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quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

CONTO: O BEIJO DA PALAVRINHA - MIA COUTO - COM GABARITO

 CONTO: O BEIJO DA PALAVRINHA

                Mia Couto

Era uma vez uma menina que nunca vira o mar. Chamava-se Maria Poeirinha. Ela e a sua família eram pobres, viviam numa aldeia tão interior que acreditavam que o rio que ali passava não tinha nem fim nem foz.

 

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgfSFA-1IuQ65Ifba5bopuEL30xtHzRqQsWL00tnk_cpB_mLHzwHOH0tJasSPbdvG-YazzlCj6F5t098CGTB_0kbqAWUDDnfwK_d0CK5CCxzHMEiPCQW0naOrk_p28fqQskWFIwr_7yzkjzfSGDpcq1hovVFvQ3PmFQTHGheFjDDWCV6Ga1033r5sfR3A8/s354/mar.jpg

       Poeirinha só ganhara um irmão, o Zeca Zonzo, que era desprovido de juízo. Cabeça sempre no ar, as ideias lhe voavam como balões em final de festa. Na miséria em que viviam, nada destoava. Até Poeirinha tinha sonhos pequenos, mais de areia do que castelos.

       Às vezes sonhava que ela se convertia em rio e seguia com passo lento, como a princesa de um distante livro, arrastando um manto feito de remoinhos, remendos e retalhos. Mas depressa ela saía do sonho, pois seus pés descalços escaldavam na areia quente. E o rio secava, engolido pelo chão.

       Um certo dia, chegou à aldeia o Tio Jaime Litorânio, que achou grave que os seus familiares nunca tivessem conhecido os azuis do mar.

       Que a ele o mar lhe havia aberto a porta para o infinito. Podia continuar pobre mas havia, do outro lado do horizonte, uma luz que fazia a espera valer a pena. Deste lado do mundo, faltava essa luz que nasce não do Sol, mas das águas profundas.

       A fome, a solidão, a palermice do Zeca, tudo isso o Tio atribuía a uma única carência: a falta de maresia. Há coisas que se podem fazer pela metade, mas enfrentar o mar pede a nossa alma toda inteira. Era o que dizia Jaime.

      - Quem nunca viu o mar não sabe o que é chorar!

       Certa vez, a menina adoeceu gravemente. Num instante, ela ficou vizinha da morte. O Tio não teve dúvida: teriam que a levar à costa.

      Para que se curasse, disse ele. Para que ela renascesse tomando conta daquelas praias de areia e onda. E descobrisse outras praias dentro dela.

       - Mas o mar cura assim tão de verdade?

       - Vocês não entendem? - respondia ele. - Não há tempo a perder. Metam a menina no barco que a corrente a leva em salvadora viagem.

       Contudo, a menina estava tão fraca que a viagem se tornou impossível. Todos se aproximavam da cabeceira e ali ficavam sem saber o que fazer, sem saber o que dizer. A mãe pegou nas mãos da menina e entoou as velhas melodias de embalar. Em vão. A menina apenas ganhava palidez e o seu respirar era o de um fatigado passarinho. Já se preparavam as finais despedidas quando o irmão Zeca Zonzo trouxe um papel e uma caneta.

       - Vou-lhe mostrar o mar, maninha.

      Todos pensaram que ele iria desenhar o oceano. Que iria azular o papel e no meio da cor iria pintar uns peixes. E o Sol em cima, como vela em bolo de aniversário. Mas não. Zonzo apenas rabiscou com letra gorda a palavra

                                             MAR

      Apenas isso: a palavra inteira e por extenso.

       O menino ficou olhando para a folha parecendo que não entendia o que ele mesmo escrevera.  Antes mesmo que ele dissesse alguma coisa, a irmã murmurou, em débil suspiro:

       -Não vale a pena, mano Zonzo. Eu já não distingo letra, a luz ficou cansada que já não se consegue levantar.

       -Não importa, Poeirinha. Eu lhe conduzo o dedo por cima do meu.

       Os pais chamaram o moço à razão, ele que poupasse a irmã daquela tontice e que a deixasse apenas respirar. Mas Zeca Zonzo fingiu não escutar. Ele tomou na sua mão os dedos magritos de Maria Poeirinha e os guiou por cima dos traços que desenhara.

       -Vês esta letra, Poeirinha?

      -Estou tocando sombras, só sombras, só.

      Zeca Zonzo levantou os dedos da irmã e soprou neles como se corrigisse algum defeito e os ensinasse a decifrar a lisa brancura do papel.

      -Experimente outra vez, mana. Com toda a atenção. Agora, já está sentindo?

     -Sim. O meu dedo já está a espreitar.

     -E que letra é?

      E sorriram os dois, perante o espanto dos presentes.  Como se descobrissem algo que ninguém mais sabia. E não havia motivo para tanto espanto. Pois a letra m é feita de quê?

      É feita de vagas, líquidas linhas que sobem e descem.

      E Poeirinha passou o dedo a contornar as concavidades da letrinha.

     -É isso, manito. Essa letra é feita por ondas. Eu já as vi no rio.

     -E essa outra letrinha, essa que vem a seguir?

     Essa a seguir é um  a

     É uma ave, uma gaivota pousada nela própria, enrodilhada perante a brisa fria.

      Em volta todos se haviam calado. Os dois em coro decidiram não tocar mais na letra para não espantar o pássaro que havia nela.

     -E a seguinte letrinha?

     E os dedos da menina magoaram-se no r duro, rugoso, com suas ásperas arestas.

     O Tio Jaime Litorâneo, lágrima espreitando nos olhos, disse:

     - Calem-se todos: já se escuta o marulhar!

      Então do leito de Maria Poeirinha se ergueu a gaivota branca, como se fosse um lençol agitado pelo vento. Era Maria Poeira que se erguia? era um simples remoinho de areia branca?

Ou era ela seguindo no rio, debaixo do manto feito de remoinhos, remendos e retalhos?

      Ainda hoje, tantos anos passados, Zeca Zonzo, apontando o rosto da sua irmãzinha na fotografia, clama e reclama.

          -Eis minha mana poeirinha que foi beijada pelo mar. E se afogou numa palavrinha.

Entendendo o texto

01. Qual o nome do protagonista do conto?

a) Maria Litorânio

b) Maria Poeirinha

c) Zeca Zonzo

d) Tio Jaime.

    02. O que acreditou a família de Maria Poeirinha sobre o rio que passava pela aldeia?

         a) Que era um rio mágico

         b) Que não tinha fim nem foz

         c) Que era o rio da vida

         d) Que era um rio poluído

  03. Quem acreditou que a falta de maresia era causa da miséria da família de Maria Poeirinha?

       a) A mãe do protagonista

       b) O Tio Jaime Litorânio

       c) Zeca Zonzo

       d) O pai da protagonista

   04. Como Zeca Zonzo tentou mostrar o mar para Maria Poeirinha quando ela estava doente?

       a) Desenhando um oceano no papel

       b) Levando-a até a costa

       c) Cantando canções sobre o mar

       d) Escrevendo a palavra "MAR" no papel

   05. O que Zeca Zonzo fez para ajudar a irmã a sentir o mar enquanto ela estava doente?

       a) Cantava canções de embalar

       b) Soprava nos dedos dela

       c) Desenhava peixes

       d) Contava histórias sobre o mar

     06. Como Maria Poeirinha falou a letra "m" que Zeca Zonzo escreveu no papel?

        a) Feita de vagas, linhas líquidas que sobem e descem

        b) Uma ave, uma gaivota pousada nela própria

        c) Rugosa, com arestas ásperas

       d) Uma letra que vem a seguir

     07. Qual a letra que Maria Poeirinha comparou a uma ave, uma gaivota pousada nela própria?

         a) m

         b) a

         c) r

        d) d

    08. O que o Tio Jaime Litorânio afirmou ao ouvir a letra "r" sendo tocada por Maria Poeirinha?

         a) "Calem-se todos: já se escuta o marulhar!"

         b) "Essa letra é feita por ondas. Eu já as vi no rio."

         c) "Você não entende? Não há tempo a perder."

         d) "O mar cura assim tão de verdade?"

     09. Como Maria Poeirinha se elevou o leito no final do conto?

          a) Como uma gaivota branca

          b) Como um remoinho de areia branca

          c) Como uma onda gigante

         d) Como um lençol agitado pelo vento

   10. O que Zeca Zonzo afirma sobre a irmã no final do conto?

        a) Que ela foi beijada pelo sol

        b) Que ela se afogou no rio

        c) Que ela foi beijada pelo mar e se afogou numa palavrinha

        d) Que ela nunca viu o mar

 

 

 

 

 

quarta-feira, 3 de agosto de 2022

CONTO: O PERFUME - MIA COUTO - COM GABARITO

 Conto: O perfume

             Mia Couto

        – Hoje vamos ao baile!

        Justino assim se anunciou, estendendo em suas mãos um embrulho cor de presente. Glória, sua esposa, nem soube receber. Foi ele quem desatou os nós e fez despontar do papel colorido o vestido não menos colorido. A mulher, subvivente, somava tanta espera que já esquecera o que esperava. Justino guardava ferrovias, seu tempo se amalgava, fumo dos fumos, ponteiro encravado em seu coração. Entre marido e mulher o tempo metera a colher, rançoso roubador de espantos. Sobrara o pasto dos cansaços, desnamoros, ramerrames. O amor, afinal, que utilidade tem?

        De onde o espanto de Glória, deixando esparramejar o vestido sobre seu colo. Que esperava ela, por que não se arranjava? O marido, parecia ter ensaiado brincadeira. Que lhe acontecera? O homem sempre dela se ciumara, quase ela nem podia assomar à janela, quanto mais. Glória se levantou, ela e o vestido se arrastaram mutuamente para o quarto. Incrédula e sonambulenta, arrastou o pente pelo cabelo. Em vão. O desleixo se antecipara fazendo definitivas tranças. Lembrou as palavras de sua mãe: mulher preta livre é a que sabe o que fazer com o seu próprio cabelo. Mas eu, mãe: primeiro, sou mulata. Segundo, nunca soube o que é isso de liberdade. E riu-se: livre: Era palavra que parecia de outra língua. Só de a soletrar sentia vergonha, o mesmo embaraço que experimentava em vestir a roupa que o marido lhe trouxera. Abriu a gaveta, venceu a emperrada madeira. E segurou o frasco de perfume, antigo, ainda embalado. Estava leve, o líquido havia evaporado. Justino lhe havia dado o frasco, em inauguração do namoro, ainda ela meninava. Em toda a vida, aquele fora o único presente. Só agora se somava o vestido. Espremeu o vidro do cheiro, a ordenhar as últimas gotas. Perfumei o quê com isto, se perguntou lançando o frasco no vazio da janela.

        – Nem sei o gosto de um cheiro.

        Escutou o velho vidro se estilhaçar no passeio. Voltou à sala, vestido se desencontrando com o corpo. As bainhas do pano namoriscavam os sapatos. Temia o comentário do marido sempre lhe apontando ousadias. Desta vez, porém, ele lhe olhou de modo estranho, sem parecer crer. Puxou-a para si e lhe ajeitou as formas, arrebitando o pano, avespando-lhe a cintura. Depois, perguntou:

        – Então não passa um arranjo no rosto?

        – Um arranjo?

        – Sim, uma cor, uma tinta.

        Ela se assombrou. Virou as costas e entrou na casa de banho, embasbocada. Que doença súbita dera nele? Onde diabo parava esse bâton, havia anos que poeirava naquela prateleira? Encontrou-o, minúsculo, gasto nas brincadeiras dos miúdos. Passou o lápis sobre os lábios. Leve, uma penumbra de cor. Carregue mais, faça valer os vermelhos. Era o marido, no espelho. Ela ergueu o rosto, desconhecida.

        – Vamos ao baile, sim. Você não costumava dançar, antes?

        – E os meninos?

        – Já organizei com o vizinho, não se preocupa.

        E foram. Justino ainda teve que tchovar a carrinha. Ela, como sempre, desceu para ajudar. Mas o marido recusou. Desta vez, não. Ele sozinho empurrava, onde é que se vira?

        Chegaram. Glória parecia não dar conta da realidade. Se deixou no assento da velha carrinha. Justino cavalheirou, mão pronta, gesto preso abrindo portas. O baile estava concorrido, cheio pelas costuras. A música transpirava pelo salão, em tonturas de casais. Os dois se sentaram numa mesa. Os olhos de Glória não exerciam. Apenas sombreavam pela mesa, pré-colegiais.

        Então, se aproximou um homem, em boa postura, pedindo ao guarda-freio lhe desse licença de sua esposa para um passo respeitoso. Os olhos aterrados dela esperaram cair a tempestade. Mas não. Justino contemplou o moço e lhe fez amplo sinal de anuência. A esposa arguiu:

        – Mas eu preferia dançar primeiro com meu marido.

        – Você sabe que eu nunca danço…

        E como ela ainda hesitasse ele lhe ordenou quase em sigilo de ternura: Vá, Glorinha, se divirta!

        E ela foi, vagarosa, espantalhada. Enquanto rodava ela fixava o seu homem sentado na mesa. Olhou fundo os seus olhos e viu neles um abandono sem nome, como esse vapor que restara de seu perfume. Então, entendeu: o marido estava a oferecê-la ao mundo. O baile, aquele convite, eram uma despedida. Seu peito confirmou a suspeita quando viu o marido se levantar e aprontar a saída. Ela interrompeu a dança e correu para Justino.

        – Onde vai, marido?

        – Um amigo me chamou, lá fora. Já volto.

        – Vou consigo, Justino.

        – Aquilo lá fora não é lugar das mulheres. Fique, dance com o moço. Eu já venho.

        Glória não voltou à dança. Sentada na reservada mesa, levantou o copo do marido e nele deixou a marca de seu bâton. E ficou a ver Justino se afastando entre a fumarada do salão, tudo se comportando longe. Vezes sem conta ela vira esse afastamento, o marido anonimado entre as neblinas dos comboios. Desta vez, porém, seu peito se agitou, em balanço de soluço. No limiar da porta, Justino ainda virou o rosto e demorou nela um último olhar. Com surpresa, ele viu a inédita lágrima, cintilando na face que ela ocultava. A lágrima é água e só a água lava tristeza. Justino sentiu o tropeço no peito, cinza virando brasa em seu coração. E fechou a noite, a porta decepando aquela breve desordem. Glória colheu a lágrima com dobra do próprio vestido. De quem, dentro dela mesma, ela se despedia?

        Saiu do baile, foi de encontro às trevas. Ainda procurou a velha carrinha. Ansiou que ela anda ali estivesse, necessitada de empurro. Mas de Justino não restava vestígio. Voltou a casa, sob o crepitar dos grilos. A meio do carreiro se descalçou e seus pés receberam a carícia da areia quente. Olhou o estrelejo nos céus. As estrelas são os olhos de quem morreu de amor. Ficam nos contemplando de cima, a mostrar que só o amor concede eternidades.

        Chegou a casa, cansada a ponto de nem sentir cansaços. Por instantes, pensou encontrar sinais de Justino. Mas o marido, se passara por ali, levara seu rastro. A Glória não lhe apeteceu a casa, magoava-lhe o lar como retrato de ente falecido. Adormeceu nos degraus da escada.

        Acordou nas primeiras horas da manhã, tonteando entre sono e sonho. Porque, dentro dela, em olfatos só da alma, ela sentiu o perfume. Seria o quê? Eflúvios do velho frasco? Não, só podia ser um novo presente, dádiva da paixão que regressava.

        – Justino?!

        Em sobressalto, correu para dentro da casa. Foi quando pisou os vidros, estilhaçados no sopé de sua janela. Ainda hoje restam, indeléveis pegadas de quando Glória estreou o sangue de sua felicidade.

COUTO, Mia. Estórias abensonhadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 31-35.

      Fonte: Língua Portuguesa – Se liga na língua – Literatura, Produção de texto, Linguagem – 2 Ensino Médio – 1ª edição – São Paulo, 2016 – Moderna – p. 17-19.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Ramerrames: (palavra onomatopaica) rotinas, repetições fastidiosas;

·        Assomar: aparecer, surgir;

·        Passeio: calçada;

·        Casa de banho: banheiro;

·        Miúdos: crianças;

·        Tchovar: empurrar;

·        Carrinha: carro utilitário (caminhonete, perua);

·        Presto: rápido;

·        Guarda-freio: funcionário da estrada de ferro que checa e manobra os freios do trem;

·        Anuência: aprovação;

·        Arguiu: retrucou;

·        Comboios: vagões, trem;

·        Apeteceu: agradou;

·        Eflúvios: aromas;

·        Indeléveis: que não podem ser apagados.

02 – O que chamou sua atenção na linguagem utilizada por Mia Couto?

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: A mistura da linguagem neologismos e coloquialismos, desconstrói ditos populares, etc.

03 – O conto compõe a coletânea intitulada Estórias abensonhadas. Alguns escritores diferenciam estória (narrativa ficcional) de história (narrativa não ficcional). Relacione essa diferença ao neologismo abensonhada e explique o título dessa coletânea de Mia Couto.

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: O título sugere que a obra composta de contos ficcionais, inventadas (estórias); o adjetivo abensonhadas é uma fusão das palavras abensonhadas e sonhadas.

04 – Ainda que o narrador não tenha caracterizado os personagens diretamente, podemos inferir informações sobre o perfil psicológico deles. Descreva Justino e Glória com base nas informações do texto e em seu conhecimento de mundo.

      Justino trabalha na ferrovia como guarda-freio e mantém com Glória um casamento marcado pelo tédio, pelo cansaço e pelo desânimo. Ele tem ciúme da esposa e a impede de ser livre, acusando-a de ousada. Glória é uma mulher sofrida que leva uma vida difícil, sem liberdade e sem sonhos, como o esposo. Vítima do imenso ciúme de Justino, parece ter perdido a vaidade: veste-se de maneira discreta, não usa maquiagens ou perfumes e não se relaciona com outros homens.

05 – No segundo parágrafo, o narrador dá informações importantes para o desenrolar do texto.

a)   Que ditado popular é citado pelo narrador?

O dito popular “Em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”.

b)   Esse ditado mantém o sentido em que é usualmente empregado? Explique.

Não. Esse dito popular aparecerá no conto com outro sentido: “Entre marido e mulher o tempo metera a colher”. O tempo, e não um terceiro, será responsável pelo “ranço”, pelo “cansaço”, pelos “desnamoros”, pelos “ramerrames” que caracterizam a relação entre Justino e Glória.

c)   A progressão textual é um processo pelo qual o texto é construído com o acréscimo de novos dados ligados àqueles que já haviam sido introduzidos. Explique como se dá a progressão textual no conto citando os elementos que comprovam o dito popular mencionado no segundo parágrafo pelo narrador.

O dito popular, ressignificado no conto como “Entre marido e mulher o tempo metera a colher”, será retomado de diferentes formas ao longo do texto e contribuirá para sua progressão. O tempo, “roubador de espantos”, provocará o afastamento gradual de Justino e Glória e “resfriará” o casamento deles. Além disso, fará com que Glória não saiba mais receber um presente do marido e será responsável também pelas “definitivas tranças” no cabelo de Glória, emperrará a madeira da gaveta, símbolo do esquecimento do perfume, evaporará o perfume “antigo”, produzirá “miúdos” que gastarão o batom em brincadeiras, transformará Glorinha em Glória e mudará o olhar de Justino.

06 – O perfume é peça importante para a construção do sentido do texto.

a)   Relacione as ações de Glória aos momentos em que ele é citado.

O perfume é citado no texto em quatro momentos: quando abre a gaveta e percebe que o líquido evaporou; quando ela quebra o vidro; quando, após o baile, a personagem acorda, entre “sono e sonho”, e sente o cheiro do perfume; e, quando fere os pés com o vidro estilhaçado.

b)   Que sentido metafórico o perfume tem em cada uma das passagens?

Na primeira passagem, a evaporação do perfume sugere que o amor de Glória também já se dissipou em um relacionamento desgastado pelo tempo. Na segunda, a personagem mostra-se irada com a percepção de que seu casamento nem sequer garantiu a ela “o gosto de um cheiro”. Na terceira passagem, a mulher já sabe que não mais terá o marido e percebe que seu amor por ele voltou em virtude de sua mudança de comportamento. Na quarta, quando Glória pisa nos cacos de vidro e corre para dentro, imprime as pegadas ensanguentadas no assoalho, que permanecem ali até o presente, como que marcando a estreia de uma nova vida.

c)   Explique como é possível Glória sentir o cheiro do perfume mesmo depois de evaporado seu líquido e estilhaçado seu frasco.

O perfume é, ao mesmo tempo, símbolo de amor / desamor / retomada do amor. A busca do perfume e a descoberta de sua evaporação sugerem a atual falta de cuidado que um dia, ainda que de maneira tímida, Justino teve com Glória. Entretanto, a generosidade mostrada pelo marido no episódio do baile – que abrange o vestido dado de presente, a maquiagem exigida, a licença para a esposa dançar com um homem de “boa postura” – faz Glória retomar seu amor perdido, o que justifica que ela sinta metaforicamente o agradável cheiro do perfume que Justino lhe deu de presente no início do namoro deles. Esse cheiro simboliza a “paixão que regressava” ao coração de Glória.

 

CONTO: A CARTEIRA DE CROCODILO - MIA COUTO - COM GABARITO

 Conto: A carteira de crocodilo

         Mia Couto

        A Senhora Dona Francisca Júlia Sacramento, esposa do governador-geral, excelenciava-se pelos salões, em beneficentes chás e filantrópicas canastas. Exibia a carteirinha que o marido lhe trouxera das outras Áfricas, toda em substância de pele de crocodilo. As amigas se raspavam de inveja, incapazes de disfarce. Até a bílis lhes escorria pelos olhos. Motivadas pela desfaçatez, elas comentavam: o bichonho, assim tão desfolhado, não teria sofrido imensamente? Tal dermificina não seria contra os católicos mandamentos?

        – E com o problema das insolações, o bicho, assim esburacado, apanhando em cheio os ultravioletas...

        – Cale-se, Clementina.

        Mas o governador Sacramento também se havia contemplado a ele mesmo. Adquirira um par de sapatos feitos com pele de cobra. O casal calçava do reino animal, feitos pássaros que têm os pés cobertos de escamas. Certo dia, uma das nobres damas trouxe a catastrágica novidade. O governador-geral contraíra grave e irremediável viuvez. A esposa, coitada, fora comida inteira, incluído corpo, sapatos, colares e outros anexos.

        – Foi comida mas... pelo marido, supõe-se?

        – Cale-se, Clementina.

        Mas qual marido? Tinha sido o crocodilo, o monstruoso carnibal. Que horror, com aqueles dentes capazes de arrepiar tubarões.

        – Um crocodilo no Palácio?

        – Clemente-se, Clementina.

        O monstro de onde surgira? Imagine-se, tinha emergido da carteira, transfigurado, reencarnado, assombrado. Acontecera em instantâneo momento: a malograda ia tirar algo da mala e sentiu que ela se movia, esquiviva. Tentou assegurá-la: tarde e de mais. Foi só tempo de avistar a dentição triangulosa, língua amarela no breu da boca. No resto, os testemunhadores nem presenciaram. O sáurio se eminenciou a olhos imprevistos.

        E o governador, sob o peso da desgraça? O homem ia de rota abatida. Lágrimas catarateavam pelo rosto. O dirigente recebeu o desfile das condolências. Vieram íntimos e ilustres. A todos ele cumprimentou, reservado, invisivelmente emocionado. Os visitantes se juntaram no nobre salão, aguardando palavras do dirigente. O governador avançou para o centro e anunciou não o luto mas, espantem-se cristãos, a inadiável condecoração do crocodilo. Em nome da protecção das espécies, explicou. A bem da ecologia faunística, acrescentou.

        No princípio, houve relutâncias, demoras no entendimento. Mas logo os aplausos abafaram as restantes palavras. O que sucedeu, então, foi o inacreditável. O governador Sacramento suspendeu a palavra e espreitou o chão que o sustinha. Pedindo urgentes desculpas ele se sentou no estrado e se apressou a tirar os sapatos. Entre a audiência ainda alguém vaticinou:

        – Vai ver que os sapatos se convertem em cobra...

        – Clementina!

        Sucedeu exactamente o inverso. O ilustre nem teve tempo de desapertar os atacadores. Perante um espanto ainda mais geral que o título do governador, se viu o honroso indignitário a converter-se em serpente. Começou pela língua, afilada e bífida, em rápidas excursões da boca. Depois, se lhe extinguiram os quase totais membros, o homem, todo ele, um tronco em flor. Caiu desamparado no mármore do palácio e ainda se ouviu seu grito:

        – Ajudem-me!

        Ninguém, porém, avivou músculo que fosse. Porque, logo e ali, o mutante mutilado, em total mutismo, se começou a enredar pelo suporte do microfone. Enquanto serpenteava pelo ferro ele se desnudava, libertadas as vestes como se foram uma desempregada pele. O governador finalizava elegâncias de cobra. O ofídio se manteve hasteado no microfone, depois largou-se. Quando se aguardava que se desmoronasse, afinal, o governador encobrado desatou a caminhar. Porque de humano lhe restavam apenas os pés, esses mesmos que ele cobrira de ornamento serpentífero.

        – Não aplauda, Clementina, por amor de Deus!

COUTO, Mia. Contos do nascer da Terra. 3. ed. Lisboa: Editorial Caminho, 1997. p. 101-103.

             Fonte: Livro Língua Portuguesa – Trilhas e Tramas – Volume 1 – Leya – São Paulo – 2ª edição – 2016. p. 132-5.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Canasta: jogo de cartas de baralho também chamado, no Brasil, de canastra ou tranca.

·        Desfaçatez: descaramento, cinismo; falta de vergonha ou de pudor.

·        Atacador: cordão, cadarço.

·        Bífida: fendida ou separada em duas partes, como a língua das serpentes.

·        Serpentífero: relativo a uma situação em que há ou em que se produz serpente ou cobra venenosa.

02 – Você conhece a literatura em prosa de algum escritor africano de língua portuguesa? Qual?

      Resposta pessoal do aluno.

03 – O realismo mágico também faria parte do contexto literário desse continente?

      Resposta pessoal do aluno.

04 – Qual seria o tema ou o assunto de um conto intitulado “A carteira de crocodilo”?

      Resposta pessoal do aluno.

05 – Leia as informações a seguir:

        A República de Moçambique, cuja capital é Maputo, situa-se na costa sudeste do continente africano. Foi uma colônia portuguesa e tornou-se independente em 25 de junho de 1975. Segundo estudos arqueológicos, os povos bantu se fixaram nessa região entre os séculos I e V. Além de agricultores, eles dominavam a metalurgia, ciência que estuda os processos de extração de metais e seu uso industrial ou a arte de trabalhar metais. Os portugueses chegaram pela primeira vez em Moçambique em 1497.

        Com base nessas informações, quem representariam as personagens governador-geral, Sacramento; sua mulher, Dona Francisca Júlia Sacramento; suas amigas; e os “íntimos e ilustres”?

      Todas essas personagens representam o colonizador português em Moçambique.

06 – Segundo estudiosos, esse conto (assim como “O edifício”, de Murilo Rubião) é filiado ao realismo fantástico.

a)   Que elementos desse conto de Mia Couto extrapolam a realidade, ou seja, podem ser considerados fantásticos?

As circunstâncias absurdas que envolveram a morte da senhora Dona Francisca Júlia Sacramento, esposa do governador-geral, que é devorada por um crocodilo que sai de sua bolsa de pele; e a metamorfose pública e gradual do corpo do governador em serpente.

b)   Como você interpreta a presença desses elementos fantásticos no conto “A carteira de crocodilo”?

No contexto, esses elementos foram usados com o objetivo de provocar a reflexão a respeito da arrogância, da vaidade, da hipocrisia, da inveja e de denunciar a realidade: a política colonialista, o oportunismo político, etc.

c)   O que o crocodilo e a serpente simbolizam no contexto?

Os nomes dos dois animais estão associados a aspectos negativos do ser humano. É chamada de cobra uma pessoa traiçoeira, maldosa. A expressão “lágrimas de crocodilo” está associada a fingimento. Tanto no Brasil como em Moçambique, a gíria crocodilar/crocodilagem tem o sentido pejorativo de “agir com falsidade, hipocrisia”.

d)   Que sentimentos, ações humanas e fatos reais são tematizados nesse conto?

A hipocrisia, a falsidade, a vaidade, a inveja, a exploração colonial, assim como o uso político das tragédias.

07 – Releia e explique no caderno cada um dos trechos a seguir:

a)    A Senhora Dona Francisca Júlia Sacramento, esposa do governador-geral, excelenciava-se pelos salões, em beneficentes chás e filantrópicas canastas. Exibia a carteirinha que o marido lhe trouxera das outras Áfricas, toda em substância de pele de crocodilo.

O trecho crítica de forma irônica a vaidade da mulher do político, que se mostrava superior e exibia sua carteira de crocodilo, que pode representar a exploração das colônias portuguesas da África. É uma crítica, também, às atividades sociais realizadas com o falso pretexto de fazer ações de caridade.

b)    As amigas se raspavam de inveja, incapazes de disfarce. Até a bílis lhes escorria pelos olhos. Motivadas pela desfaçatez, elas comentavam: o bichonho, assim tão desfolhado, não teria sofrido imensamente? Tal dermificina não seria contra os católicos mandamentos?

– E com o problema das insolações, o bicho, assim esburacado, apanhando em cheio os ultravioletas...

Crítica, de forma irônica, à inveja das “amigas” de Dona Francisca, aos falsos discursos religioso e ecológico, à hipocrisia. A palavra amigas foi usada no sentido irônico, em que se afirma o contrário do que se pensa.

c)    E o governador, sob o peso da desgraça? O homem ia de rota abatida. Lágrimas catarateavam pelo rosto. O dirigente recebeu o desfile das condolências. Vieram íntimos e ilustres. A todos ele cumprimentou, reservado, invisivelmente emocionado. Os visitantes se juntaram no nobre salão, aguardando palavras do dirigente. O governador avançou para o centro e anunciou não o luto mas, espantem-se cristãos, a inadiável condecoração do crocodilo. Em nome da protecção das espécies, explicou. A bem da ecologia faunística, acrescentou.

Ironiza a comemoração do marido pela viuvez, como se ele estivesse comemorando a morte da mulher ao condecorar o crocodilo; e critica os políticos que se apropriam do discurso ecológico e até da “própria desgraça” para obter ganhos políticos.

d)    – Cale-se, Clementina.; – Clemente-se, Clementina.; – Não aplauda, Clementina, por amor de Deus!

Uma personagem adverte uma outra, chamada Clementina, para que ela não expresse o que pensa e mantenha as aparências. É uma crítica irônica à hipocrisia das relações sociais e de poder.

08 – Baseando-se nos trechos lidos na atividade 7, responda:

        Nesse conto, o narrador de terceira pessoa é neutro, ou seja, ele só narra o que presencia, ou se posiciona perante os fatos? Explique sua resposta.

      O narrador posiciona-se, criticando e ironizando as personagens por meio da escolha das palavras, dos comentários e de descrições, como as seguintes: “As amigas se raspavam de inveja, incapazes de disfarce”; “O governador finalizava elegâncias de cobra”; “[...] invisivelmente emocionado [...]”; “[...] honroso indignitário [...]”; etc. Além disso, dirige-se ao leitor com interrogações: “E o governador, sob o peso da desgraça?”.

09 – O texto apresenta a voz do narrador, a do governador, a de uma personagem anônima que se dirige à personagem Clementina, fazendo-lhe advertências. Pelas advertências, é possível inferir a voz da personagem Clementina.

a)   Quem Clementina pode representar?

As pessoas que aplaudem e consideram justo o destino do governador e de sua mulher.

b)   O que a voz da personagem anônima pode representar?

As pessoas que, por algum interesse, querem manter as aparências.

10 – Nesse conto, Mia Couto criou neologismos, alterando a classe gramatical de várias palavras e aglutinando-as a outras. Qual é o feito do emprego desses neologismos no texto?

      Eles criam um efeito humorístico e também reflexivo, irônico, crítico e fantástico.

11 – Explique no caderno:

a)   O sentido e/ou a formação das palavras destacadas em:

·        A Senhora Dona Francisca Júlia Sacramento, esposa do governador-geral, excelenciava-se pelos salões, em beneficentes chás e filantrópicas canastas.

·        No resto, os testemunhadores nem presenciaram.

·        Acontecera em instantâneo momento: a malograda ia tirar algo da mala e sentiu que ela se movia, esquiviva

         Certo dia, uma das nobres damas trouxe a catastrágica novidade.

O termo excelenciava-se é um neologismo formando pela mudança de classe gramatical. Formado pelo adjetivo excelente e pela forma de tratamento excelência, tem o sentido de “exibia-se”. A palavra testemunhadores é usada com o sentido de pessoas presentes, que estavam no local do acontecimento. O termo esquiviva é um neologismo formado pelos adjetivos esquiva e viva: a carteira movimentou-se de forma defensiva e dela saiu um crocodilo vivo. O termo catastrágica é um neologismo formado pelos adjetivos catastrófica e trágica, com o objetivo de reforçar o ocorrido.

b)   O sentido das expressões destacadas em:

·        O sáurio se eminenciou a olhos imprevistos.

·        A todos ele cumprimentou, reservado, invisivelmente emocionado.

A expressão “se eminenciou a olhos imprevistos” tem o sentido de “se destacou, se fez ver, ganhou grandes proporções diante das pessoas presentes, que foram pegas de surpresa, pois não esperavam ver o que viram”. Brincadeira, humor com a expressão “visivelmente emocionado”, com o sentido de que não conseguia demonstrar emoção.

c)   O sentido da metáfora e da hipérbole em:

         Até a bílis lhes escorria pelos olhos.

     A expressão “bílis lhes escorria pelos olhos” é metáfora e hipérbole, com o sentido de muita inveja.

d)   O sentido da frase:

Clemente-se, Clementina.

     Clemente-se é um neologismo formado de verbo com base em substantivo. O nome da personagem pode ser uma ironia porque a palavra clemência tem o sentido de indulgência, bondade; e a palavra clemente tem o sentido de indulgente, bondoso.

12 – Explique a formação e/ou o sentido de mais estes neologismos criados por Mia Couto:

a)   Bichonho;

Neologismo formado com as palavras bicho + medonho, tem o sentido de bicho medonho, terrível.

b)   Carnibal;

Neologismo formado com as palavras derma/derme (do grego pele) + carnificina, tem o sentido de mortandade, grande extermínio ou carnagem de peles de animais.

c)   Dermificina;

Neologismo formado com as palavras carne + canibal, para reforçar a voracidade do crocodilo.

d)   Catarateavam.

Neologismo e hipérbole, para reforçar o sentido de lágrimas que cairiam como cataratas, ou cachoeiras.