quarta-feira, 1 de maio de 2019

CONTO: GAETANINHO - ALCÂNTARA MACHADO - COM GABARITO

Conto: Gaetaninho
        
    Alcântara Machado

        -- Xi, Gaetaninho, como é bom!
        Gaetaninho ficou banzando bem no meio da rua. O Ford quase o derrubou e ele não viu o Ford. O carroceiro disse um palavrão e ele não ouviu o palavrão.
        – Eh! Gaetaninho Vem pra dentro.

        Grito materno sim: até filho surdo escuta. Virou o rosto tão feio de sardento, viu a mãe e viu o chinelo.
        – Subito!
        Foi-se chegando devagarinho, devagarinho. Fazendo beicinho. Estudando o terreno. Diante da mãe e do chinelo parou. Balançou o corpo. Recurso de campeão de futebol. Fingiu tomar a direita. Mas deu meia volta instantânea e varou pela esquerda porta adentro.
        Eta salame de mestre!
        Ali na Rua Oriente a ralé quando muito andava de bonde. De automóvel ou carro só mesmo em dia de enterro. De enterro ou de casamento. Por isso mesmo o sonho de Gaetaninho era de realização muito difícil. Um sonho.
        O Beppino por exemplo. O Beppino naquela tarde atravessara de carro a cidade. Mas como? Atrás da Tia Peronetta que se mudava para o Araçá. Assim também não era vantagem.
        Mas se era o único meio? Paciência.
        Gaetaninho enfiou a cabeça embaixo do travesseiro.
        Que beleza, rapaz! Na frente quatro cavalos pretos empenachados levavam a Tia Filomena para o cemitério. Depois o padre. Depois o Savério noivo dela de lenço nos olhos. Depois ele. Na boleia do carro. Ao lado do cocheiro. Com a roupa marinheira e o gorro branco onde se lia: ENCOURAÇADO SÃO PAULO. Não. Ficava mais bonito de roupa marinheira mas com a palhetinha nova que o irmão lhe trouxera da fábrica. E ligas pretas segurando as meias. Que beleza, rapaz! Dentro do carro o pai, os dois irmãos mais velhos (um de gravata vermelha, outro de gravata verde) e o padrinho Seu Salomone. Muita gente nas calçadas, nas portas e nas janelas dos palacetes, vendo o enterro. Sobretudo admirando o Gaetaninho.
        Mas Gaetaninho ainda não estava satisfeito. Queira ir carregando o chicote. O desgraçado do cocheiro não queria deixar. Nem por um instantinho só.
        Gaetaninho ia berrar mas a Tia Filomena com mania de cantar o “Ahi, Mari!” todas as manhãs o acordou.
        Primeiro ficou desapontado. Depois quase chorou de ódio.
        Tia Filomena teve um ataque de nervos quando soube do sonho de Gaetaninho. Tão forte que ele sentiu remorsos. E para sossego da família alarmada com o agouro tratou logo de substituir a tia por outra pessoa numa nova versão de seu sonho. Matutou, matutou, e escolheu o acendedor da Companhia de Gás, seu Rubinho, que uma vez lhe deu um cocre danado de doído.
        Os irmãos (esses) quando souberam da história resolveram arriscar de sociedade quinhentão no elefante. Deu a vaca. E eles ficaram loucos de raiva por não haverem logo adivinhado que não podia deixar de dar a vaca mesmo.
        O jogo na calçada parecia de vida ou morte. Muito embora Gaetaninho não estava ligando.
        – Você conhecia o pai do Afonso, Beppino?
        – Meu pai deu uma vez na cara dele.
        – Então você não vai amanhã no enterro. Eu vou!
        O Vicente protestou indignado:
        – Assim não jogo mais! O Gaetaninho está atrapalhando!
        Gaetaninho voltou para o seu posto de guardião. Tão cheio de responsabilidades.
        O Nino veio correndo com a bolinha de meia. Chegou bem perto. Com o tronco arqueado, as pernas dobradas, os braços estendidos, as mãos abertas, Gaetaninho ficou pronto para a defesa.
        – Passa pro Beppino!
        Beppino deu dois passos e meteu o pé na bola. Com todo o muque. Ela cobriu o guardião sardento e foi parar no meio da rua.
        – Vá dar tiro no inferno!
        – Cala a boca, palestrino!
        – Traga a bola!
        Gaetaninho saiu correndo. Antes de alcançar a bola um bonde o pegou. Pegou e matou.
        No bonde vinha o pai de Gaetaninho.
        Agurizada assustada espalhou a notícia na noite.
        – Sabe o Gaetaninho?
        – Que é que tem?
        – Amassou o bonde!
        A vizinhança limpou com benzina suas roupas domingueiras.
        Às dezesseis horas do dia seguinte saiu um enterro da Rua do Oriente e Gaetaninho não ia na boleia de nenhum dos carros do acompanhamento. Lá no da frente dentro de um caixão fechado com flores pobres por cima. Vestia a roupa marinheira, tinha as ligas, mas não levava a palhetinha.
        Quem na boleia de um dos carros do cortejo mirim exibia soberbo terno vermelho que feria a vista da gente era o Beppino.

                                        Novelas Paulistanas. 3. ed. Rio de Janeiro:
                                              J. Olympio, 1979. p. 11-3.
Entendendo o conto:
01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:
·        Araçá: nome de um cemitério da cidade de São Paulo.

·        Banzar: pensar detidamente, meditar.

·        Boleia: cabina do motorista.

·        Cocre: cascudo.

·        Palhetinha: chapéu de palha.

02 – Esse conto pode ser dividido em seis partes ou cenas. De uma cena para outra, há um corte narrativo que introduz uma nova situação num tempo e num espaço também novos. Essa superposição de cenas vai compondo o todo como uma colagem, como se o narrador estivesse de posse de uma teleobjetiva e fosse fotografando cena por cena. Que tipo de linguagem se utiliza desse recurso técnico?
      A linguagem cinematográfica.

03 – Indique o parágrafo em que, ao descrever uma ação da personagem, o narrador, como um locutor esportivo, se utiliza da linguagem radiofônica.
      O sexto parágrafo.

04 – O ambiente é reconstituído com traços leves, demonstrando uma preocupação jornalística. Apesar disso, o autor consegue identificar magistralmente a origem e a condição socioeconômica das personagens.
a)   Que elementos do texto confirmam que Gaetaninho e sua família são italianos?
O nome das personagens, as gravatas dos irmãos mais velhos, verde e vermelha, a tia cantando a ópera “Ahi, Mari!”, a fala da mãe Subito! (“rápido”), a referência ao Palestra Futebol Clube (“Palestrino”), etc.

b)   Identifique alguns fatos que demonstram a condição socioeconômica da Gaetaninho.
Morar na Rua Oriente, em São Paulo, antigamente habitada por imigrantes italianos pobres; andar de bonde; jogar no bicho; o irmão trabalhar na fábrica; o jogo de futebol na rua com bola de meia; as flores pobres cobrindo o caixão, etc.

05 – Alcântara Machado preocupa-se não só em reproduzir os traços rítmicos e melódicos da linguagem coloquial, como também em mostrar a influência do imigrante italiano na fala paulistana.
a)   Identifique nos diálogos uma situação em que se observa um desvio em relação à variedade padrão formal da língua.
“Então você não vai amanhã no enterro. Eu vou!”

b)   Identifique no texto palavras da língua italian.
Nomes de personagens (Beppino, Peronetta, Nino, etc); o título da ópera, “Ahi, Mari!”; a palavra Subito.

06 – Que valor social está presente no desejo de Gaetaninho de andar de automóvel e de ser admirado pelas pessoas?
      O desejo de ascender socialmente. Como imigrante italiano marginalizado, Gaetaninho queria ser aceito, afirmar-se na sociedade brasileira.

07 – O final do conto é surpreendente, tanto pela rapidez com que se dá a morte de Gaetaninho quanto pela ambiguidade causada pela frase “amassou o bonde!”. Considerando o sentido do verbo amassar em português e sabendo que ammazzare, do italiano, significa “matar”, explique a ambiguidade contida nessa frase.
      Entre outras interpretações, pode-se considerar Gaetaninho como sujeito da ação (o menino foi atropelado/amassou o bonde, precipitando-se sob as rodas do veículo) e ao mesmo tempo paciente da ação (o menino foi atropelado/amassado/morto pelo bonde). A ambiguidade da expressão “Amassou o bonde” suaviza a crueza do espetáculo; a ironia suaviza a piedade.





Nenhum comentário:

Postar um comentário