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domingo, 21 de julho de 2019

TEXTO: BOBAGENS - SÍRIO POSSENTI - COM QUESTÕES GABARITADAS

TEXTO: BOBAGENS
  
                    Sírio Possenti
       Vamos, agora, ler um texto escrito por um linguista brasileiro e voltado para o público em geral, em que ele discute uma afirmação sobre línguas africanas que ouviu do apresentador Jô Soares na televisão:

        Um programa como o de Jô Soares não é o melhor exemplo para ser estudado por quem deseja descobrir como funciona uma entrevista. Um dos lugares comuns sobre a questão diz que um bom entrevistador é o que faz o entrevistado falar até mesmo o que ele não desejaria. O programa do Jô não é o melhor exemplo pela simples razão de que o entrevistado dele é sempre uma escada: o que diz serve para uma tirada do entrevistador. Dependendo do tema e do entrevistado, a coisa funciona bem. Às vezes, no entanto, a entrevista desanda. O que se explica facilmente: existem temas em relação aos quais, mesmo lendo bastante, da cozinha ao teatro, Jô não tem a mínima habilitação.
       Um dia desses os entrevistados eram Martinho da Vila e o Presidente de uma Associação de Magistrados. Mesmo cansado, pensei em assistir. O Martinho é um grande papo, e a questão do Judiciário está pegando fogo.
      A conversa com Martinho ia bem, até que Jô perguntou sobre seu conhecimento de línguas africanas, já que de alguns discos participam músicos angolanos cantando músicas nativas. Martinho disse o óbvio: que, tendo estado na África várias vezes, mesmo em temporadas curtas, aprendeu um pouco. Não conhece as línguas, mas se vira (e acrescentou que o mesmo ocorre em relação ao francês, o que mostra que ele é normal). Mas Jô o interrompeu para comentar que se pode aprender as línguas africanas mesmo em pequenas temporadas, porque elas têm poucas palavras. E botou para funcionar suas leituras de almanaque. Informou que em suaíli as palavras querem dizer muitas coisas. E deu um exemplo, uma certa palavra que pode ser empregada em várias situações. Decidi dormir, perdi a entrevista com o magistrado. Achei que não suportaria uma lição de direito constitucional do mesmo nível.
       Disse que Jô acionou suas leituras de almanaque, mas a coisa é mais grave do que isso: trata-se do grosseiro preconceito linguístico e cultural. Se a gente abre um dicionário – Jô aparentemente abre, tem até vários em formato eletrônico –, a coisa mais interessante que se pode descobrir é que todas as palavras têm muitos sentidos, que todas as línguas são como o suaíli ou o suaíli é como todas as línguas.
        Pode-se fazer isso aleatoriamente. Cito um exemplo do português e um do inglês. Tome o verbo “ligar” e está lá: apertar, prender, unir, fazer aderir, estabelecer relações, unir por vínculos morais e afetivos, prestar atenção, acionar o motor, fazer girar o disco do telefone, unir em combinação química (ver o famoso Aurélio, que registra ainda outros sentidos). Vejam agora a palavra inglesa “pack”: para começar, pode ser verbo ou nome. Alguns sentidos: coleção de coisas; pacote contendo um certo número de coisas semelhantes; maneira pela qual alguma coisa é empacotada; grande quantidade; grupo de animais que vivem juntos; soma total de algo, como frutas ou vegetais, processadas ao mesmo tempo; comprimir na forma de massa compacta; ir embora rapidamente, etc. (MacMillan Contemporary Dictionary).
        A experiência nossa de cada dia mostra que qualquer palavra tem muitos sentidos. Que esse não é um “problema” de línguas faladas por povos considerados inferiores.
        Com suas intervenções no campo, Jô confirma uma tese corrente e, por azar, verdadeira: as línguas ainda são o espaço em que vigoram os mais grosseiros preconceitos.

POSSENTI, Sírio. Mal comportadas línguas. Curitiba: Criar, 2000, p.21-23.
Fonte: Livro: Português: língua e cultura. FARACO, Carlos Alberto. Vol.1. Editorial BASE

ESTUDO DO TEXTO

1)   Qual é o assunto principal do texto?
O assunto principal é a desinformação do apresentador de tevê sobre como as línguas funcionam (as bobagens que ele disse sobre as línguas africanas – o que, antes de tudo, revela um preconceito: o de que os africanos são ‘primitivos’).

2)   Como o autor rebate a afirmação de Jô Soares sobre as línguas africanas?
Ele rebate a afirmação de Jô Soares sobre as línguas africanas mostrando que em qualquer língua todas as palavras têm muitos sentidos, ou seja, “Todas as línguas são como o suaíli ou o suaíli é como todas as línguas” (4º parágrafo) e cita exemplos do português e do inglês para sustentar seu argumento (5º parágrafo).

3)   Por que tal afirmação do apresentador é um grosseiro preconceito linguístico e cultural?
É grosseiro preconceito porque parte do pressuposto de que as línguas africanas são inferiores, são faladas por sociedades primitivas, rudimentares.

4)   Por que o autor desistiu de ver a segunda entrevista naquela noite?
Considerou que, se o segundo tema fosse tratado do mesmo modo que o tema das línguas, seria insuportável (“Achei que não suportaria uma lição de direito constitucional do mesmo nível” – 3º parágrafo).

5)   Que conclusão tira o autor do episódio?
Ele conclui que, infelizmente, as línguas são ainda o espaço em que vigoram os mais grosseiros preconceitos.

6)   Não perca a boa organização do texto de Possenti, resumida abaixo:
·        1º parágrafo: introdução do texto (o autor apresenta um juízo geral sobre o programa de entrevista de Jô Soares);
·        2º parágrafo: o autor se refere a um programa específico (que teria duas entrevistas);
·        3º parágrafo: comenta a entrevista com Martinho da Vila, em que Jô Soares faz sua absurda afirmação (note que este parágrafo termina com o autor nos informando que desistiu de assistir à segunda entrevista mencionada no parágrafo anterior);
·        4º parágrafo: o autor faz um comentário geral sobre a afirmação de Jô Soares;
·   5º parágrafo: usa exemplos do português e do inglês para sustentar seu comentário;
·        6º parágrafo resume a exemplificação;
·    7º parágrafo: conclui com uma observação geral (“as línguas ainda são o espaço em que vigoram os mais grosseiros preconceitos”).

     Descrição da estrutura do texto: dê destaque a este resumo para que os alunos desenvolvam progressivamente a percepção de que os textos são organizados, são, portanto, planejados.