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quinta-feira, 14 de agosto de 2025

CRÔNICA: MEMÓRIA DO LIVROS - JOÃO UBALDO RIBEIRO - COM GABARITO

 Crônica: Memória de Livros

              João Ubaldo Ribeiro

        Aracaju, a cidade onde nós morávamos no fim da década de 40, começo da de 50, era a orgulhosa capital de Sergipe, o menor Estado brasileiro (mais ou menos do tamanho da Suíça). Essa distinção, contudo, não lhe tirava o caráter de cidade pequena, provinciana e calma, à boca de um rio e a pouca distância de praias muito bonitas. Sabíamos do mundo pelo rádio, pelos cinejornais que acompanhavam todos os filmes e pelas revistas nacionais. A televisão era tida por muitos como mentira de viajantes, só alguns loucos andavam de avião, comprávamos galinhas vivas e verduras trazidas à nossa porta nas costas de mulas, tínhamos grandes quintais e jardins, meninos não discutiam com adultos, mulheres não usavam calças compridas nem dirigiam automóveis e vivíamos tão longe de tudo que se dizia que, quando o mundo acabasse, só íamos saber uns cinco dias depois.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgv7-kb8Z4nDYXVSQnHnSvOqtictbxQ7wC5T5mSkvYLo01JFRDjAp59k2W3BsSEOMf00drccGSm78W7Iq1hxTSfXoHH5IZ2qcGoMpM1sh6hQrCkJYgnIVTAwmlGO9-BqOoaU-N0sEsiQW4n7lded6E1i7gP4FAwnJshx9ReB2SvctNCfpQgxSBY7HRdYPE/s1600/images.jpg


        Mas vivíamos bem. Morávamos sempre em casarões enormes, de grandes portas, varandas e tetos altíssimos, e meu pai, que sempre gostou das últimas novidades tecnológicas, trazia para casa quanto era tipo de geringonça moderna que aparecia. Fomos a primeira família da vizinhança a ter uma geladeira e recebemos visitas para examinar o impressionante armário branco que esfriava tudo. Quando surgiram os primeiros discos long-play, já tínhamos a vitrola apropriada e meu pai comprava montanhas de gravações dos clássicos, que ele próprio se recusava a ouvir, mas nos obrigava a escutar e comentar.

        Nada, porém, era como os livros. Toda a família sempre foi obcecada por livros e às vezes ainda arma brigas ferozes por causa de livros, entre acusações mútuas de furto ou apropriação indébita. Meu avô furtava livros de meu pai, meu pai furtava livros de meu avô, eu furtava livros de meu pai e minha irmã até hoje furta livros de todos nós. A maior casa onde moramos, mais ou menos a partir da época em que aprendi a ler, tinha uma sala reservada para a biblioteca e gabinete de meu pai, mas os livros não cabiam nela — na verdade, mal cabiam na casa. E, embora os interesses básicos dele fossem Direito e História, os livros eram sobre todos os assuntos e de todos os tipos. Até mesmo ciências ocultas, assunto que fascinava meu pai e fazia com que ele às vezes se trancasse na companhia de uns desenhos esotéricos, para depois sair e dirigir olhares magnéticos aos circunstantes, só que ninguém ligava e ele desistia temporariamente.

        Havia uns livros sobre hipnotismo e, depois de ler um deles, hipnotizei um peru que nos tinha sido dado para um Natal e que, como jamais ninguém lembrou de assá-lo, passou a residir no quintal e, não sei por que, era conhecido como Lúcio. Minha mãe se impressionou porque, assim que comecei meus passes hipnóticos, Lúcio estacou, pareceu engolir em seco e ficou paralisado, mas meu pai — talvez porque ele próprio nunca tenha conseguido hipnotizar nada, apesar de inúmeras tentativas — declarou que aquilo não tinha nada com hipnotismo, era porque Lúcio era na verdade uma perua e tinha pensado que eu era o peru. Não sei bem dizer como aprendi a ler. A circulação entre os livros era livre (tinha que ser, pensando bem, porque eles estavam pela casa toda, inclusive na cozinha e no banheiro), de maneira que eu convivia com eles todas as horas do dia, a ponto de passar tempos enormes com um deles aberto no colo, fingindo que estava lendo e, na verdade, se não me trai a vã memória, de certa forma lendo, porque quando havia figuras, eu inventava as histórias que elas ilustravam e, ao olhar para as letras, tinha a sensação de que entendia nelas o que inventara. Segundo a crônica familiar, meu pai interpretava aquilo como uma grande sede de saber cruelmente insatisfeita e queria que eu aprendesse a ler já aos quatros anos, sendo demovido a muito custo, por uma pedagoga amiga nossa. Mas, depois que completei seis anos, ele não aguentou, fez um discurso dizendo que eu já conhecia todas as letras e agora era só uma questão de juntá-las e, além de tudo, ele não suportava mais ter um filho analfabeto. Em seguida, mandou que eu vestisse uma roupa de sair, foi comigo a uma livraria, comprou uma cartilha, uma tabuada e um caderno e me levou à casa de D. Gilete.

        — D. Gilete — disse ele, apresentando-me a uma senhora de cabelos presos na nuca, óculos redondos e ar severo —, este rapaz já está um homem e ainda não sabe ler. Aplique as regras.

        "Aplicar as regras", soube eu muito depois, com um susto retardado, significava, entre outras coisas, usar a palmatória para vencer qualquer manifestação de falta de empenho ou burrice por parte do aluno. Felizmente D. Gilete nunca precisou me aplicar as regras, mesmo porque eu de fato já conhecia a maior parte das letras e juntá-las me pareceu facílimo, de maneira que, quando voltei para casa nesse mesmo dia, já estava começando a poder ler. Fui a uma das estantes do corredor para selecionar um daqueles livrões com retratos de homens carrancudos e cenas de batalhas, mas meu pai apareceu subitamente à porta do gabinete, carregando uma pilha de mais de vinte livros infantis.

        — Esses daí agora não — disse ele. — Primeiro estes, para treinar. Estas livrarias daqui são umas porcarias, só achei estes. Mas já encomendei mais, esses daí devem durar uns dias. Duraram bem pouco, sim, porque de repente o mundo mudou e aquelas paredes cobertas de livros começaram a se tornar vivas, frequentadas por um número estonteante de maravilhas, escritas de todos os jeitos e capazes de me transportar a todos os cantos do mundo e a todos os tipos de vida possíveis. Um pouco febril às vezes, chegava a ler dois ou três livros num só dia, sem querer dormir e sem querer comer porque não me deixavam ler à mesa — e, pela primeira vez em muitas, minha mãe disse a meu pai que eu estava maluco, preocupação que até hoje volta e meia ela manifesta.

        — Seu filho está doido — disse ela, de noite, na varanda, sem saber que eu estava escutando.

        — Ele não larga os livros. Hoje ele estava abrindo os livros daquela estante que vai cair para cheirar.

        — Que é que tem isso? É normal, eu também cheiro muito os livros daquela estante. São livros velhos, alguns têm um cheiro ótimo.

        — Ele ontem passou a tarde inteira lendo um dicionário.

        — Normalíssimo. Eu também leio dicionários, distrai muito. Que dicionário ele estava lendo?

        — O Lello.

        — Ah, isso é que não pode. Ele tem que ler o Laudelino Freire, que é muito melhor. Eu vou ter uma conversa com esse rapaz, ele não entende nada de dicionários. Ele está cheirando os livros certos, mas lendo o dicionário errado, precisa de orientação.

        Sim, tínhamos muitas conversas sobre livros. Durante toda a minha infância, havia dois tipos básicos de leitura lá em casa: a compulsória e a livre, esta última dividida em dois subtipos — a livre propriamente dita e a incerta. A compulsória variava conforme a disposição de meu pai. Havia a leitura em voz alta de poemas, trechos de peças de teatro e discursos clássicos, em que nossa dicção e entonação eram invariavelmente descritas como o pior desgosto que ele tinha na vida. Líamos Homero, Camões, Horácio, Jorge de Lima, Sófocles, Shakespeare, Euclides da Cunha, dezenas de outros. Muitas vezes não entendíamos nada do que líamos, mas gostávamos daquelas palavras sonoras, daqueles conflitos estranhos entre gente de nomes exóticos, e da expressão comovida de minha mãe, com pena de Antígona e torcendo por Heitor na Ilíada. Depois de cada leitura, meu pai fazia sua palestra de rotina sobre nossa ignorância e, andando para cima e para baixo de pijama na varanda, dava uma aula grandiloquente sobre o assunto da leitura, ou sobre o autor do texto, aula esta a que os vizinhos muitas vezes vinham assistir. Também tínhamos os resumos — escritos ou orais — das leituras, as cópias (começadas quando ele, com grande escândalo, descobriu que eu não entendia direito o ponto-e-vírgula e me obrigou a copiar sermões do Padre Antônio Vieira, para aprender a usar o ponto-e-vírgula) e os trechos a decorar. No que certamente é um mistério para os psicanalistas, até hoje não só os sermões de Vieira como muitos desses autores forçados pela goela abaixo estão entre minhas leituras favoritas. (Em compensação, continuo ruim de ponto-e-vírgula).

        Mas o bom mesmo era a leitura livre, inclusive porque oferecia seus perigos. Meu pai usava uma técnica maquiavélica para me convencer a me interessar por certas leituras. A circulação entre os livros permanecia absolutamente livre, mas, de vez em quando, ele brandia um volume no ar e anunciava com veemência:

        — Este não pode! Está proibido! Arranco as orelhas do primeiro que chegar perto deste daqui!

        O problema era que não só ele deixava o livro proibido bem à vista, no mesmo lugar de onde o tirara subitamente, como às vezes a proibição era para valer. A incerteza era inevitável e então tínhamos momentos de suspense arrasador (meu pai nunca arrancou as orelhas de ninguém, mas todo mundo achava que, se fosse por uma questão de princípios, ele arrancaria), nos quais lemos Nossa vida sexual do Dr. Fritz Kahn, Romeu e Julieta; O livro de San Michèle, Crônica escandalosa dos doze Césares, Salambô, O crime do Padre Amaro — enfim, dezenas de títulos de uma coleção estapafúrdia, cujo único ponto em comum era o medo de passarmos o resto da vida sem orelhas — e hoje penso que li tudo o que ele queria disfarçadamente que eu lesse, embora à custa de sobressaltos e suores frios.

        Na área proibida, não pode deixar de ser feita uma menção aos pais de meu pai, meus avós João e Amália. João era português, leitor anticlerical de Guerra Junqueiro e não levava o filho muito a sério intelectualmente, porque os livros que meu pai escrevia eram finos e não ficavam em pé sozinhos. "Isto é merda", dizia ele, sopesando com desdém uma das monografias jurídicas de meu pai. "Estas tripinhas que não se sustentam em pé não são livros, são uns folhetos". Já minha avó tinha mais respeito pela produção de meu pai, mas achava que, de tanto estudar altas ciências, ele havia ficado um pouco abobalhado, não entendia nada da vida. Isto foi muito bom para a expansão dos meus horizontes culturais, porque ela não só lia como deixava que eu lesse tudo o que ele não deixava, inclusive revistas policiais oficialmente proibidas para menores. Nas férias escolares, ela ia me buscar para que eu as passasse com ela, e meu pai ficava preocupado.

        — D. Amália — dizia ele, tratando-a com cerimônia na esperança de que ela se imbuísse da necessidade de atendê-lo —, o menino vai com a senhora, mas sob uma condição. A senhora não vai deixar que ele fique o dia inteiro deitado, cercado de bolachinhas e docinhos e lendo essas coisas que a senhora lê.

        — Senhor doutor — respondia minha avó —, sou avó deste menino e tua mãe. Se te criei mal, Deus me perdoe, foi a inexperiência da juventude. Mas este cá ainda pode ser salvo e não vou deixar que tuas maluquices o infelicitem. Levo o menino sem condição nenhuma e, se insistes, digo-te muito bem o que podes fazer com tuas condições e vê lá se não me respondes, que hoje acordei com a ciática e não vejo a hora de deitar a sombrinha ao lombo de um que se atreva a chatear-me. Passar bem, Senhor doutor.

        E assim eu ia para a casa de minha avó Amália, onde ela comentava mais uma vez com meu avô como o filho estudara demais e ficara abestalhado para a vida, e meu avô, que queria que ela saísse para poder beber em paz a cerveja que o médico proibira, tirava um bolo de dinheiro do bolso e nos mandava comprar umas coisitas de ler — Amália tinha razão, se o menino queria ler que lesse, não havia mal nas leituras, havia em certos leitores. E então saíamos gloriosamente, minha avó e eu, para a maior banca de revistas da cidade, que ficava num parque perto da casa dela e cujo dono já estava acostumado àquela dupla excêntrica. Nós íamos chegando e ele perguntava:

        — Uma de cada?

        — Uma de cada — confirmava minha avó, passando a superintender, com os olhos brilhando, a colheita de um exemplar de cada revista, proibida ou não-proibida, que ia formar uma montanha colorida deslumbrante, num carrinho de mão que talvez o homem tivesse comprado para atender a fregueses como nós.

        — Mande levar. E agora aos livros!

        Depois da banca, naturalmente, vinham os livros. Ela acompanhava certas coleções, histórias de Raffles, o ladrão de casaca, Ponson du Terrail, Sir Walter Scott, Edgar Wallace, Michel Zevaco, Emil Salgari, os Dumas e mais uma porção de outros, em edições de sobrecapas extravagantemente coloridas que me deixavam quase sem fôlego. Na livraria, ela não só se servia dos últimos lançamentos de seus favoritos, como se dirigia imperiosamente à seção de literatura para jovens e escolhia livros para mim, geralmente sem ouvir minha opinião — e foi assim que li Karl May, Edgar Rice Burroughs, Robert Louis Stevenson, Swift e tantos mais, num sofá enorme, soterrado por revistas, livros e latas de docinhos e bolachinhas, sem querer fazer mais nada, absolutamente nada, neste mundo encantado. De vez em quando, minha avó e eu mantínhamos tertúlias literárias na sala, comentando nossos vilões favoritos e nosso herói predileto, o Conde de Monte Cristo — Edmond de Nantès! como dizia ela, fremindo num gesto dramático. E meu avô, bebendo cerveja escondido lá dentro, dizia "ai, ai, esses dois se acham letrados, mas nunca leram o Guerra Junqueiro".

        De volta à casa de meus pais, depois das férias, o problema das leituras compulsórias às vezes se agravava, porque meu pai, na certeza (embora nunca desse ousadia de me perguntar), de que minha avó me tinha dado para ler tudo o que ele proibia, entrava numa programação delirante, destinada a limpar os efeitos deletérios das revistas policiais. Sei que parece mentira e não me aborreço com quem não acreditar (quem conheceu meu pai acredita), mas a verdade é que, aos doze anos, eu já tinha lido, com efeitos às vezes surpreendentes, a maior parte da obra traduzida de Shakespeare, O elogio da loucura, As décadas de Tito Lívio, D. Quixote (uma das ilustrações de Gustave Doré, mostrando monstros e personagens saindo dos livros de cavalaria do fidalgo me fez mal, porque eu passei a ver as mesmas coisas saindo dos livros da casa), adaptações especiais do Fausto e da Divina comédia, a Ilíada, a Odisséia, vários ensaios de Montaigne, Poe, Alexandre Herculano, José de Alencar, Machado de Assis, Monteiro Lobato, Dickens, Dostoievski, Suetônio, os Exercícios espirituais de Santo Inácio de Loyola e mais não sei quantos outros clássicos, muitos deles resumidos, discutidos ou simplesmente lembrados em conversas inflamadas, dos quais nunca me esqueço e a maior parte dos quais faz parte íntima de minha vida.

        Fico pensando nisso e me pergunto: não estou imaginando coisas, tudo isso poderia ter realmente acontecido? Terei tido uma infância normal? Acho que sim, também joguei bola, tomei banho nu no rio, subi em árvores e acreditei em Papai Noel. Os livros eram brincadeira como outra qualquer, embora certamente a melhor de todas. Quando tenho saudades da infância, as saudades são daquele universo que nunca volta, dos meus olhos de criança vendo tanto que se entonteciam, dos cheiros dos livros velhos, da navegação infinita pela palavra, de meu pai, de meus avós, do velho casarão mágico de Aracaju.

Extraído de: Um brasileiro em Berlim. Editora Nova Fronteira, 1995.

Fonte: Programa de Formação de Professores Alfabetizadores. Coletânea de textos – Módulo 1. p. 70-74.

Entendendo a crônica:

01 – Como o narrador descreve Aracaju no final da década de 40 e começo da de 50?

      Aracaju é descrita como a orgulhosa capital de Sergipe, o menor estado brasileiro, mas com o caráter de cidade pequena, provinciana e calma, localizada à boca de um rio e perto de praias bonitas. O narrador enfatiza que o mundo era conhecido principalmente pelo rádio, cinejornais e revistas nacionais, com a televisão sendo vista com ceticismo e a vida sendo muito menos acelerada.

02 – O que diferenciava a família do narrador em termos de novidades tecnológicas?

      A família do narrador estava sempre à frente em termos de tecnologia. Eles foram a primeira família da vizinhança a ter uma geladeira e possuíam a vitrola apropriada para os primeiros discos long-play, mesmo que o pai não ouvisse os clássicos que comprava para os filhos.

03 – Qual era a grande paixão e causa de "brigas ferozes" na família do narrador?

      A grande paixão e causa de brigas na família era a obsessão por livros. Membros da família "furtavam" livros uns dos outros, incluindo avô, pai, narrador e irmã, em um ciclo contínuo de apropriação indébita de volumes.

04 – Descreva a organização e a quantidade de livros na casa do narrador.

      A maior casa onde moraram tinha uma sala reservada para a biblioteca e o gabinete do pai, mas os livros não cabiam nela, mal cabiam na casa. Eles estavam espalhados por todos os cômodos, inclusive na cozinha e no banheiro, cobrindo todos os assuntos, desde Direito e História até ciências ocultas.

05 – Qual foi a experiência do narrador com o hipnotismo e como seu pai reagiu a isso?

      Após ler um livro sobre hipnotismo, o narrador hipnotizou um peru chamado Lúcio que morava no quintal. Sua mãe ficou impressionada com a paralisia do peru, mas seu pai, que nunca havia conseguido hipnotizar nada, declarou que não era hipnotismo, e sim que Lúcio, sendo uma perua, pensou que o narrador era um peru.

06 – Como o narrador aprendeu a ler e qual a intervenção de seu pai nesse processo?

      O narrador convivia com os livros o tempo todo, fingindo ler e inventando histórias a partir das figuras. Aos seis anos, seu pai, cansado de ter um "filho analfabeto", levou-o a uma livraria para comprar material de estudo e o encaminhou a Dona Gilete, uma professora com fama de "aplicar as regras" (usar a palmatória). Felizmente, o narrador achou fácil juntar as letras e começou a ler rapidamente.

07 – Quais eram os dois tipos básicos de leitura praticados na casa do narrador durante sua infância?

      Havia a leitura compulsória e a leitura livre. A leitura livre era subdividida em "livre propriamente dita" e "incerta".

08 – Explique a "técnica maquiavélica" que o pai usava para incentivar certas leituras no filho.

      O pai usava uma técnica de proibição estratégica. Ele brandia um livro no ar, declarava-o proibido ("Este não pode! Está proibido! Arranco as orelhas do primeiro que chegar perto deste daqui!") e o deixava à vista, sabendo que a proibição despertaria a curiosidade do filho e o levaria a ler o livro, muitas vezes à custa de "sobressaltos e suores frios".

09 – Qual era a visão dos avós paternos do narrador sobre o conhecimento e os livros?

      O avô João, português e leitor anticlerical, não levava a sério os livros finos do pai do narrador, chamando-os de "folhetos". Já a avó Amália, embora respeitasse a produção do filho, achava que ele havia ficado "abobalhado" por tanto estudar. Ela, por outro lado, deixava o narrador ler tudo o que o pai proibia, incluindo revistas policiais, e o levava para comprar "uma de cada" revista e muitos livros.

10 – Como o narrador resume sua infância e qual o seu sentimento de saudade?

      O narrador reflete que teve uma infância normal, brincando de bola, nadando no rio e subindo em árvores, e que os livros eram a "melhor de todas" as brincadeiras. Sua saudade da infância é do universo que nunca volta, dos cheiros dos livros velhos, da navegação infinita pela palavra, e das lembranças de seus pais, avós e do "velho casarão mágico de Aracaju".

 

 

CRÔNICA: COLHENDO OS FRUTOS DA GLÓRIA - JOÃO UBALDO RIBEIRO - COM GABARITO

 Crônica: Colhendo os frutos da glória

               João Ubaldo Ribeiro

        Um dos maiores problemas que enfrento na minha profissão é que não tenho cara de escritor.

        Aliás, não sei bem que cara tenho, mas sei que não presta para a maioria das atividades que exerço ou já exerci. Lembro-me de que, quando era professor, sempre tive dificuldade em convencer novos alunos de que era o professor. Um, chamado Bruno Maracajá e hoje meu amigo (um dos meus tipos inesquecíveis, pela razão que se segue), teve uma crise incontrolável de riso quando entrou numa sala de cursinho para vestibular, perguntou quem era o professor de inglês e me apontaram. Foi meio chato e, se não se tratasse de cursinho para vestibular, não haveria santo que desse um jeito de o Bruno passar em inglês sem pelo menos saber a obra completa de Shakespeare de cor.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjxxf3xKPv2JN2GMP_aNMEE_b26RYvxbu63uaAiKpX2vUuYPxgqvOL8z1-2EzKBGUj-5wYuLtCWK2FP7OkKLvYszvhnym8uyao83VhWXljFn6LFVEwdHU0eicDL23GYHgr4T1yTeEHv2-icNu2vNfkU4fxxIkPV9WlCf3BIweVPIoPh7YSnJJpjTBhhfFI/s320/dia-nacional-do-escritor-como-presentear-um-literato.jpg


        Quando eu era jornalista em Salvador e metido a celebridade municipal, escrevendo já colunas e artigos assinados, Seu Severino, vizinho nosso, sorria no elevador com bondosa malícia, toda vez que perguntava se era eu mesmo quem havia escrito tal ou qual artigo e eu respondia que sim. Ele tinha certeza de que o autor era meu pai e acho que até hoje tem. Outra vez, em crise de indignação cívica combinada com um acesso de pernosticismo — síndrome de que nenhum baiano está livre vez por outra, e alguns permanentemente —, escrevi um artigo altamente polissilábico e proparoxítono contra um figurão, que, naturalmente, não gostou. Mas não veio tomar satisfações a mim, foi buscá-la furioso junto a meu pai; porque estava seguro de que "aquele rapaz não tem condição de escrever um artigo desse nível, nem muito menos coragem".

        Também não posso resistir à porta da conferência. Bem verdade que, à já natural falta de cara, somei ainda o estar barbado e meio andrajoso (quando minha mulher não me lembra de mudar as calças, eu me esqueço — ela já testou e eu entrava no Guinness fácil).Tinha vindo de Itaparica de mau humor, como sempre fico quando saio de lá, só atravessei a baía por honra da firma, porque assumira o compromisso. Mas aí, auditório cheio (já estive em voga, era especialista em generalidades esquerdóides que agradavam muito as plateias naquela época, embora a gente fosse em cana bastante) e tudo mais, cheguei à entrada, dei boa-noite, fui passando, a mocinha me barrou.

        — Cartão, por favor.

        — Cartão, que cartão?

        — O cartão que dá direito ao ingresso.

        — Não me deram cartão nenhum. Eu estava em Itaparica e…

        — Lamento muito, mas sem cartão o senhor não vai poder entrar.

        — Eu…

        — O senhor, por favor, quer dar licença? As pessoas atrás estão querendo entrar e o senhor está atrapalhando a passagem.

        Fiquei com preguiça de explicar que eu era o conferencista e — por que não confessar, oh mesquinharia humana — também um pouco com vontade de ver a cara da mocinha depois que me descobrissem ali à porta, barrado e rejeitado. Como de fato fui descoberto, uns vinte minutos mais tarde, quando a chamada mesa diretora dos trabalhos começou a pedir desculpas ao público porque o palestrante, apesar de ter confirmado várias vezes sua aquiescência em vir, havia deploravelmente faltado ao compromisso. Dei um pulinho do banco onde estava derreado, passei pela mocinha sem ela ter tempo de me deter, entrei, pedi a palavra e comuniquei à mesa que a culpa era dela, por não ter mandado o cartão.

        Para a atividade de escritor, a falta de uma cara apropriada é gravíssima, porque as pessoas são ainda mais rigorosas para com caras de escritores do que para com quaisquer outros tipos de cara. Cara de escritor influencia até a crítica, e é por isso que aqueles entre nós que são deficientes nesse setor ficam muito incomodados com problemas de cara. O Fernando Sabino mesmo, cujo caso não é tão sério quanto o meu, mas inspira cuidados, se queixa amargamente de uma recepcionista de hotel que não acreditou que ele era Fernando Sabino, o es-cri-tor, e passou o tempo todo chamando-o de "um homônimo". O grande poeta Almeidinha, queridíssimo presidente da famosa confraria etílica dos Amigos do Museu em São Paulo, de que sou sócio correspondente, me confundiu comigo mesmo. Fazia tempo que a gente não se via e, quando ele apareceu, fui-lhe ao encontro de braços abertos.

        — Grande Almeidinha! — exultei. — Que alegria! Valeu a pena vir a São Paulo só para estar com você!

        — Muito obrigado — respondeu ele com um sorriso amável. — E muito prazer em conhecê-lo. Aliás, o senhor lembra muito um amigo meu da Bahia, um escritor baiano amigo meu, interessante, lembra muito esse amigo meu.

        Mas agora, depois de haver "gramado uma pior anos e anos", como me lembrou jovialmente o colega Fausto Wolf na televisão, eis que a glória e o reconhecimento me bafejam, apesar de a cara não ter melhorado, antes pelo contrário. Meu abnegado editor, Dr. Sérgio Lacerda — o único editor que mente ao contrário para seu editado (não me deixa ver um relatório de vendas, aos berros de "best-seller, best-seller!", para que eu não chore ao descobrir que um livro meu só está vendendo em Araraquara, assim mesmo porque uma prima de minha mulher que mora lá faz rifa com ele todas as terças, quintas e sábados — ninguém esconde nada do romancista), me demoveu da relutância que eu tinha em ficar para a Feira do Livro ora acontecendo aqui no Rio. É bem verdade que, conhecedor de minha alma sensível, ele houve por bem me oferecer um suborno, o qual, naturalmente, aceitei de imediato.

        — Levas este mimo como lembrança da casa — anunciou-me ele orgulhosamente. — Ainda serás um "su" na Feira. Que queres mais da vida, um pôster na entrada do People? Pode ser arranjado.

        Acreditei, é claro. Todo mundo acredita em elogio, como já observou o Chacrinha, ao pronunciar um calouro banguela a cara do Burt Reynolds e ver que o calouro (que era a cara do Peter Lorre com malária e sem dentadura) acreditava piamente e fazia até uma pose reynoldiana. Saí então para testar minha popularidade, entrei numa livraria aqui da Visconde de Pirajá, senti que se declarou um frisson entre os balconistas, à minha chegada. Disfarcei, procurei assumir uma certa nonchalance, até para ser celebridade a gente tem de ser prático. Fingi que estava interessadíssimo em alguns livros, folheei atentamente um manual de datilografia sem mestre que caiu nas mãos. Com o rabo do olho, vi que um dos balconistas, em nome dos outros, tomava coragem para me falar. Fiquei firme no manual, obtive um timing perfeito na hora de levantar os olhos para reconhecer a presença dele junto a mim.

        — Sim? — falei com a mesma expressão que tinha visto num documentário em que Leonard Bernstein foi surpreendido por populares numa livraria da Quinta Avenida.

        — O senhor não é…? — falou ele, quase gaguejando.

        — Sim, sim, suponho que sim, ha-ha.

        Ele inflou o peito de orgulho. Olhou triunfalmente para os colegas do outro lado da loja — "eu não disse?".

        — Faça-me o favor — falou, me pegando pelo cotovelo na direção do grupo. — Eu tenho de apresentar o senhor.

        — Com prazer.

        — Pessoal! — trombeteou ele, cabeça erguida e mão no meu ombro. — Vocês são uns ignorantes e nem reconhecem quando pinta na casa um escritor consagrado! Quero apresentar a vocês o grande escritor (pausa dramática) João Antônio! João Antônio! Sempre fui fã do João Antônio!

        — Eu também — disse eu. — Tem alguma agência de viagem aqui por perto?

8 de setembro de 1985.

Extraído de: Arte e ciência de roubar galinha: crônica de João Ubaldo Ribeiro. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998.

Fonte: Programa de Formação de Professores Alfabetizadores. Coletânea de textos – Módulo 1. p. 216-218.

Entendendo a crônica:

01 – Qual é o principal problema que o autor, João Ubaldo Ribeiro, afirma enfrentar em sua profissão de escritor?

      O maior problema que ele enfrenta é não ter "cara de escritor", o que o leva a ser frequentemente confundido ou desacreditado em sua verdadeira identidade profissional.

02 – Como o autor ilustra sua dificuldade em ser reconhecido como professor?

      Ele relata o caso de um aluno, Bruno Maracajá, que teve uma crise incontrolável de riso ao descobrir que João Ubaldo era seu professor de inglês, por não ter a "cara" esperada para um professor.

03 – Que situação o autor viveu em Salvador que demonstrava a desconfiança sobre sua capacidade de escrever?

      Seu vizinho, Seu Severino, sempre sorria com malícia e acreditava que era o pai do autor quem escrevia os artigos. Além disso, um "figurão" que não gostou de um artigo do autor foi tirar satisfações com seu pai, por não acreditar que "aquele rapaz" tivesse capacidade ou coragem para escrever algo daquele nível.

04 – Descreva a situação constrangedora que o autor passou na porta de uma conferência.

      Ele foi barrado por uma mocinha na entrada, que exigiu um cartão de ingresso. Mesmo sendo o próprio conferencista, ele não foi reconhecido e só conseguiu entrar cerca de vinte minutos depois, quando a mesa diretora anunciou que o palestrante havia faltado.

05 – Além de si mesmo, que outros escritores o autor menciona que também enfrentam problemas de "cara de escritor"?

      Ele menciona Fernando Sabino, que não foi reconhecido por uma recepcionista de hotel, e o poeta Almeidinha, que o confundiu com um "amigo baiano" que "lembrava muito" o próprio João Ubaldo.

06 – Como o editor de João Ubaldo, Dr. Sérgio Lacerda, o convenceu a participar da Feira do Livro?

      O editor o convenceu oferecendo um suborno (um "mimo como lembrança da casa") e elogiando sua futura popularidade na feira, prometendo até um pôster na entrada da revista People.

07 – Qual foi o desfecho hilário da tentativa do autor de testar sua popularidade em uma livraria?

      Um balconista, ao apresentá-lo aos colegas com grande orgulho, confundiu João Ubaldo Ribeiro com o escritor João Antônio, demonstrando que, apesar de toda a suposta glória, sua "cara de escritor" ainda não o tornava inconfundível.

 

quarta-feira, 10 de julho de 2019

CRÔNICA: O VERBO FOR - JOÃO UBALDO RIBEIRO - COM GABARITO

Crônica: O Verbo For
               João Ubaldo Ribeiro

        Vestibular de verdade era no meu tempo. Já estou chegando, ou já cheguei, à altura da vida em que tudo de bom era no meu tempo; meu e dos outros coroas. Acho inadmissível e mesmo chocante (no sentido antigo) um coroa não ser reacionário. Somos uma força histórica de grande valor. Se não agíssemos com o vigor necessário — evidentemente o condizente com a nossa condição provecta —, tudo sairia fora de controle, mais do que já está. O vestibular, é claro, jamais voltará ao que era outrora e talvez até desapareça, mas julgo necessário falar do antigo às novas gerações e lembrá-lo às minhas coevas (ao dicionário outra vez; domingo, dia de exercício).
        O vestibular de Direito a que me submeti, na velha Faculdade de Direito da Bahia, tinha só quatro matérias: português, latim, francês ou inglês e sociologia, sendo que esta não constava dos currículos do curso secundário e a gente tinha que se virar por fora. Nada de cruzinhas, múltipla escolha ou matérias que não interessassem diretamente à carreira. Tudo escrito tão ruybarbosianamente quanto possível, com citações decoradas, preferivelmente. Os textos em latim eram As Catilinárias ou a Eneida, dos quais até hoje sei o comecinho.
        Havia provas escritas e orais. A escrita já dava nervosismo, da oral muitos nunca se recuperaram inteiramente, pela vida afora. Tirava-se o ponto (sorteava-se o assunto) e partia-se para o martírio, insuperável por qualquer esporte radical desta juventude de hoje. A oral de latim era particularmente espetacular, porque se juntava uma multidão, para assistir à performance do saudoso mestre de Direito Romano Evandro Baltazar de Silveira. Franzino, sempre de colete e olhar vulpino (dicionário, dicionário), o mestre não perdoava.
        — Traduza aí quousque tandem, Catilina, patientia nostra — dizia ele ao entanguido vestibulando.
        — "Catilina, quanta paciência tens?" — retrucava o infeliz.
        Era o bastante para o mestre se levantar, pôr as mãos sobre o estômago, olhar para a plateia como quem pede solidariedade e dar uma carreirinha em direção à porta da sala.
        — Ai, minha barriga! — exclamava ele. — Deus, oh Deus, que fiz eu para ouvir tamanha asnice? Que pecados cometi, que ofensas Vos dirigi? Salvai essa alma de alimária. Senhor meu Pai!
        Pode-se imaginar o resto do exame. Um amigo meu, que por sinal passou, chegou a enfiar, sem sentir, as unhas nas palmas das mãos, quando o mestre sentiu duas dores de barriga seguidas, na sua prova oral. Comigo, a coisa foi um pouco melhor, eu falava um latinzinho e ele me deu seis, nota do mais alto coturno em seu elenco.
        O maior público das provas orais era o que já tinha ouvido falar alguma coisa do candidato e vinha vê-lo "dar um show". Eu dei show de português e inglês. O de português até que foi moleza, em certo sentido. O professor José Lima, de pé e tomando um cafezinho, me dirigiu as seguintes palavras aladas:
        — Dou-lhe dez, se o senhor me disser qual é o sujeito da primeira oração do Hino Nacional!
        — As margens plácidas — respondi instantaneamente e o mestre quase deixa cair a xícara.
        — Por que não é indeterminado, "ouviram, etc."?
        — Porque o "as" de "as margens plácidas" não é craseado. Quem ouviu foram as margens plácidas. É uma anástrofe, entre as muitas que existem no hino. "Nem teme quem te adora a própria morte": sujeito: "quem te adora." Se pusermos na ordem direta...
        — Chega! — berrou ele. — Dez! Vá para a glória! A Bahia será sempre a Bahia!
        Quis o irônico destino, uns anos mais tarde, que eu fosse professor da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia e me designassem para a banca de português, com prova oral e tudo. Eu tinha fama de professor carrasco, que até hoje considero injustíssima, e ficava muito incomodado com aqueles rapazes e moças pálidos e trêmulos diante de mim. Uma bela vez, chegou um sem o menor sinal de nervosismo, muito elegante, paletó, gravata e abotoaduras vistosas. A prova oral era bestíssima. Mandava-se o candidato ler umas dez linhas em voz alta (sim, porque alguns não sabiam ler) e depois se perguntava o que queria dizer uma palavra trivial ou outra, qual era o plural de outra e assim por diante. Esse mal sabia ler, mas não perdia a pose. Não acertou a responder nada. Então, eu, carrasco fictício, peguei no texto uma frase em que a palavra "for" tanto podia ser do verbo "ser" quanto do verbo "ir". Pronto, pensei. Se ele distinguir qual é o verbo, considero-o um gênio, dou quatro, ele passa e seja o que Deus quiser.
        — Esse "for" aí, que verbo é esse?
        Ele considerou a frase longamente, como se eu estivesse pedindo que resolvesse a quadratura do círculo, depois ajeitou as abotoaduras e me encarou sorridente.
        — Verbo for.
        — Verbo o quê?
        — Verbo for.
        — Conjugue aí o presente do indicativo desse verbo.
        — Eu fonho, tu fões, ele fõe - recitou ele, impávido. — Nós fomos, vós fondes, eles fõem.
        Não, dessa vez ele não passou. Mas, se perseverou, deve ter acabado passando e hoje há de estar num posto qualquer do Ministério da Administração ou na equipe econômica, ou ainda aposentado como marajá, ou as três coisas. Vestibular, no meu tempo, era muito mais divertido do que hoje e, nos dias que correm, devidamente diplomado, ele deve estar fondo para quebrar. Fões tu? Com quase toda a certeza, não. Eu tampouco fonho. Mas ele fõe.
                                              João Ubaldo Ribeiro. "O Conselheiro Come", Ed Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 2000, pág. 20-23.

Entendendo a crônica:

01 – Na primeira frase do texto, o narrador faz uma afirmação que sugere sua idade. Copie no caderno o trecho que faz essa sugestão e explique por que você o selecionou.
      “No meu tempo”. A afirmação indica que ele é de outra época, anterior à da narração.

02 – Em seguida, ele afirma: “[...] Já estou chegando, ou já cheguei, à altura da vida em que tudo de bom era no meu tempo [...]”
a)   Por que o autor valoriza o passado e nega o presente?
Ele parece se sentir velho demais para aprender as novidades do presente.

b)   A expressão “à altura da vida” parece autorizar o narrador a dizer tudo o que pensa. Comente o significado dessa expressão.
Quer dizer que ele chegou a um tempo em que pode ser dito, pois já está velho.

03 – O vestibular evoca, na memória do narrador, seu tempo de juventude, o tempo em que o vestibular era de “verdade”. Quais são as palavras ou expressões que marcam, no texto, saudade daquela época?
      “O vestibular, é claro, jamais voltará ao que era outrora”.

04 – Destaque do texto dois trechos que sinalizam que o vestibular do passado era mais difícil que o de hoje.
      “Nada de cruzinhas, múltipla escolha ou matérias que não interessassem diretamente à carreira”; “Havia provas escritas e orais”.

05 – Copie o trecho em que o narrador conta o que fazia os alunos sentirem medo do mestre Evandro Baltazar de Silveira.
      “A oral de latim era particularmente espetacular, porque se juntava uma multidão, para assistir à performance do saudoso mestre de Direito Romano Evandro Baltazar de Silveira. Franzino, sempre de colete e olhar vulpino, o mestre não perdoava”.

06 – Observe o seguinte fragmento:
        “— Dou-lhe dez, se o senhor me disser qual é o sujeito da primeira oração do Hino Nacional!
        — As margens plácidas — respondi instantaneamente e o mestre quase deixa cair a xícara.
        — Por que não é indeterminado, "ouviram, etc."?
        — Porque o "as" de "as margens plácidas" não é craseado. Quem ouviu foram as margens plácidas. É uma anástrofe, entre as muitas que existem no hino. "Nem teme quem te adora a própria morte": sujeito: "quem te adora." Se pusermos na ordem direta...
        — Chega! — berrou ele. — Dez! Vá para a glória! A Bahia será sempre a Bahia!”.

a)   Copie no caderno a passagem do trecho em que se pode perceber que o professor acreditava ter feito uma pergunta difícil.
“Dou-lhe dez, se [...]”.

b)   Por que o professor interrompe a resposta do aluno?
Porque o aluno já havia acertado a resposta e demonstrou ter muito conhecimento sobre o assunto.

c)   O que ele quis dizer com “Dez! Vá para a glória! A Bahia será sempre a Bahia!”.
Ele sugere que os baianos são inteligentes.

07 – Quando era professor, o narrador considerava a prova oral “bestíssima”. Por que ele tinha essa opinião?
      Porque a prova se limitava à leitura de um trecho em voz alta para saber se o candidato sabia ler. Depois, faziam-se perguntas simples sobre vocabulário.

08 – Releia a frase: “Então, eu, carrasco fictício, peguei no texto uma frase em que a palavra "for" tanto podia ser do verbo "ser" quanto do verbo "ir".” Por que o narrador se qualifica como “carrasco fictício”?
      Anteriormente, o narrador já havia dito que tinha injustamente fama de ser um professor carrasco. No trecho transcrito, ele mostra que não era carrasco, já que fez uma pergunta muito simples.

09 – A pergunta correspondente ao verbo “for” foi respondida prontamente? Copie no caderno a passagem que justifica sua resposta.
      Não. “Ele considerou a frase longamente, como se eu estivesse pedindo que resolvesse a quadratura do círculo, depois ajeitou as abotoaduras e me encarou sorridente”.

10 – Observe o trecho: “—Conjugue aí o presente do indicativo desse verbo”.
a)   Qual é a palavra indicativa de informalidade na frase?
É a palavra .

b)   Por que o professor foi mais informal ao fazer a pergunta?
Porque a resposta anterior do rapaz estava errada, não existe o verbo for, portanto ele não poderia ser conjugado.

11 – No último parágrafo, o narrador se apropria do erro do candidato para promover uma brincadeira com a linguagem.
a)   A que expressão corresponde “fondo para quebrar”?
Ele compara essa expressão a “pondo para quebrar”.

b)   Que sentido está implícito na expressão acima citada?
Apesar de o candidato não estar preparado, deve ocupar um alto cargo no governo.

12 – Releia o diálogo:
        “— Verbo for.
         — Verbo o quê?
         — Verbo for.
         — Conjugue aí o presente do indicativo desse verbo.
         — Eu fonho, tu fões, ele fõe - recitou ele, impávido. — Nós fomos, vós fondes, eles fõem.”

a)   O que provoca riso no trecho destacado?
Quando o narrador pede ao rapaz que ele conjugue o verbo for, espera-se que ele perceba o erro que havia cometido; mas não, ele conjuga com segurança o verbo.

b)   Explique o tom irônico usado pelo narrador para descrever o candidato.
Ao utilizar o adjetivo impávido, o narrador sugere que o moço estava tão seguro de sua resposta que não percebeu o seu erro.

13 – No último parágrafo da crônica, o narrador apresenta outra característica do vestibular de seu tempo. Que característica é essa?
      O narrador diz que o vestibular no tempo dele era muito mais divertido do que hoje.

14 – Agora releia o final da crônica: “Não, dessa vez ele não passou. Mas, se perseverou, deve ter acabado passando e hoje há de estar num posto qualquer do Ministério da Administração ou na equipe econômica, ou ainda aposentado como marajá, ou as três coisas.”
a)   Explique a crítica que está implícita no trecho.
A crítica é a de que os funcionários públicos não estão bem preparados para a função que exercem e, além disso, ganham salários altos.

b)   Em sua opinião, o final da crônica manteve o humor dado à narrativa?
Sim, pois a situação inesperada apresentando no final manteve humor.




segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

CRÔNICA: OS COMEDORES DE BAIACU - JOÃO UBALDO RIBEIRO - COM GABARITO

Crônica: Os comedores de baiacu
                João Ubaldo Ribeiro

        O baiacu, como haverão de saber os amáveis leitores, é o nome popular de alguns peixes aqui no Brasil (ou pelo menos em Itaparica; Itaparica é Brasil), geralmente da desagradável família dos tetradontídeos. Para ser mais claro, trata-se de um vulgar actinopterígio, teleósteo, da ordem dos plectógnatos, da já mencionada família tetradontídea e, julgo eu, na maior parte dos casos, é um exemplar da espécie em que Lineu tacou o nome de Lagocephalus laevigatus. Não sei por quê. Lineu tinha dessas coisas. Qualquer um que já viu um baiacu percebe logo que ele não pode ser um Lagocephalus e muito menos um laevigatus.
        Mas, enfim, eis que o baiacu abunda nestas plagas. Outro dia mesmo, pescando mais Luiz Cuiúba, ferrei uns dez, tudo maiorzinho de um palmo, pescaria até boa, se fosse peixe que prestasse. Até os quatro dentinhos dele chateiam o vivente, porque só são quatro, como o nome da família indica, mas são navalhas, estropiam anzóis, às vezes cortam até os arames das paradas. E o miserável, ainda por cima, é guloso, engole o anzol de vez e é um sacrifício para tirar tudo lá de dentro. Para não falar que é metido a batalhador e então o sujeito está ali pedindo a Deus um vermelhinho, um dentão, uma xumberga, um beiju-pirá, uma coisa assim decente, e aí a vara verga, a linha se estica e sai em disparada para o lado, peixe grande comeu! Comeu nada. O camarada sua, luta pra cá, luta pra lá, mete a mão na linha, faz o diabo, e quem chega, sacudindo vergonhosamente a ponta da linha? Um baiacu. Não pode haver maior tristeza para quem já tinha garantido ao companheiro de pescaria que “esse bicho aqui na linha é uma sororoca e das grandes”.
        Cuiúba não deixava que eu jogasse fora os baiacus e, lá pelas tantas, havia uma pilha deles, ainda espadanando a pocinha do fundo da canoa.
        — Ha-ha! — exclamou Cuiúba, brandindo facinorosamente a faca enferrujada, mas amoladíssima, que ele sempre leva.
        — Vou fazer filé de baiacu, que amanhã eu como uma moqueca!
        E passou, com habilidade um tanto assustadora, a eviscerar, esfolar e desossar os baiacus, jogando “filé” atrás de “filé” para dentro do coifo. Alguns dos filés, inclusive, continuavam se batendo, não fibrilando como carne de cágado, mas se agitando mesmo, quase como peixes vivos. Não creio que isto possa vir a tornar-se uma atração turística, nunca vi coisa mais esquisita. E meu dever, embora Cuiúba saiba mais de peixes do que quarenta delegados regionais da Sudepe, era fazer uma advertência. Nós, biólogos, temos obrigações sociais.
        — Cuiúba, você está maluco? Você vai comer isso? Isso é um Lagocephalus laevigatus! O famoso peixe venenoso, isso mata em poucas horas!
        — Já tinha ouvido gente chamar isso de peixe-sapo, mas esse nome que você falou nunca ouvi falar — disse Cuiúba, jogando outro filé na cesta.
        — Um anfíbio anuro? — disse eu. — Não seja ridículo, isso é um Lagocephalus.
        — Isto — disse Cuiúba, metendo a faca na barriga de mais um peixe — é um baiacu. É o melhor peixe do mar e eu vou comer tudo de moqueca.
        — Mas você não sabe que baiacu é venenoso?
        — É pra quem não sabe tratar. O veneno está aqui — mostrou ele, cutucando uma bolinha entre as vísceras. — Tirando isso, fica logo o melhor peixe do mar.
        — Mas você não sabe que de vez em quando morre um depois de comer baiacu, às vezes famílias inteiras, e de gente acostumada a comer baiacu?
        — É, eu sei. Agora mesmo, semana passada, morreram quatro de vez, no Alto de Santo Antônio, só sobrou um quinto, que ainda está passando mal no hospital. Eles comiam sempre baiacu, a velha fazia um escaldado com quiabo ótimo, eu mesmo comi lá várias vezes.
        — E então? E ela não sabia dessa bolinha aí, não estava acostumada a tratar baiacu?
        — Estava, estava. Mas ninguém está livre de uma distração, é ou não é? Uma distração assim ... — e, ploft, outro filé no cesto.
        — Cuiúba, deixe de ser doido, você pode morrer se comer esse negócio.
        — Morro nada.
        De volta ao Mercado, procurei apoio na autoridade de Sete Ratos, peixeiro antigo, diz o povo que hoje rico, da venda de peixe.Com certeza ele dissuadiria Cuiúba daquela ideia tresvariada de comer baiacu. Encontro Sete Ratos em pé diante de uma banca, com as mãos metidas numa gamela, tratando peixe. Já eram quase dez horas, passava da hora do almoço e era natural que ele estivesse ali preparando sua comida. Olhei para dentro da gamela, vi uns vinte baiacus miúdos.
        — Sete Ratos, você vai comer baiacu?
        — É o melhor peixe do mar!
        — Mas essa desgraça é venenosa, você não sabe que é venenosa?
        — Ah, é. Semana passada mesmo, morreram acho que quatro ou cinco, lá no Alto. Família acostumadinha a comer baiacu, nesse dia comeram... É o desacerto.
        — Eu sei, Cuiúba me contou. E eu que vinha aqui justamente para lhe pedir que tirasse da cabeça dele a ideia de comer uns filés de baiacu que a gente pescou.
        — Ele esfolou o peixe? Tirou a pele? Tirou justamente o que dá gosto na moqueca? Tirou de frouxidão, foi isso, tirou de frouxidão! Hem, Cuiúba, você tirou a pele porque acha que o veneno está na pele, hem? Deixe de ser frouxo, rapaz, isso tudo é conversa, o veneno nunca esteve na pele, se fosse assim eu já era defunto.
        — Eu sei — falou Cuiúba. — Eu tirei porque gosto de filé de peixe, mas eu sei que o veneno está naquela bolinha da barriga.
        — Que bolinha da barriga, rapaz, tem nada de bolinha de barriga, isso tudo é conversa, tem nada de bolinha na barriga. Isso aí a pessoa tira porque ninguém vai comer tripa de peixe, só francês ou senão americano. O negócio é na hora do cozimento, aí tem de cozinhar direito!
        — E você vai mesmo comer essa baiacuzada, Sete Ratos?
        — Ora, é o melhor peixe do mar!
        Saí por ali, conversei com Turrico, que, além de garçom, é bom pescador. Ele também é muito chegado a uma moquequinha de baiacu. Mas não é veneno, Turrico? É, semana passada mesmo, no Alto... Mas só é veneno nos meses que não têm r, no mês que tem r pode comer sossegado.
        — Mas Sete Ratos me disse que era no cozimento. E Cuiúba...
        — Isso é tudo conversa, tudo conversa. Eu não deixei de comer baiacu nem depois que morreu uma parenta minha — uma não, duas, que eram velhas vitalinas e moravam juntas. Elas estavam acostumadas, faziam baiacu muito bem. Mas nesse dia...
        — E então?
        — É porque foi em julho. Julho não tem r. Ou tem?
        Está certo, pensei eu sem entender nada, enquanto me dirigia à casa de meu amigo Zé de Honorina, para pegar um feijãozinho atendendo a amável e generoso convite. Comentei com ele minha perplexidade.
        — Que coincidência! — disse ele alegremente. — Comadre Dagmar está aí justamente preparando uma moqueca de baiacu.
        — Ah, desculpe, Zé, mas eu não como baiacu.
        — Besteira sua, é o melhor peixe do mar. Agora, não se pode negar que é venenoso. Semana passada mesmo, no Alto...
        — Eu soube, eu soube. E você vai comer assim mesmo?
        — Claro que vou, mas não se preocupe, que eu mandei preparar uma garoupinha para você, separada.
        Entre limões, mãos de coentro, pilhas de cebolas, alhos, malaguetas e tomates, Dagmar dava os últimos retoques na moqueca de baiacu. Aproximei-me, estava tudo muito cheiroso. Observei como aquela sua moqueca de baiacu era famosa, como Zé tinha confiança em comer aquele peixe venenoso quando era ela quem o preparava. Qual o segredo para tratar o baiacu?
        — Ah, não sei — disse ela. — Eu mesma não como.

        RIBEIRO, João Ubaldo. Os comedores de baiacu. In: Arte e ciência de roubar galinha:
Crônicas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 45-9.
Entendendo a crônica:

01 – Que explicações foram dadas pelos vários personagens, no decorrer da história, sobre o veneno do baiacu? Que informações concretas foram dadas sobre as atividades desses personagens?
·        Luiz Cuiúba = Pescador. O veneno está em uma bolinha entre as vísceras. Se for retirada, o baiacu não faz mal.

·        Sete Ratos = Peixeiro antigo. O segredo está na hora do cozimento.

·        Turrico = Garçom e pescador. O peixe só é venenoso nos meses que não têm r. No mês que tem r pode-se comer sossegado.

02 – Que características são comuns a todos esses personagens? Como você poderia descrevê-los?
      Pessoas que vivem e sobrevivem a partir de conhecimentos, mitos e lendas que vão passando de geração em geração.

03 – Os personagens, segundo o texto, possuem suficientes conhecimentos científicos para justificar as afirmações que fazem? De onde provem as teorias deles sobre o assunto? Considere as informações que o texto fornece sobre esses personagens.
      Não. O conhecimento deles faz parte dos saberes populares que vão sendo passados de geração em geração.

04 – O narrador parece desesperado para convencer os outros de que o peixe é venenoso. Que indicativos há no texto de que ele possui uma certa autoridade para falar no assunto?
      Ele se diz biólogo. E tenta provar seu conhecimento citando nomes e mais nomes científicos relacionados ao baiacu.

05 – Além de não servirem para comer, que outros motivos os pescadores têm, em geral, para não gostarem de fisgar baiacus?
      Porque tais peixes, além de não servirem para se comer, estropiam anzóis, cortam arames das paradas e engolem anzóis.