janice e Píndaro de se entenderem e se conectarem de forma simples, apesar de suas fantasias "de culturas muito diferentes". Eles demonstram essa inocência ao resistir aos apelos maternos para brincar e, em vez disso, preferir fazer um "montinho de confete, serpentina e poeira". Essa pureza é reforçada pela narração, que afirma que "No mundo dos quatro anos todos se entendem, de um jeito ou de outro."

03 – Qual é o significado da música "Bandeira Branca" dentro do conto?

      A música "Bandeira Branca" simboliza um momento de reconciliação, rendição e, principalmente, de conexão autêntica entre Janice e Píndaro. Em diversos momentos cruciais da história, quando parecem distantes ou há um desentendimento, a canção surge como um catalisador para que se unam, simbolizando a trégua de suas diferenças e a celebração de sua ligação. O momento mais marcante é quando, aos quinze anos, Píndaro se sente amargurado e Janice o puxa para dançar ao som da música, restaurando a proximidade entre eles.

04 – Como a passagem do tempo afeta a relação e a percepção dos personagens?

      A passagem do tempo afeta a relação de Janice e Píndaro de forma ambígua e, por vezes, dolorosa. Na infância, a cada ano, a intimidade cresce, culminando em beijos e na troca do leque. No entanto, o tempo também traz a ausência, a perda de ilusões (especialmente para Píndaro após a ausência de Janice e a decepção com o riso dela sobre seu nome), e a inevitável transformação física e pessoal. No reencontro adulto, quinze anos depois, há um choque de realidade, a fantasia da juventude se esvai, e a dificuldade de reconhecer o outro fisicamente contrasta com a persistência de memórias e sentimentos.

05 – Que elemento revela a persistência do sentimento de Píndaro por Janice mesmo após anos?

      O elemento que revela a persistência do sentimento de Píndaro é o leque de bailarina que Janice lhe deu. Mesmo após sua ausência e o sofrimento que isso lhe causou, Píndaro guarda o leque, "às vezes tirando o leque do esconderijo para cheirá-lo, antegozando o momento de encontrá-la outra vez no baile". No reencontro adulto, a revelação de que ele "ainda tenho o leque" sublinha a força e a permanência de sua memória e afeto por ela.

06 – Qual é a principal diferença entre o reencontro na adolescência e o reencontro na vida adulta?

      A principal diferença é a perda da magia e da idealização. No reencontro da adolescência (aos 15 anos), apesar das transformações físicas, a conexão e a atração ainda são fortes, culminando em mais um momento significativo ao som de "Bandeira Branca", reafirmando a paixão adolescente. Já no reencontro na vida adulta, em um aeroporto, a cena é marcada pela realidade crua e pela quebra da fantasia. Há uma dificuldade de reconhecimento físico, uma desconexão com as "fantasias" do passado, e uma sensação de que a vida real, com seus casamentos e filhos, eclipsou a magia dos Carnavais. A mentira de Píndaro sobre ter esquecido o que ia dizer e a dificuldade de Janice em lembrar seu nome evidenciam essa perda.

07 – O que a reflexão final de Píndaro e Janice sobre seus pensamentos sugere sobre a natureza do amor e da memória?

      A reflexão final sugere a complexidade e a subjetividade do amor e da memória. Píndaro idealiza um momento específico ("Bandeira Branca, a cabeça dela no meu ombro") como o ápice de sua vida, indicando que o amor para ele foi um instante mágico e irrecuperável. Ele questiona se "todo o resto da minha vida será apenas o resto da minha vida?", o que aponta para uma nostalgia e uma sensação de que o melhor já passou. Janice, por outro lado, luta para lembrar o nome de Píndaro, o que pode indicar que, para ela, a intensidade daquele passado não teve o mesmo impacto duradouro ou simplesmente que a vida adulta trouxe outras prioridades. Essa dualidade entre a memória vívida e idealizada de um e a dificuldade de recordar do outro mostra como as experiências afetivas podem ser processadas e valorizadas de maneiras muito diferentes por cada indivíduo.

sábado, 9 de agosto de 2025

CRÔNICA: RUÍDOS - LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO - COM GABARITO

 Crônica: RUÍDOS

             Luís Fernando Veríssimo

        A única linguagem verdadeiramente internacional é a linguagem do corpo. Não, não os gestos: os ruídos. A tosse, o espirro, o pum, o trombone de sovaco, você os conhece. Também é a única linguagem autêntica. Talvez por isso mesmo haja tanta preocupação em disfarçá-la, e desencorajar o seu uso em público. Desde pequenos aprendemos a reprimir, na medida do possível, as manifestações naturais do nosso corpo, e a nos sentirmos embaraçados quando não dá para controlar e o corpo se faz ouvir claramente, causando espanto e mal-estar. Ao mesmo tempo, aprendemos a nos expressar com palavras e frases – ou seja, a linguagem da dissimulação, da mentira e, ela sim, da ofensa – que, por mais bem pensadas e articuladas que sejam, não tem a honestidade de um bom arroto.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgmt_1Jkwf9WlWu1N8clUca1eBBhxQMyI_qA_UmOJZ8Zt6kL_MSMfEOjiAAlzilqmYeOcOb0BW_t4iwb5RCU3bwJeXHdwoD8Drj2w9T0nUtCdhI0sOBRkYkROVUuwZQP1dK45fo3fARXvnwj4UbdTuZByCTN4kQRpXkggiDHrPp6DrmZ6iQWQvkzcQZ1rA/s320/Sinais-e-ruidos-e1717186397125.jpg


        Valorizamos a hipocrisia, condenamos a autenticidade. E o que é mais civilizado, a palavra, que discrimina e exclui, ou o ronco da barriga, que é igual para todos e que aproxima as pessoas, além de descontrair o ambiente? Uns podem ser mais ou menos espalhafatosos, mas todos os homens espirram da mesma maneira. Os puns também são iguais – respeitadas as variações de entonação, inflexão e duração –, independentemente de raça, cor, classe ou credo religioso. E ninguém tosse com sotaque, ou com mais correção gramatical do que seu vizinho.

        E sustento a tese de que, para conferências de paz ou qualquer negociação internacional, os países deveriam mandar os "mal-educados", no bom sentido. Pessoas que estabelecessem, de saída, sua humanidade comum, fazendo os ruídos que todos os homens e todas as mulheres (menos) fazem, em qualquer lugar do mundo. A primeira meia hora dos encontros poderia ser só de troca de ruídos do corpo, para criar o clima. Depois, o entendimento viria naturalmente. Mas não, quem é que mandam para essas reuniões? Diplomatas. Logo diplomatas, educadíssimos, incapazes de chuparem um dente na frente de quem quer que seja!

        Não admira que ainda exista tanta discórdia no mundo.

Luís Fernando Veríssimo. O Mundo é Bárbaro: e o que nós temos a ver com isso. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008. p. 87-88.

Fonte: Universos – Língua Portuguesa – Ensino fundamental – Anos finais – 9º ano – Camila Sequetto Pereira; Fernanda Pinheiro Barros; Luciana Mariz. Edições SM. São Paulo. 3ª edição, 2015. p. 78.

Entendendo a crônica:

01 – De acordo com o autor, qual é a única linguagem verdadeiramente internacional e autêntica?

A – A linguagem escrita, pois supera barreiras de sotaque e pronúncia.

B – A linguagem verbal, pois permite expressar pensamentos complexos.

C – A linguagem dos gestos, pois é compreendida globalmente.

D – Os ruídos do corpo, como a tosse e o espirro.

02 – Qual é a principal crítica do autor em relação à educação social?

A – Ela não ensina as pessoas a se expressarem bem com palavras.

B – Ela valoriza a hipocrisia e condena a autenticidade dos ruídos do corpo.

C – Ela não considera a importância dos gestos em público.

D – Ela não prepara as pessoas para reuniões internacionais.

03 – A que o autor se refere quando fala em 'linguagem da dissimulação'?

A – Às palavras e frases, que podem ser usadas para mentir e ofender.

B – Ao sotaque e à correção gramatical na fala.

C – Aos ruídos do corpo que as pessoas tentam esconder.

D – À linguagem corporal não intencional.

04 – Qual é a proposta inusitada do autor para as conferências de paz?

A – Que os diplomatas sejam substituídos por pessoas 'mal-educadas' para criar um clima de humanidade comum.

B – Que os encontros comecem com uma discussão sobre os ruídos que mais aproximam as pessoas.

C – Que todas as reuniões sejam feitas sem o uso de palavras, apenas com ruídos.

D – Que diplomatas sejam ensinados a fazer os ruídos do corpo para se comunicarem melhor.

05 – Por que o autor argumenta que 'não admira que ainda exista tanta discórdia no mundo'?

A – Porque as pessoas valorizam a linguagem verbal em detrimento da linguagem autêntica dos ruídos corporais.

B – Porque os ruídos do corpo nem sempre são iguais para todos.

C – Porque as pessoas são incapazes de se comunicar de forma clara.

D – Porque os diplomatas são as pessoas mais educadas do mundo.

 

 

 

 

quarta-feira, 2 de abril de 2025

POESIA: A VERDADE - LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO - COM GABARITO

 Poesia: A Verdade

             Luís Fernando Veríssimo

        O homem é o único animal que ri dos outros. O homem é o único animal que passa por outro e finge que não vê. É o único que fala mais do que papagaio. É o único que gosta de escargots (fora, claro, o escargot). É o único que acha que Deus é parecido com ele. E é o único 

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi9EnauXGTjMj7FkiH24JexYmuS8I4opXJnEKakGpqE4bBGHy6AAgtkHKCNgSZXReD0pYlamELr36mwkh-pHlJ5y92kY9TKMTpsHZRyPWJs9jhwREt08evfq-L6s-r-1cq8dS83hH_IS0R2I1a6AhJX0kxWdSouN8RUdCp7ToUo2LpNk3HBUyjfIvxxF1c/s1600/images.jpg


...que se veste

...que veste os outros

...que despe os outros

...que faz o que gosta escondido

...que muda de cor quando se envergonha

...que se senta e cruza as pernas

...que sabe que vai morrer

...que pensa que é eterno

...que não tem uma linguagem comum a toda espécie

...que se tosa voluntariamente

...que lucra com os ovos dos outros

...que pensa que é anfíbio e morre afogado

...que tem bichos

...que joga no bicho

...que aposta nos outros

...que compra antenas

...que se compara com os outros

        O homem não é o único animal que alimenta e cuida das suas crias, mas é o único que depois usa isso para fazer chantagem emocional.

Não é o único que mata, mas é o único que vende a pele.

Não é o único que mata, mas é o único que manda matar.

E não é o único...

...que voa, mas é o único que paga para isso

...que constrói casa, mas é o único que precisa de fechadura

...que foge dos outros, mas é o único que chama isso de retirada estratégia.

...que trai, polui e aterroriza, mas é o único que se justifica

...que engole sapo, mas é o único que não faz isso pelo valor nutritivo

...que faz sexo, mas é o único que faz um boneco inflamável da fêmea

...que faz sexo, mas é o único que precisa de manual de instrução.

Poesia numa hora dessas? Porto Alegre: L&PM. p. 19.

Fonte: Livro – Português: Linguagem, 8ª Série – William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães, 4ª ed. – São Paulo: Atual Editora, 2006. p. 46.

Entendendo a poesia:

01 – Qual a principal característica do ser humano destacada no início do poema?

      O poema destaca que o ser humano é o único animal que ri dos outros, evidenciando uma faceta crítica e satírica sobre a natureza humana.

02 – Quais as ações humanas listadas no poema que evidenciam comportamentos únicos da espécie?

      O poema lista diversas ações como vestir-se e vestir outros, fazer o que gosta escondido, mudar de cor ao sentir vergonha, cruzar as pernas ao sentar, ter consciência da própria mortalidade e acreditar na eternidade, entre outras.

03 – Qual a crítica presente nos versos que abordam a relação do ser humano com outros animais?

      O poema critica a exploração animal, destacando que o ser humano é o único que vende a pele de animais que mata e que usa a relação com suas crias para chantagem emocional.

04 – Como o poema aborda a relação do ser humano com a natureza?

      O poema critica a arrogância humana ao destacar que o ser humano se considera anfíbio e morre afogado, além de ser o único que polui e aterroriza o meio ambiente, justificando suas ações.

05 – Qual a visão do poema sobre o comportamento humano em relação ao sexo?

      O poema satiriza a complexidade humana ao mencionar que o ser humano precisa de manual de instruções para o sexo e cria bonecos infláveis como representação da fêmea.

06 – Qual o tom predominante do poema?

      O tom predominante do poema é satírico e crítico, utilizando o humor para evidenciar as contradições e absurdos do comportamento humano.

07 – Qual a mensagem central do poema?

      A mensagem central do poema é uma reflexão crítica sobre a natureza humana, destacando a complexidade, as contradições e os comportamentos únicos da espécie, muitas vezes de forma satírica e irônica.

 

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

CRÔNICA: ADOLESCÊNCIA - (FRAGMENTO) - LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO - COM GABARITO

 Crônica: Adolescência – Fragmento

               Luís Fernando Veríssimo

        O apelido dele era "cascão" e vinha da infância. Uma irmã mais velha descobrira uma mancha escura que subia pela sua perna e que a mãe, apreensiva, a princípio atribuiu a seguida descobriu que era sujeira mesmo.

        -- Você não toma banho, menino?

        -- Tomo, mãe.

        -- E não se esfrega?

        Aquilo já era pedir demais. E a verdade é que muitas vezes seus banhos eram representações. Ele fechava a porta do banheiro, ligava o chuveiro, forte, para que a mãe ouvisse o barulho, mas não entrava no chuveiro. Achava que dois banhos por semana era o máximo de que uma pessoa sensata precisava. Mais do que isso era mania.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj-pcWIWXfoYSvUtkJHlKDekMOo5K15kHp6VogW2z5gSisd2XwrGzDXJeZ2v9AKb6gPRWsTCg_Qp5Igfccq436QKVFxheb4gJEuDEQoviU2dK1pNkaOeeoCY9dYpI0EZ_rqidpgPARkaisFhe61vrOdrHAuiDJUqL1SXQihyphenhypheneGRb9zvT1ZeCuJEuhQRHZk/s320/CASCAO.jpg

        O apelido pegou e, mesmo na sua adolescência, eram frequentes as alusões familiares à sua falta de banho. Ele as aguentava estoicamente. Caluniadores não mereciam resposta. Mas um dia reagiu.

        -- Sujo, não.

        -- Ah, é? – disse a irmã.

        -- E isto o que é?

        Com o dedo ela levantara do seu braço um filete de sujeira.

        -- Rosquinha não vale.

        -- Como não vale?

        -- Rosquinha, qualquer um.

        Entusiasmado com a própria tese, continuou:

        -- Desafio qualquer um nesta casa a fazer o teste da rosquinha! A irmã, que tomava dois banhos por dia, o que ele classificava de exibicionismo, aceitou o desafio.

        Ele advertiu que passar o dedo, só, não bastava. Tinha que passar com decisão. E, realmente, o dedo levantou, da dobra do braço da irmã, uma rosquinha, embora ínfima, de sujeira.

        -- Viu só – disse ele, triunfante. – E digo mais: ninguém no mundo está livre de uma rosquinha.

        -- Ah, essa não. No mundo? Manteve a tese.

        -- Ninguém.

        -- A rainha Juliana?

        -- Rosquinha. No pé. Batata.

        No dia seguinte, no entanto, a irmã estava preparada para derrubar a sua defesa.

        -- Cascão... – disse simplesmente. – A Catherine Deneuve. Ele hesitou. Pensou muito. Depois concedeu. A Catherine Deneuve, realmente, não.

        A irmã, sadicamente, ainda fingiu que queria ajudar.

        -- Quem sabe atrás da orelha?

        -- Não, não – disse o Cascão tristemente, renunciando à sua tese. – A Catherine Deneuve, nem atrás da orelha.

Luís Fernando Veríssimo. Comédias para se ler na escola. PDL – Projeto Democratização da Leitura. www.portaldetonando.com.br.

Entendendo a crônica:

01 – Qual é o apelido do personagem principal e qual a origem dele?

      O apelido do personagem principal é "Cascão". A origem do apelido vem da infância, quando sua irmã mais velha descobriu uma mancha escura em sua perna, que a mãe inicialmente pensou ser sujeira.

02 – Qual era o hábito de higiene do personagem na infância?

      O personagem não gostava de tomar banho e muitas vezes fingia que estava se banhando, ligando o chuveiro sem entrar embaixo d'água. Ele achava que dois banhos por semana eram suficientes.

03 – Como o personagem reagia às alusões familiares sobre sua falta de higiene?

      O personagem aguentava estoicamente as alusões familiares sobre sua falta de banho, considerando os caluniadores como não merecedores de resposta.

04 – Qual é o argumento do personagem sobre a sujeira?

      O personagem argumenta que ninguém no mundo está livre de ter um pouco de sujeira, usando o termo "rosquinha" para se referir a essa sujeira.

05 – Como a irmã do personagem tenta refutar seu argumento?

      A irmã do personagem tenta refutar seu argumento mencionando a rainha Juliana e a atriz Catherine Deneuve como exemplos de pessoas que, segundo ela, não teriam "rosquinhas" de sujeira.

06 – Qual é a reação do personagem ao ser confrontado com o exemplo de Catherine Deneuve?

      O personagem hesita, pensa bastante e acaba concedendo que Catherine Deneuve realmente não teria "rosquinhas" de sujeira, nem mesmo atrás da orelha, renunciando à sua tese inicial.

07 – Qual é o tom geral da crônica de Luís Fernando Veríssimo?

      O tom geral da crônica é humorístico e irônico. Veríssimo utiliza uma situação cotidiana e familiar para fazer uma reflexão sobre hábitos de higiene, argumentos e a dificuldade de admitir quando estamos errados.

 

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

CRÔNICA: A CIDADE TRAÇADA - LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO - COM GABARITO

 Crônica: A cidade traçada

              Luís Fernando Veríssimo

        Toda a cidade que tem um rio é bela. Porto Alegre exagera, esparrama-se ao longo de vários que, de lambuja, se transformam num lago imenso. Com toda essa lindeza, gosto de tomar nossa cidade como modelo e temática. Tenho desenhado como ela era, como ela é e como a desejo.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjj-ryHhYm5mTC5cGtIpfkMRTD-tqTO_cOb5YEspgAG09B0Dqk5FjwKm6aSmpZeBTgzypdtu9A3sEYhdwI7rkBnYPQa3Yv3QZrIlPI9gj6gu1c1VOj1dUoExsKVPPOG4HTC9TMCKMGu7XCn1LhcXwVPJVPcCt1KCcV-mxPjUJ8yC8EyTX3542PrRpCKrP4/s320/PORTO%20ALEGRE.jpg


        Pode parecer estranho atribuir sexo a uma cidade. Porto Alegre, que tem alma, eu vejo feminina. Caprichosa e temperamental, é a um só tempo provinciana e avançadinha, mantendo hábitos recatados, porém sem nunca perder o compasso com o nosso tempo. Metrópole, é neurótica, opiniática e exigente. Também aldeia, é pudica, singela e dócil.

        Sensualmente lânguida, se deita estirada no seu sinuoso contorno fluvial. Dominadora e envolvente, avança voraz sobre os morros, pelos vales e pelas planuras. Impetuosa, lança-se ao alto em pontas de concreto. Fogosa, vibra entrelaçada por artérias dinâmicas e congestionadas. Carola, reza com fé na Festa dos Navegantes. Peleadora, trabalha feito louca nas oficinas do quarto distrito. Ciumenta, esconde com o muro seu perfil mais lindo.

        É faceira quando se veste com as flores do jacarandá, anunciando a primavera, e é manhosa ao se derreter nos dias tórridos de verão. Romântica, se pinta toda nos fins de tarde, no outono. Malvada, venta fria e cinzenta nas noites de inverno.

        Quando aqui cheguei, nos tempos do bonde, do rolo compressor e das balas esportivas, Porto Alegre ainda mantinha, ao menos no centro, um certo ar tradicional que lembrava Buenos Aires. Com o tempo, foi se tornando mais interesseira, substituindo seus cafés de esquina pelas agências financeiras. Além da inocência, perdeu nos últimos anos muito de sua identidade original. As matinês e as anedotas de rua, por exemplo, foram sumindo, dando lugar aos cômicos da tevê. Mas foi ganhando outras coisas que a fazem moderna, adulta e madura, como a Feira do Livro, espaços de cultura, museus, teatros, galerias de arte.

        Tanto o LFV [Luís Fernando Veríssimo] como eu conhecemos outras, é verdade. mas cada um na sua, elegemos este porto como nosso ponto de referência. Traça-la, para nós, é literalmente e graficamente um ato de amor.

VERÍSSIMO, Luís Fernando; FONSECA, Joaquim da. Traçando Porto Alegre. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1994, p. 7-8.

Fonte: livro Português: Língua e Cultura – Carlos Alberto Faraco – vol. único – Ensino Médio – 1ª edição – Base Editora – Curitiba, 2003. p. 366-367.

Entendendo a crônica:

01 – Qual a principal característica da cidade de Porto Alegre, segundo o autor?

      O autor destaca a beleza da cidade, com seus rios que se transformam em um lago imenso. Além disso, ele a descreve como feminina, caprichosa, temperamental, provinciana e avançadinha, capaz de ser metrópole e aldeia ao mesmo tempo.

02 – Que tipo de comparações e personificações o autor utiliza para descrever Porto Alegre?

      O autor utiliza diversas comparações e personificações para descrever a cidade. Ele a compara a uma mulher sensual e lânguida, que se deita em seu contorno fluvial, e a descreve como dominadora, envolvente, impetuosa, fogosa, carola, peleadora e ciumenta.

03 – Como Porto Alegre se transformou ao longo do tempo, de acordo com o autor?

      O autor relata que, quando chegou à cidade, ela ainda mantinha um ar tradicional que lembrava Buenos Aires. Com o tempo, Porto Alegre se tornou mais interesseira, substituindo seus cafés por agências financeiras e perdendo parte de sua identidade original, como as matinês e as anedotas de rua.

04 – O que a cidade ganhou com essa transformação, segundo o autor?

      Apesar de perder elementos de sua identidade original, Porto Alegre ganhou outras coisas que a tornaram moderna, adulta e madura, como a Feira do Livro, espaços de cultura, museus, teatros e galerias de arte.

05 – Qual o significado da expressão "traçá-la" no contexto da crônica?

      No contexto da crônica, "traçá-la" significa desenhar a cidade, tanto no sentido literal quanto no sentido figurado. Para o autor e o LFV, traçar Porto Alegre é um ato de amor, uma forma de expressar seu carinho e sua conexão com a cidade.