sábado, 18 de maio de 2019

ROMANCE: GRANDE SERTÃO: VEREDAS - (FRAGMENTO) - JOÃO GUIMARÃES ROSA - COM GABARITO

Romance: Grande Sertão: veredas –(fragmento)
                  João Guimarães Rosa

        De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos. Vivi puxando difícil de difícel, peixe vivo no moquém: quem mói no asp’ro, não fantasêia. Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossegos, estou de range rede. E me inventei neste gosto, de especular ideia. O diabo existe e não existe? Dou o dito. Abrenúncio. Essas melancolias. O senhor vê: existe cachoeira; e pois? Mas cachoeira é barranco de chão, e água se caindo por ele, retombando; o senhor consome essa água, ou desfaz o barranco, sobra cachoeira alguma? Viver é negócio muito perigoso...


        Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum! – é o que digo. O senhor aprova? Me declare tudo, franco – é alta mercê que me faz: e pedir posso, encarecido. Este caso – por estúrdio que me vejam – é de minha certa importância. Tomara não fosse... Mas, não diga que o senhor, assisado e instruído, que acredita na pessoa dele?! Não? Lhe agradeço! Sua alta opinião compõe minha valia. Já sabia, esperava por ela – já o campo! Ah, a gente, na velhice, carece de ter sua aragem de descanso. Lhe agradeço. Tem diabo nenhum. Nem espírito. Nunca vi. Alguém devia de ver, então era eu mesmo, este vosso servidor. Fosse lhe contar... Bem, o diabo regula seu estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens. Até: nas crianças – eu digo. Pois não é ditado: “menino – trem do diabo”? E nos usos, nas plantas, nas águas, na terra, no vento... Estrumes. ... O diabo na rua, no meio do redemunho...
        Hem? Hem? Ah. Figuração minha, de pior pra trás, as certas lembranças. Mal haja-me! Sofro pena de contar não... Melhor, se arrepare: pois, num chão, e com igual formato de ramos e folhas, não dá a mandioca mansa, que se come comum, e a mandioca-brava, que mata? Agora, o senhor já viu uma estranhez? A mandioca-doce pode de repente virar azangada – motivos não sei; às vezes se diz que é por replantada no terreno sempre, com mudas seguidas, de manaíbas – vai em amargando, de tanto em tanto, de si mesma toma peçonhas. E, ora veja: a outra, a mandioca-brava, também é que às vezes pode ficar mansa, a esmo, de se comer sem nenhum mal. E que isso é? Eh, o senhor já viu, por ver, a feiura de ódio franzido, carantonho, nas faces duma cobra cascavel? Observou o porco gordo, cada dia mais feliz bruto, capaz de, pudesse, roncar e engolir por sua suja comodidade o mundo todo? E gavião, corvo, alguns, as feições deles já representam a precisão de talhar para adiante, rasgar e estraçalhar a bico, parece uma quicé muito afiada por ruim desejo. Tudo. Tem até tortas raças de pedras, horrorosas, venenosas – que estragam mortal a água, se estão jazendo em fundo de poço; o diabo dentro delas dorme: são o demo. Se sabe? E o demo – que é só assim o significado dum azougue maligno – tem ordem de seguir o caminho dele, tem licença para campear?! Arre, ele está misturado em tudo.
        Que o que gasta, vai gastando o diabo de dentro da gente, aos pouquinhos, é o razoável sofrer. E a alegria de amor – compadre meu Quelemém, diz. Família. Deveras? É, e não é. O senhor ache e não ache. Tudo é e não é ... Quase todo mais grave criminoso feroz, sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus-amigos! Sei desses. Só que tem os depois – e Deus, junto. Vi muitas nuvens.

                                          15. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982. p. 11-2.
Entendendo o romance:

01 – De acordo com o romance, qual o significado das palavras abaixo:

·        Abrenúncio: do latim abrenuntio, interjeição que tem o sentido de “credo”, “Deus me livre”.

·        Manaíba: do tupi, muda de mandioca.

·        Assisado: que tem siso, juízo; ajuizado.

·        Moquém: grelha feita de varas usada para secar ou assar carne e peixe.

·        Azougue: do árabe, pessoa muito viva e esperta.

·        Peçonha: veneno.

·        Campear: andar pelo campo, procurar.

·        Carantonho: cara grande e feia.

·        Quicé: do tupi, o mesmo que “faca velha”.

02 – Riobaldo, o narrador, conta sua história a um interlocutor que está presente, mas cuja voz não se manifesta explicitamente na narrativa.
a)   Identifique um trecho do texto em que a fala de Riobaldo leva em conta a presença do interlocutor.
“O senhor vê”; “Explico ao senhor”; etc.

b)   No trecho: “Hem? Hem? Ah. Figuração minha [...]”, o que o interlocutor deve ter perguntado a Riobaldo?
Deve ter perguntado o que foi que Riobaldo disse. (Riobaldo deve ter tido uma fantasia e dito “O diabo na rua, no meio do redemunho...”).

03 – Riobaldo afirma que, antes, quando era jagunço, não tinha tempo para fantasiar, mas agora, aposentado (de “range rede”), dera para especular ideias. Qual é o assunto que lhe interessa?
      A existência ou não do demônio.

04 – O excerto lido, embora narrativo, apresenta uma estrutura dissertativo-argumentativa, isto é, o narrador desenvolve uma ideia central com argumentos e, no final, chega a uma conclusão.
a)   Qual é a tese ou ideia central – apresentada no 2° parágrafo – que o narrador pretende desenvolver?
A de que o diabo vive dentro dos homens (e das coisas), é o lado sombrio de cada um.

b)   O exemplo da mandioca fundamenta a tese adequadamente? Por quê?
Sim, pois sendo ela uma mandioca-doce, boa para comer, pode tornar-se uma mandioca venenosa, o que prova que o mal está dentro das coisas e das pessoas.

05 – Segundo o 3° parágrafo, o mal está nas coisas: nas aves, nos animais, nas pedras, está misturado em tudo.
a)   De acordo com o último parágrafo, o que pode combater o mal?
O sofrimento e o amor.

b)   “Tudo é e não é ...”. Que sentido tem essa frase no contexto? Os argumentos expostos fundamentam essa afirmação?
Para o pensamento dialético de Riobaldo, tudo é relativo, depende do ponto de vista – o que fica claro com o exemplo da cachoeira. Os demais argumentos também comprovam a relatividade do bem e do mal.

c)   Compare a conclusão com a tese. Há coincidência ou contradição entre elas?
Há coincidência. Para Riobaldo o diabo vige nos crespos do homem, isto é, o mal e o bem estão dentro de cada ser.

06 – Não a chega a ficar claro em Grande sertão se Riobaldo fizera ou não um pacto com o demônio. A própria personagem tem dúvida se houve ou não o pacto.
a)   Considerando a etapa da vida em que se encontra Riobaldo, por que essa questão lhe interessa tanto?
Porque, como Riobaldo já tem uma idade avançada, se o demônio existe, ele em breve levará sua alma.

b)   Pela conclusão a que chega, Riobaldo tem motivos para continuar se preocupando?
Não, pois, de acordo com a tese da personagem, o diabo não existe como pessoa, mas se manifesta no lado ruim de cada ser.

c)   Na sua opinião, Riobaldo acredita em seus próprios argumentos?
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Talvez não, pois, se acreditasse, não teria necessidade de argumentar sobre seu ponto de vista e querer saber a opinião do interlocutor.

07 – A linguagem regionalista de Guimarães Rosa é um dos traços da originalidade da obra.
a)   O excerto lido é uma narração oral ou escrita? Identifique no texto marcas que justifiquem sua resposta.
Trata-se de uma narração oral, conforme as marcas de oralidade: “e pois?”; “explico”; “Não?”; “Ah”; “Hem? Hem?”; etc.

b)   Com a ajuda do glossário apresentado no final do texto, comente a linguagem do autor, levando em conta a seleção vocabular, a estruturação sintática e a melodia das frases.
A linguagem do autor se caracteriza por apresentar um vocabulário de origem diversa, expressões regionais, prosódia típica do homem sertanejo.

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