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quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

RELATO DE MEMÓRIA: MACAMBOEZIO - WILLIAN BONNER - COM GABARITO

 Relato de Memória: Macambœzio

            Willian Bonner

Eu tinha seis anos e uma timidez paralisante. Morava no Tatuapé e era alfabetizado na Penha, na zona leste de São Paulo. Ia e voltava num ônibus escolar, daqueles que tinham uma porta só, na frente, ao lado do motor barulhento. Não os vejo mais nas ruas. Foram fracionados em vans coreanas.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjsrWQXMUkucubTPrcDsoHiSWYAsdAskU49xr2qr853eb1lZ72IZx_CPUYyfugRJxtvJZUxL-7pPOgKAi-NaWyQJc_o4XhKp6pmA-5Me4vJKOhLlQvXp4A0FnWFCw8842miC8ipcQeY0b6m1XJmt1oz1oIokb6Htd-FAVbW6QZYNPAM-od3J4QbMwAwGUw/s1600/ONIBUS.jpg


Num trajeto de ida, eu já estava num banco, quieto como uma ostra, quando entrou no ônibus um garoto branquinho e sardento, do meu tamanho. Sentou-se ao meu lado e começou a tagarelar. Contou uma piada e eu sorri. Contou outra, sorri de novo. Contou uma terceira piada que eu nem ouvi, enquanto revirava a memória, à procura de algo engraçado para retribuir. Ele terminou a terceira história e eu emendei, orgulhoso, o que me ocorreu de mais hilariante. Tinha ouvido de minha irmã mais velha:

— Meu amor, minha vida, minha privada entupida!

O garoto ergueu as sobrancelhas, arregalou os olhos e levou uma das mãos à boca.

Ele, escandalizado. Eu, petrificado. O ronco do ônibus, amplificado, ensurdecedor.

— Eu vou contar para a Diretora que você disse isso!

Entrei em pânico. Ele notou.

— Se você não me der uma bala eu vou contar para a Diretora! — ameaçou.

A chantagem foi enfática e imediata. Eu não tinha a bala. Nem o dinheiro. Prometi entregar o produto extorquido no dia seguinte. E cumpri. Fiz isso mais vezes, nos dois ou três dias que vieram depois.

Mas, em casa, à noite, aos olhos de meu pai, minha introspecção tornou-se um mistério que nem a timidez explicava. Eu não contei nada, constrangido com a barbaridade que tinha proferido a um colega. E das consequências desastrosas que aquilo teria se chegasse aos ouvidos da Diretora. Meu pai:

— Cuco (é como me chama), você anda meio macambúzio (é como se refere ao sentimento de tristeza). O que aconteceu?

Por vergonha, tentei disfarçar. Mas ele insistiu e eu contei. Foi a primeira vez na vida em que experimentei a sensação física de “botar os demônios pra fora”. No dia seguinte, quando o ônibus da escola se aproximou da casa do menino chantageador, não me vieram a taquicardia, a angústia. Ao me estender a mão, em cobrança da bala extorquida, ele ouviu meu primeiro discurso de improviso. Duas frases, apenas:

— Meu pai me disse que hoje não tem bala. E que eu e você vamos contar tudo isso para a Diretora.

A extorsão acabou. E começou um novo ciclo de minha infância. Todos os que ouviram essa história, nos últimos 40 anos, dividem a perplexidade entre minha ingenuidade e a precocidade do menino chantagista.

Para mim, hoje, pai de três crianças, o mais relevante ainda é o olhar de meu pai.

(William Bonner. In: Luís Colombini. Aprendi com meu pai. São Paulo: Saraiva. p. 235.)

Entendendo o texto

01. O texto lido é o relato de um episódio vivido pelo narrador.

a.   Em que fase da vida do narrador o episódio ocorreu?

Na infância.

b.   Em que cidade ele aconteceu?

Em São Paulo.

c.   Onde se passaram os eventos que fizeram parte do episódio?

              No ônibus escolar e na casa do narrador.

02. Releia estes trechos do texto:     

I. “Morava no Tatuapé, [...] Ia e voltava num ônibus escolar”

         II. “Não os vejo mais nas ruas.”

         III. “Contou uma piada e eu sorri.”

        IV. “ eu emendei, orgulhoso, o que me ocorreu de mais hilariante. Tinha ouvido de minha irmã mais velha”

        V. “Eu vou contar para a Diretora”

         VI. “Consequências desastrosas que aquilo teria se chegasse aos ouvidos da Diretora”

         Indique, em seu caderno, o trecho em que a(s) forma(s) verbal(is) destacada(s) se refere(m):

 IV a. a uma ação passada, ocorrida antes de outra, também passada;

III e IV b. a ações começadas e terminadas pontualmente no passado;

V. c. a uma ação futura;      

VI. d. a uma ação que depende do cumprimento de uma condição;

 II e. a uma ação no presente;

 I f. a ações passadas que ocorreram durante um período mais longo de tempo.

03. Na fala do pai do narrador que é reproduzida no relato, há dois trechos que estão entre parênteses. Veja:

“‒ Cuco (é como me chama), você anda meio macambúzio (é como se refere ao sentimento de tristeza). O que aconteceu?”

a.   Quais formas verbais indicam que esses trechos estão no presente, em relação ao narrador? é, chama, refere explicar o sentido de termos que ele julga serem desconhecidos.

b.   Qual a função desses comentários do narrador, no relato? dos leitores: seu apelido e uma palavra pouco usada atualmente.

c.   Levante hipóteses: Por que essas afirmações se referem ao presente e não ao passado?

         Porque provavelmente, quando o autor escreveu o relato, o pai ainda o chamava pelo apelido e ainda costumava utilizar a palavra macambúzio.

04. O relato em estudo foi escrito em uma linguagem de acordo com a norma-padrão, mas, em alguns momentos, o narrador procura se aproximar do interlocutor, lançando mão de determinados recursos. Identifique, nos trechos abaixo, a estratégia utilizada pelo autor para se aproximar de seus leitores.

a.   “Ia e voltava num ônibus escolar, daqueles que tinham uma porta só, na frente, ao lado do motor barulhento.”

             Por meio do uso do termo ônibus que supõe ser do conhecimento do leitor, o narrador faz uma referência a um modelo daqueles que tinham uma porta só, na frente, ao lado do motor barulhento.

b.   “eu já estava num banco, quieto como uma ostra” Ao se comparar a uma ostra, o narrador faz uma espécie de confissão ao leitor, ao mesmo tempo que procura criar um efeito de humor pela comparação inusitada.

c.   “começou a tagarelar”  

               A palavra tagarelar remete a um contexto informal.

05. Releia este trecho:

            Foi a primeira vez na vida em que experimentei a sensação física de “botar os demônios pra fora”.

            Trata-se de uma expressão que foi utilizada em sentido figurado e que é própria de outros contextos, em geral na descriação de situações dramáticas. No relato em estudo, a situação é relativamente pouco significativa, mas dramática do ponto de vista do narrador quando criança, dada a sua ingenuidade. Daí a adequação do uso das aspas.

         Levante hipóteses: Por que a expressão botar os demônios pra fora está entre aspas?

06. O penúltimo parágrafo do texto se inicia com a afirmação “A extorsão acabou”. Discuta com os colegas e o professor e levante hipóteses: O que fez com que a chantagem tivesse fim?

Os dois meninos podem ter ido conversar com a diretora, ou o outro menino, com medo da diretora, se sentiu ameaçado e parou de fazer chantagem.

07. O texto lido foi extraído de um livro intitulado Aprendi com meu pai. Discuta com os colegas e o professor: O que o narrador desse relato aprendeu com o pai?

         Sugestões: Aprender a importância de falar sempre a verdade; a ter coragem para enfrentar as consequências dos atos praticados; a tomar cuidado para não se revelar a pessoas desconhecidas.

 

quinta-feira, 24 de maio de 2018

RELATO: SUA PRESENÇA EM MINHA VIDA FOI FUNDAMENTAL - ZIRALDO - COM GABARITO


RELATO: Sua presença em minha vida foi fundamental
      Ziraldo     
                       
    Engraçado, eu não tenho um professor inesquecível. Tenho muitos professores inesquecíveis. A primeira professora que minha memória grava não tinha carinho comigo. Botava todos os meninos branquinhos no colo, mas a mim não. Um dia, sentei no colo dela por minha conta e ela me botou no chão. Era uma escola particular, papai não tinha como pagar as mensalidades, era o patrão dele quem pagava. Vai ver, daí vinha minha falta de prestígio com a professora. Devia ter esquecido o nome dela, mas não esqueci. Ela se chamava Dulce, mas não era nada doce.
    Felizmente, não fiquei muito tempo nessa escola, mas por cauda dela, vim vindo pela vida curtindo uma enorme carência afetiva. Que consegui transformar em desenhos, livros, peça de teatro, logotipos, cartazes, ilustrações – tudo a preços baixos. (Pelo menos no início. Agora, depois da fama, a preços mais condizentes com a fama…)
    Minha segunda professora marcante foi dona Glorinha d’Ávila, mãe do poeta e escritor mineiro João Ettiene Filho. Ela era discípula de Helena Antipoff, que revolucionou o ensino básico de Minas na década de 40. Dona Helena percebeu logo que não dava pra mudar a cabeça das professoras mineiras, que tinham ainda penduradas na parede da sala de aula as assustadoras palmatórias. Então, formou 150 jovens idealistas e as espalhou por Minas Gerais, com a missão de mudar a escola por dentro. Uma dessas jovens era a dona Glorinha, que, entre outras coisas e contra a vontade das velhas professoras do Grupo Escolar e de sua rabugenta diretora, retirou a palmatória furadinha da parede de minha classe. Só mais tarde foi que percebi a luta de dona Glorinha. Que ela venceu. Descobrindo – bem mais tarde – que sua presença em minha vida tinha sido fundamental para que não a perdesse por aí. A vida, digo. Um domingo fiz a primeira comunhão e não ganhei santinho. Na segunda-feira, ela mandou me chamar na secretaria. “Você fez a primeira comunhão ontem, não fez?” Como é, meu Deus, que uma pessoa adulta, tão importante, pôde prestar atenção num menininho pardo fazendo primeira comunhão naquela catedral tão grande? (Pois minha cidadezinha tinha catedral…) Ela aí perguntou: “Você ganhou um santinho de recordação?” Não havia ganho, não. Aí ela abriu a gaveta, tirou um santinho lindo e escreveu uma dedicatória onde li as palavras “brilhante” e “futuro” que, na hora, não fizeram o menor sentido para mim. Somente um pouco mais tarde descobri que ela sabia tudo da minha vida, vinha me observando no meio de centenas de alunos do velho Grupo e até já havia mandado chamar meu pai para conversar…
    Engraçado, agora, remoendo essas lembranças, descubro que tive uma professora maluquinha, sim. Foi dona Glorinha d’Ávila, tão pequenininha, tão frágil, tão bonitinha…
                                        Fonte: “Revista Nova Escola”, set/98, p.58.

Entendendo o texto:
01 – A quem o escritor Ziraldo se refere quando afirma “Sua presença em minha vida foi fundamental”? Por que ele faz a referida afirmação?
      Ziraldo se refere à professora Glorinha. Ela exerceu fundamental importância na vida do escritor, pois o tratava com carinho e acreditava em seu potencial, vindo a escrever “futuro” e “brilhante” em um santinho de primeira comunhão com o qual o presenteou.

02 – Coloque V para as afirmações verdadeiras e F para as afirmações falsas:
(V) Helena Antipoff revolucionou o ensino básico de Minas na década de 40.
(F) A professora Dulce era carinhosa com Ziraldo.
(V) A professora Glorinha é mãe do poeta e escritor mineiro João Ettiene Filho.
(F) Ziraldo não teve nenhum professor inesquecível em sua vida.
A sequência CORRETA é:
a) V, V, F, F.      
b) F, F, V, V.     
c) V, F, V, F.     
d) F, V, F, V.

03 – Dulce e Dona Glorinha tinham em comum o fato de serem professoras. Mas, ao compará-las, percebemos que elas eram bastante diferentes. Por quê?
      A professora Dulce era preconceituosa, no que tange à cor da pele e à condição financeira do Ziraldo, então seu aluno. Já a professora Glorinha era carinhosa, tratando os alunos sem qualquer distinção.

04 – Na frase “Somente um pouco mais tarde descobri que ela sabia tudo da minha vida...”, a palavra destacada refere-se à:
a) Glorinha                     
b) Dulce                     
c) Helena Antipof       
d) diretora do Grupo Escolar.

05 - Como você deve ter percebido, o relato foi organizado em ordem linear, ou seja, Ziraldo relatou os fatos na mesma ordem em que eles aconteceram. Reescreva os itens a seguir, que resumem o relato do escritor, ordenando-os de acordo com a sequência em que são mencionados no texto.
a) O desenhista informa que ficou pouco tempo na escola em que trabalhava a professora Dulce, porém deve ao lugar uma enorme carência afetiva, que foi positivamente transformada em obras.
b) Dona Glória foi responsável por tirar a palmatória furadinha da sala de aula do escritor.
c) Ziraldo relata que a primeira professora de quem se lembra foi negativamente marcante. Ele achava não ter muito prestígio com ela, provavelmente porque era o patrão de seu pai quem pagava a mensalidade da escola.
d) Ao remoer as lembranças, o desenhista afirma ter descoberto que dona Glorinha foi sua professora maluquinha.
e) Ziraldo conta que, na igreja, após sua primeira comunhão, ao contrário dos outros meninos, ele não recebeu um santinho de recordação.
f) A segunda professora marcante na vida do escritor foi discípula de Helena Antipoff, que revolucionou o ensino básico mineiro por se opor às palmatórias.
g) Em seu relato, Ziraldo diz ter descoberto que a presença de dona Glorinha em sua vida foi fundamental.
h) Dona Glorinha viu o descaso com Ziraldo na igreja e, no outro dia, deu-lhe um lindo santinho com uma dedicatória.
Resposta: c,a,f,b,g,e,h,d
06- Por que a primeira professora do narrador é inesquecível para ele?
      Porque ela deixou marcas negativas(impressões negativas) na vida dele.
07 - A professora Helena Antipoff revolucionou o ensino básico de Minas Gerais na década de 1940.
    a) Com que objetivo ela provocou essa revolução?
         Com o objetivo  de mudar a forma de ensinar em Minas, que ainda estava no tempo da palmatória.
     b) Como ela conseguiu atingir seu objetivo?
          Ela percebeu que não podia mudar nem a mentalidade nem o modo de ação dos educadores com experiência, então formou 150 jovens idealistas, que ficaram encarregadas de promover essas transformações nas escolas mineiras por dentro.
   08 - Compare: em que aspectos as professoras Dulce e Glorinha se diferenciam?
          Dulce, como o próprio narrador diz, não era nada doce. O texto relata fatos que permitem percebê-la como uma pessoa preconceituosa e pouca atenciosa com ele. Já Glorinha é descrita como uma pessoa inovadora, atenciosa, sensível e afetiva.
09 - O narrador, ao contar com detalhes os fatos relacionados às professoras Dulce e Glorinha, também as descreve? Justifique sua resposta.
Sim, por meio da narração dos fatos, Ziraldo também caracteriza as professoras.
10 - Qual é a contribuição dos trechos descritivos ao relato das experiências escolares do narrador?
Os trechos descritivos contribuem para que o leitor visualize mentalmente as professoras consideradas inesquecíveis para o narrador, tanto pelo lado negativo como pelo positivo.
11 - O texto lido é um relato de memória. Responda:
      a) Em que foco narrativo ele foi escrito?
          Foco narrativo em primeira pessoa.
      b) Qual é a importância de o narrador adotar esse foco no relato de memórias?
          Ao adotar a perspectiva de primeira pessoa, o narrador reforça sua participação nos acontecimentos, ou seja, passa a ideia de que, de fato, é um personagem do relato.







segunda-feira, 30 de abril de 2018

RELATO DE MEMÓRIA: EM ALGUM LUGAR DO PASSADO(QUE SAUDADE DA PROFESSORINHA)- PAULO FREIRE - COM GABARITO


RELATO: EM ALGUM LUGAR DO PASSADO

          Um olhar, um carinho, uma palavra amiga... Às vezes, pequenos gestos podem marcar vidas, provocar descobertas, selar destinos. Em algum lugar do passado, está um pouco de nós, está aquilo que deu origem ao ser que somos hoje. Que pessoas teriam iluminado nossos caminhos? Que palavras nos teriam despertado e desafiado para a viagem que se iniciava?

        QUE SAUDADE DA PROFESSORINHA

         A primeira presença em meu aprendizado escolar que me causou impacto, e causa até hoje, foi uma jovem professorinha. É claro que eu uso esse termo, professorinha, com muito afeto. Chamava-se Eunice Vasconcelos, e foi com ela que eu aprendi a fazer o que ela chamava de “sentenças”.
         Eu já sabia ler e escrever quando cheguei à escolinha particular de Eunice, aos 6 anos. Era, portanto, a década de 20. Eu havia sido alfabetizado em casa, por minha mãe e meu pai, durante uma infância marcada por dificuldades financeiras, mas também por muita harmonia familiar. Minha alfabetização não me foi nada enfadonha, porque partiu de palavras e frases ligadas à minha experiência, escritas com gravetos no chão de terra do quintal.
         Não houve ruptura alguma entre o novo mundo que era a escolinha de Eunice e o mundo das minhas primeiras experiências – o de minha velha casa do Recife, onde nasci, com suas salas, seu terraço, seu quintal cheio de árvores frondosas. A minha alegria de viver, que me marca até hoje, se transferia de casa para a escola, ainda que cada uma tivesse suas características especiais. Isso porque a escola de Eunice não me amedrontava, não tolhia minha curiosidade.
         Quando Eunice me ensinou era uma meninota, uma jovenzinha de seus 16, 17 anos. Sem que eu ainda percebesse, ela me fez o primeiro chamamento com relação a uma indiscutível amorosidade que eu tenho até hoje, e desde há muito tempo, pelos problemas da linguagem e particularmente os da linguagem brasileira, a chamada língua portuguesa no Brasil. Ela com certeza não me disse, mas é como se tivesse dito a mim, ainda criança pequena: “Paulo, repara bem como é bonita a maneira que a gente tem de falar! ...” É como se ela me tivesse chamado.
         Eu me entregava com prazer à tarefa de “Formar sentenças”. Era assim que ela costumava dizer. Eunice me pedia que colocasse numa folha de papel tantas palavras quantas eu conhecesse. Eu ia dando forma às sentenças com essas palavras que eu escolhia e escrevia.
         Fui criando naturalmente uma intimidade e um gosto com as ocorrências da língua – os verbos, seus modos, seus tempos... A professorinha só intervinha quando eu me via em dificuldade, mas nunca teve a preocupação de me fazer decorar regras gramaticais.
         Mais tarde ficamos amigos. Mantive um contato próximo com ela, sua família, sua irmã Débora, até o golpe de 1964. Eu fui para o exílio e, de lá, me correspondia com Eunice. Tenho impressão de que durante dois anos ou três mandei cartas para ela. Eunice ficava muito contente.
        Não se casou talvez isso tenha alguma relação com a abnegação, a amorosidade que a gente tem pela docência. E talvez ela tenha agido um pouco como eu: ao fazer a docência o meio da minha vida, eu termino transformando a docência no fim da minha vida.
        Eunice foi professora do Estado, se aposentou, levou uma vida bem normal. Depois morreu, em 1977, eu ainda no exílio. Hoje, a presença dela são saudades, são lembranças vivas. Me faz até lembrar daquela música antiga, do Ataulfo Alves: “Ai, que saudade da professorinha, que me ensinou o bê-á-bá”.

                                                              Paulo Freire. Nova Escola, n° 81.

 Entendendo o texto:
01 – No texto lido, o autor, Paulo Freire, relata um episódio marcante de sua vida. Qual foi esse episódio?
       O momento em que foi para a escola e teve contato com sua professora.

02 – Um momento difícil para muitas crianças é a passagem da casa para a escola.
     a) Como foi esse momento para o menino Paulo Freire?
      Foi tranquilo sem ruptura; a escola era uma espécie de continuidade da asa.

     b)  Por que esse processo aconteceu desse modo?
      Porque a escola não tolhia a curiosidade dele. Além disso, o fato de ele já saber ler pode ter ajudado a tornar esse processo natural.

03 – Quando Paulo Freire entrou na escola, com 6 anos, já sabia ler e escrever. Apesar disso, nunca esqueceu as lições que teve com sua primeira professora.
     a) O que ele aprendeu com ela? Como era feito esse trabalho?
      Aprendeu a formar sentenças. Ele escrevia no papel as palavras que conhecia e depois, com elas, formava sentenças.

     b) Que curiosidade a professora despertou no menino?
      Despertou a curiosidade sobre a língua portuguesa.

     c) Como ela agia em relação a conteúdos gramaticais?
      Ela não ensinava regras; interferia apenas quando o menino precisava de auxílio.

04 – A professora Eunice não se casou. Para Paulo Freire, isso provavelmente se deveu à dedicação ao magistério. Ele diz: “E talvez ela tenha agido um pouco como eu: ao fazer a docência o meio da minha vida, eu termino transformando a docência no fim da minha vida”.
     a) O que significa, no contexto, a docência como meio de vida?
      Dar aulas para viver; ter um emprego, um salário, etc.

     b)  E como fim?
      A finalidade, o motivo principal de viver.

05 – Ao relatarmos fatos do passado, é natural que aflorem alguns sentimentos. Que sentimentos afloram no relato de Paulo Freire? Comprove sua resposta com um trecho do texto.
       Saudades, conforme o trecho “a presença dela são saudades”.

06 – Paulo Freire ficou conhecido internacionalmente pelo método de alfabetização que inventou. Diferentemente de criadores de outros métodos, que às vezes tratam de assuntos que nada têm a ver com o educando, Paulo Freire propõe, em um de seus livros: Essa proposta de alfabetização está relacionada com as primeiras experiências de Paulo Freire no mundo da leitura e da escrita? Justifique sua resposta.
       Sim, pois as sentenças que escrevia eram criadas por ele, a partir das palavras que ele próprio registrava no papel. Professor: comente com os alunos que, ao alfabetizar adultos, Paulo Freire propunha que as palavras e frases usadas na alfabetização nascessem da própria experiência deles. Assim, palavras como tijolo, construção, lavoura, milho, entre outras, eram as ferramentas de trabalho dos professores.

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

RELATO DE MEMÓRIA: ANARQUISTAS GRAÇAS A DEUS - ZÉLIA GATTAI - COM GABARITO

RELATO DE MEMÓRIA: ANARQUISTAS GRAÇAS A DEUS
                                                       ZÉLIA GATTAI

        Naqueles tempos, a vida em São Paulo era tranquila. Poderia ser ainda mais, não fosse a invasão cada vez maior dos automóveis importados, circulando pelas ruas da cidade; grossos tubos, situados nas laterais externas dos carros, desprendiam, em violentas explosões, gases e fumaça escura. Estridentes fonfons de buzinas, assustando os distraídos, abriam passagem para alguns deslumbrados motoristas que, em suas desabaladas carreiras, infringiam as regras de trânsito, muitas vezes chegando ao abuso de alcançar mais de 20 quilômetros à hora, velocidade permitida somente nas estradas. Fora esse detalhe, o do trânsito, a cidade crescia mansamente. Não havia surgido ainda a febre dos edifícios altos; nem mesmo o “Prédio Martinelli” – arranha-céu pioneiro em São Paulo, se não me engano do Brasil – fora ainda construído. Não existia rádio, e televisão, nem em sonhos. Não se curtia som em aparelhos de alta fidelidade. Ouvia-se música em gramofones de tromba e manivela. Havia tempo para tudo, ninguém se afobava, ninguém andava depressa. Não se abreviavam com siglas os nomes completos das pessoas e das coisas em geral. Para que isso? Por que o uso de siglas? Podia-se dizer e ler tranquilamente tudo, por mais longo que fosse o nome por extenso – sem criar equívocos – e ainda sobrava tempo para ênfase, se necessário fosse.
        Os divertimentos, existentes então, acessíveis a uma família de poucos recursos como a nossa, eram poucos. Os valores daqueles idos, comparados aos de hoje, no entanto, eram outros; as mais mínimas coisas, os menores acontecimentos, tomavam corpo, adquiriam enorme importância. Nossa vida simples era rica, alegre e sadia. A imaginação voando solta, transformando tudo em festa, nenhuma barreira a impedir meus sonhos, o riso aberto e franco. Os divertimentos, como já disse, eram poucos, porém suficientes para encher o nosso mundo.

GATTAI, Zélia. Anarquistas graças a Deus. Rio de Janeiro: Record, 1986. p. 23.

 Leia o texto  para responder às questões de 1 a 4:

1.No relato de memória extraído do livro Anarquista graças a Deus, a autora faz algumas comparações entre o passado e o presente. Dos trechos transcritos a seguir, assinale o que não está fazendo uma comparação entre passado e presente:

a) (X“Poderia ser ainda mais, não fosse a invasão cada vez maior dos automóveis importados”.
b) (  ) “Não se curtia som em aparelhos de alta fidelidade. Ouvia-se música em gramofones de tromba e manivela.”
c) (  ) “Os valores daqueles idos, comparados aos de hoje, no entanto, eram outros”.
d) (  )  “Havia tempo para tudo, ninguém se afobava, ninguém andava com pressa.”

2.   Para que o leitor construa uma imagem do passado rememorado pela autora, ela usa termos que qualificam e caracterizam algumas passagens de suas memórias. Assinale a alternativa em que os termos destacados não são caracterizadores:

a) (  ) “Nossa vida simples era ricaalegre e sadia.”
b) (  ) “o riso aberto e franco”.
c) (  ) “abriam passagem para alguns deslumbrados motoristas que, em suas desabaladas carreiras”.
d) (X) “Havia tempo para tudo, ninguém se afobava”.

3.   Assinale o trecho no qual a presença da voz do narrador, interrompendo o relato, expressa um recurso de interação entre autor e leitor:
a) (  ) “Não havia surgido a febre dos edifícios altos; nem mesmo o “Prédio Martinelli”.
b) (X) “Para que isso? Para que o uso de siglas?”
c) (  ) “Os divertimentos, existentes então, acessíveis a uma família de poucos recursos como a nossa, eram poucos.”
d) (  ) “Nossa vida simples era rica, alegre e sadia.”

4.   Assinale a alternativa que expressa as marcas temporais que identificam um passado distante:
a) (  ) “Havia tempo para tudo” e “Não havia surgido ainda”;
b) (  ) “ninguém se afobava” e “sobrava tempo para ênfase”;
c) (  ) “Fora esse detalhe” e “ainda sobrava tempo para ênfase”;
d) (X) “Naqueles tempos” e “daqueles idos”.