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domingo, 7 de agosto de 2022

CRÔNICA: PALAVRAS EMPRESTADAS - IVAN ÂNGELO - COM GABARITO

Crônica: Palavras emprestadas

               Ivan Ângelo

        A leitora Mafalda, sob o título “Sugestão de crônica”, mandou-me um e-mail protestando contra a invasão de expressões estrangeiras no dia a dia do brasileiro. Enviou até fotos de vitrines dos arredores de sua casa, na região da Rua Oscar Freire. Nas imagens leem-se “Spring/Summer Collection 2011”, “Adidas is all in” e, numa vitrine ainda tapada, “See you soon”.

        Visionária, a leitora sonhava que eu pudesse contribuir para “mudar o uso do inglês nas ruas”, motivar algum político “a comprar essa briga”, lembrava o fracasso recente de Aldo Rebelo e dizia ser aquela uma questão de patriotismo. “Não acha?”

        Não acho, leitora, leitores. Com jeito, vou tentar explicar.

        Quando me alfabetizei, em 1943, havia cerca de 40 000 palavras dicionarizadas no português, segundo Domício Proença Filho, da Academia Brasileira de Letras. Hoje, são mais de 400 000; alguns filólogos estimam em 600 000. Ora, leitora, de onde brotaram tantas palavras? Dos novos hábitos da população, das inovações tecnológicas, das migrações, das gírias, dos estrangeirismos.

        Já vê, cara Mafalda, que a consequência dos estrangeirismos não é o empobrecimento da língua, e sim o enriquecimento. Nós nos irritamos com os abusos, sim, como acontece com qualquer abuso.

        A questão do estrangeirismo se aclara com a pergunta: com quem a pessoa quer se comunicar? Se usa palavras que muitas pessoas não entendem, não vai se comunicar com elas. Mesmo usando só o português. No caso das frases em inglês na Rua Oscar Freire, aqueles comerciantes não estão querendo se comunicar com quem não as entende. Fazendo um paralelo meio absurdo: aqueles rabiscos dos pichadores, quem entende? Eles. É coisa deles para eles.

        Há quem use a expressão estrangeira por pedantismo, quando há termo equivalente brasileiro. Mas por que tentar impedir alguém de ser pedante? É um direito dele. Há quem use por ser um modismo, mas por que ir contra a moda? Ela passa.

        Na maioria dos casos, usa-se o estrangeirismo por necessidade. Há palavras estrangeiras inevitáveis, porque designam coisas novas com mais exatidão e rapidez: air bag, shopping center, e-mail, flash, paparazzi, smoking, slide, outdoor, jazz, rock, funk, marketing, stand-by, chip, overdose, replay, videogame, piercing, rush, checkup, blush, fashion – e milhares de outras.

        Havia inevitáveis que acabaram se adaptando. Já tivemos goal-keeper (goleiro), goal (gol; o Estadão escrevia “goal” até os anos 1960), offside (impedimento, impedido), corner (escanteio), volleybol (voleibol, vôlei), basketball (basquete), surf (surfe) – e tantas outras.

        Centenas delas ficaram bem à vontade quando aportuguesadas: uísque, gol, futebol, lanchonete, drinque, iogurte, chique, conhaque, cachê, omelete, bife, toalete, clube, gangue, ringue, garçom, lorde, picles, filme, time, sanduíche, cachorro-quente, lanche, avião, televisão – e por aí vai.

        Muitas ficaram bem bacaninhas no nosso dia a dia, mesmo usadas do jeito que chegaram: gay, jeans, pizza, show, shopping, tour, ciao, topless, manicure, vitrine...

        Um grande número delas é dispensável, entra na conta dos pedantes, pois para dizer o que elas querem dizer temos boas palavras nossas de uso corrente: sale, off, hair dresser, suv, personal trainer, laundry, pet shop, fast-food, ice, freezer, prêt-à-porter, on-line, mailing list, bullying...

        A leitora lembra o deputado Aldo Rebelo e sua tentativa fracassada de botar o assunto dentro de uma lei. Não dá certo, amiga. Já houve outros. O mais ridicularizado foi o latinista e filólogo carioca Antônio de Castro Lopes, figura da passagem do século XIX para o XX. Na época dele, era da França que vinham os modos, as modas e as palavras que copiávamos. Machado de Assis foi um dos que o ironizaram, numa crônica de 1889. Caiu no ridículo sua tentativa de transformar football em balipodo, abat-jour em lucivelo, piquenique em convescote, chauffeur em cinesíforo... – palavras que acabaram aportuguesadas pelo som, felizmente.

        O povo falante há de peneirar o que merecer permanência.

ÂNGELO, Ivan. Revista Veja. São Paulo: Abril, 25 maio 2011. Disponível em: http://vejasp.abril.com.br/matéria/palavras-emprestadas. Acesso em: 30 nov. 2015.

             Fonte: Livro Língua Portuguesa – Trilhas e Tramas – Volume 1 – Leya – São Paulo – 2ª edição – 2016. p. 227-8.

Entendendo a crônica:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Visionário: aquele que tem sonhos, utopias.

·        Aldo Rebelo: político que, como deputado federal, apresentou em 1999 um projeto de lei que proibiria o uso de palavras estrangeiras em diversas situações.

·        Pedante: pessoa que se expressa exibindo conhecimentos que realmente não possui; vaidosa, pretensiosa, afetada.

·        Estadão: como é conhecido, popularmente, o jornal O Estado de S. Paulo.

02 – Você sabe o que é estrangeirismo? E neologismo?

      Resposta pessoal do aluno.

03 – Como e por que motivo os neologismos se formam ou são criados? Você conhece algum? Qual?

      Resposta pessoal do aluno.

04 – É possível que uma língua se forme sem a incorporação de termos estrangeiros?

      Resposta pessoal do aluno.

05 – O uso de palavras estrangeiras é positivo ou negativo para o nosso idioma?

      Positivo, porque enriqueci a língua.

06 – Responda:

a)   Qual é o tema dessa crônica?

O uso de termos estrangeiros em nossa língua: pontos positivos e negativos.

b)   O que motivou a escrita da crônica?

Uma carta em que uma leitora (Mafalda) solicita que o cronista se posicione a respeito do uso de estrangeirismos em nossa língua.

07 – Releia:

        Visionária, a leitora sonhava que eu pudesse contribuir para “mudar o uso do inglês nas ruas”, motivar algum político “a comprar essa briga” [...].

a)   Nesse trecho, qual é o sentido da palavra visionária?

No trecho, visionária tem o sentido de sonhadora, devaneadora, utópica.

b)   Baseando-se naquilo que você já aprendeu a respeito o processo de evolução da língua, explique por que o cronista pode ter caracterizado a leitora dessa forma.

O cronista considera a leitora visionária porque sabe que é impossível impedir a evolução da língua. A incorporação de palavras de outro idioma à língua acontece de forma natural e não pode ser regulada por meio de leis, de decretos ou mesmo da emissão de opiniões de especialistas sobre o assunto.

08 – Segundo o cronista, que relação se pode estabelecer entre os comerciantes da Rua Oscar Freire e os grafiteiros?

      Ambos buscam atingir determinado grupo social (público-alvo) por meio de uma linguagem bem específica.

09 – O cronista expõe seu posicionamento e apresenta argumentos para sustentá-lo.

a)     Qual é a posição do cronista em relação ao uso de estrangeirismos? Que argumentos ele usa para defender sua posição?

O cronista aceita o uso de estrangeirismos com maturidade. Segundo ele, os estrangeirismos são usados por necessidade, quando não há um vocábulo equivalente na língua, ou por modismo ou pedantismo, nos casos em que há vocábulo equivalente.

b)     O cronista condena o uso de estrangeirismos em alguma situação? Justifique.

Não. Ele respeita até quem os usa por pedantismo ou modismo. Em casos em que são necessários, os estrangeirismos contribuem para o enriquecimento da língua.

10 – Em 1943, época em que o cronista se alfabetizou, havia cerca de 40 mil palavras na língua portuguesa, segundo Domício Proença Filho. Hoje, são mais de 400 mil palavras dicionarizadas. A que o autor da crônica atribui o aumento de vocábulos em nossa língua?

      Segundo o cronista, as palavras surgem com os novos hábitos da população, as inovações tecnológicas, as migrações, as gírias, os estrangeirismos.

11 – Releia o trecho a seguir e explique-o no caderno:

        “Havia inevitáveis que acabaram se adaptando. Já tivemos goal-keeper (goleiro), goal (gol; o Estadão escrevia “goal” até os anos 1960), offside (impedimento, impedido), corner (escanteio), volleybol (voleibol, vôlei), basketball (basquete), surf (surfe) – e tantas outras.”

      As palavras estrangeiras são incorporadas à língua e acabam sendo aportuguesadas.

12 – A crítica ao uso de estrangeirismos é recente? Justifique sua resposta.

      Não. O cronista cita o latinista e filólogo carioca Antônio de Castro Lopes, figura da passagem do século XIX, que propôs a substituição de palavras estrangeiras por palavras da língua portuguesa. Cita também o projeto do político Aldo Rebelo (SP), que quando deputado tinha o mesmo objetivo e fracassou em seus intentos.

13 – De acordo com a crônica, o que determina a permanência ou não de estrangeirismos na língua?

      É o seu uso ou não pelos falantes da língua: o povo. “O povo falante há de peneirar o que merecer permanência.”

 


sexta-feira, 22 de abril de 2022

CONTO: NEGÓCIO DE MENINO COM MENINA - IVAN ÂNGELO - COM GABARITO

 Conto: Negócio de menino com menina

            Ivan Ângelo

        O menino, de uns dez anos, pés no chão, vinha andando pela estrada de terra da fazenda com a gaiola na mão. Sol forte de uma hora da tarde. A menina, de uns nove anos, ia de carro com o pai, novo dono da fazenda. Gente de São Paulo. Ela viu o passarinho na gaiola e pediu ao pai:

        – Olha que lindo! Compra pra mim?

        O homem parou o carro e chamou:

        – Ô menino.

        O menino voltou, chegou perto, carinha boa. Parou do lado da janela da menina. O homem:

        – Esse passarinho é pra vender?

        – Não senhor.

        O pai olhou para a filha com cara de deixa pra lá. A filha pediu suave como se o pai tudo pudesse:

        – Fala pra ele vender.

        O pai, mais para atendê-la, apenas intermediário:

        – Quanto você quer pelo passarinho?

        – Não tou vendendo, não, senhor.

        A menina ficou decepcionada e segredou:

        – Ah, pai, compra.

        Ela não considerava, ou não aprendera ainda, que negócio só se faz quando existe um vendedor e um comprador. No caso, faltava o vendedor. Mas o pai era um homem de negócios, águia da Bolsa, acostumado a encorajar os mais hesitantes ou a virar a cabeça dos mais recalcitrantes:

        – Dou dez mil.

        – Não senhor.

        – Vinte mil.

        – Vendo não.

        O homem meteu a mão no bolso, tirou o dinheiro, mostrou três notas, irritado.

        – Trinta mil.

        – Não tou vendendo, não, senhor.

        O homem resmungou “que menino chato” e falou pra filha:

        – Ele não quer vender. Paciência.

        A filha, baixinho, indiferente às impossibilidades de transação:

        – Mas eu queria. Olha que bonitinho.

        O homem olhou a menina, a gaiola, a roupa encardida do menino, com um rasgo na manga, o rosto vermelho de sol.

        – Deixa comigo.

        Levantou-se, deu a volta, foi até lá. A menina procurava intimidade com o passarinho, dedinho nas gretas da gaiola. O homem, maneiro, estudando o adversário:

        – Qual é o nome deste passarinho?

        – Ainda não botei nome nele, não. Peguei ele agora.

        O homem, quase impaciente:

        – Não perguntei se ele é batizado não, menino. É pintassilgo, é sabiá, é o quê?

        – Aaaah. É bico-de-lacre.

        A menina, pela primeira vez, falou com o menino:

        – Ele vai crescer?

        O menino parou os olhos pretos nos olhos azuis.

        – Cresce nada. Ele é assim mesmo, pequenininho.

        O homem:

        – E canta?

        – Canta nada. Só faz chiar assim.

        – Passarinho besta, hein?

        – É. Não presta pra nada, é só bonito.

        – Você pegou ele dentro da fazenda?

        – É. Aí no mato.

        – Essa fazenda é minha. Tudo que tem nela é meu.

        O menino segurou com mais força a alça da gaiola, ajudou com a outra mão nas grades. O homem achou que estava na hora e falou já botando a mão na gaiola, dinheiro na outra mão.

        – Dou quarenta mil! Toma aqui.

        – Não senhor, muito obrigado.

        O homem, meio mandão:

        – Vende isso logo, menino. Não tá vendo que é pra menina?

        – Não, não tou vendendo, não.

        – Cinquenta mil! Toma! – e puxou a gaiola.

        Com cinquenta mil se comprava um saco de feijão, ou dois pares de sapatos, ou uma bicicleta velha.

        O menino resistiu, segurando a gaiola, voz trêmula.

        – Quero, não, senhor. Tou vendendo não.

        – Não vende por quê, hein? Por quê?

        O menino, acuado, tentando explicar:

        – É que eu demorei a manhã todinha pra pegar ele e tou com fome e com sede, e queria ter ele mais um pouquinho. Mostrar pra mamãe.

        O homem voltou para o carro, nervoso. Bateu a porta, culpando a filha pelo aborrecimento.

        – Viu no que dá mexer com essa gente? É tudo ignorante, filha. Vam’bora.

        O menino chegou pertinho da menina e falou baixo, para só ela ouvir:

        – Amanhã eu dou ele para você.

        Ela sorriu e compreendeu.

ÂNGELO, Ivan. O ladrão de sonhos e outras histórias. São Paulo: Ática, 1994. p. 9-11.

Fonte: Livro – PORTUGUÊS: Linguagens – Willian R. Cereja/Thereza C. Magalhães – 5ª Série – 2ª edição - Atual Editora – 2002 – p. 173-6.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Águia (figurado): pessoa de grande talento e perspicácia, notável.

·        Encorajar: dar coragem a, animar, estimular.

·        Greta: fenda, abertura estreita.

·        Hesitante: que hesita, indeciso, vacilante.

·        Intermediário: que está de permeio, que intervém, mediador, árbitro.

·        Maneiro: hábil, jeitoso.

·        Recalcitrante: obstinado, teimoso.

·        Transação: combinação, ajuste, operação comercial.

02 – O texto trata de uma “negociação” entre pessoas de nível social diferente: o menino, de um lado, e o homem e a menina, de outro.

a)   Que dados do texto comprovam que o menino é pobre?

O menino está de pés no chão, sua roupa está encardida e com um rasgo na manga; seus pais, provavelmente, são lavradores na fazenda, empregados do homem que quer comprar o passarinho.

b)   Que dados do texto comprovam que o homem e sua filha são ricos?

O homem é o dono da fazenda, tem carro, mora em São Paulo, trabalha na Bolsa de Valores, vai oferecendo cada vez mais dinheiro ao menino para satisfazer um capricho de sua filha, que provavelmente tem todos os seus desejos satisfeitos.

c)   Supostamente, quem tem mais força para vencer na negociação? Por quê?

O homem, porque pode amedrontar o menino, intimidá-lo, tem poder, é rico, é o dono, o patrão.

03 – Mesmo diante das negativas do menino, a menina insiste em que o pai compre o passarinho. O que esse comportamento revela sobre o tipo de mundo em que ela vive?

      Esse comportamento revela que a menina é mimada e vive num mundo em que o dinheiro pode comprar tudo, satisfazer todos os seus desejos ou caprichos.

04 – O pai, homem experiente no mundo dos negócios, usa estratégias para convencer o menino e, nessas tentativas, vai ficando cada vez mais irritado.

a)   Quais são as primeiras estratégias?

Oferecer dinheiro; primeiro, dez mil; depois, vinte, trinta.

b)   Já desistindo da compra, diante da insistência da filha o pai tenta novamente. Que novas estratégias ele usa?

Ele conversa de forma amistosa com o menino, buscando intimidade, estudando-o como adversário num negócio.

c)   Com que argumento o pai da menina pretendia encerrar a negociação?

Dizendo que tudo na fazenda lhe pertencia.

05 – No final do texto, no auge da irritação, o homem dia à filha: “Viu no que dá mexer com essa gente? É tudo ignorante, filha. Vam’bora”.

a)   Podemos comparar o homem do texto com a raposa da fábula “A raposa e as uvas”. Por quê?

Porque, tal como ocorre na fábula, em que a raposa, não conseguindo apanhar as uvas, diz que elas estão verdes, o homem, não conseguindo convencer o menino, diz que ele é ignorante.

b)   O que revela em relação ao menino e à sua gente essa fala do homem?

Revela desprezo; ou que o homem se acha mais importante do que o menino; ou que, para ele, o menino e sua gente não passam de gentalha, são pessoas socialmente inferiores a ele.

06 – O passarinho tem um valor ou um significado diferente para cada uma das personagens.

a)   Que valor o passarinho tem para o pai da menina?

Para o pai da menina, o passarinho tem o valor de mercadoria e, além disso, representa um desafio; porém ele é vencido nesse desafio.

b)   E que valor ele tem para o menino e para a menina?

As crianças querem o passarinho pelo que ele é, para brincar com ele.

07 – Pelo final da história, você acha que o menino deu uma lição na menina e n pai dela? Por quê?

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Sim, pois pai e filha tiveram uma lição de que o dinheiro não compra tudo, de que é preciso respeitar o desejo das outras pessoas, etc.

08 – Observe algumas falas das personagens do texto:

        “— Você pegou ele dentro da fazenda?” (Pai da menina).

        “— Fala pra ele vender.” (Menina).

        “— Ainda não botei nome nele, não. Peguei ele agora.” (Menino)

a)   Para se comunicar, as personagens usam a variedade padrão da língua ou uma variedade não padrão?

Usam uma variedade não padrão.

b)   Na situação em que eles se encontram – uma conversa entre um adulto e duas crianças –, o uso dessa variedade é adequado? Por quê?

Sim, pois eles estão numa situação informal e apenas um é adulto; a situação não exige o emprego da variedade padrão.

c)   Como você acha que o pai da menina diria a primeira frase se ele estivesse trabalhando na Bolsa?

Provavelmente ele empregaria a variedade padrão. Ficaria assim: Você o pegou dentro da fazenda?

 

 

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

CONTO: TALISMÃ - IVAN ÂNGELO - COM GABARITO

 Conto: Talismã

               Ivan Ângelo

     Eu não teria seguido o homem pelas ruas nem presenciado as coisas que fez acontecer à sua passagem se ele não levasse sua flor – uma só, de longo caule, três folhas viçosas, vermelha: cravo –, se não a levasse com extremo cuidado, como coisa mais preciosa do que flor. Logo percebi que a estranheza do próprio homem contaminava a cena toda. Na cabeça, chapéu, cavanhaque, suíças, bigodes. Vestia um paletó justo de casimira cinza escura, colete de seda creme, jabô em vez de gravata, calças listradas de cós muito alto. Calçava borzeguins e polainas. Parecia ter saído de uma fotografia antiga e não tinha como voltar.

        As duas coisas juntas, a figura e o jeito como levava sua flor, não pareciam perturbar as outras pessoas, que passavam por elas como se aquilo acontecesse todos os dias às cinco horas da tarde de suas vidas. Indiferente por sua vez às pessoas, ele atravessava a avenida central com aquele seu jeito de não saber como se leva uma flor. O que o fazia diferente das outras pessoas que levavam flores era a concentração: ele mais tomava conta do que levava. Segurava-a na metade do caule com três dedos da mão esquerda; a mão direita, um pouco em concha, protegia-a. Como se fosse uma vela acesa! – era isso. O homem levava a flor como habitualmente se leva uma vela acesa: defendendo, prestando atenção, olhando a chama.

        Se fosse um buquê de rosas, uma corbelha, talvez não parecesse estranho, pode ser que eu não o tivesse percebido, ou que o considerasse apenas um desses atores sem emprego que hoje em dia levam mensagens vivas a um aniversariante. Se levasse uma rosa frágil, despetalável, talvez parecesse natural protege-la com tanto cuidado. Mas um cravo vermelho, taludo, viçoso... um só...

        Sem perceber, fui sendo envolvido, fui-me entrosando num curso de vida que não era o meu, não era o das coisas que me diziam respeito. Coisa feita: estava espreitando um homem que surpreendera num momento de exceção, invadia um outro mundo. Se ele fizesse um gesto banal, se cheirasse a flor, por exemplo, eu me libertaria: ah, é um homem qualquer com uma flor qualquer. Mas não: ele se movimentava com um encanto calculado, como um ator, e era eu a plateia. Ninguém mais parecia interessado. Diabos e anjos sabem para quem aparecem.

        Na tentativa de incluí-lo no mundo corriqueiro, costurei hipóteses. Enterro. Impossível: flor vermelha, uma só, um sorriso invisível. Namorada. Ia leva-la para uma namorada. Improvável: um homem com seu estilo mandaria um buquê, por mensageiro. Presente para a namorada. Possível, mas... um homem de uns sessenta anos, com aquelas roupas, parecia ridículo ou fora do papel se estivesse protegendo como preciosidade uma simples flor de namorada. Nada, nele, parecia ridículo. Bizarro, mas não ridículo. Levava-a para a esposa. Hipótese inadequada: maridos sabem que esposas não se contentam com um cravo único, querem buquê, e de rosas.

        Pode ser que à sua passagem já estivessem acontecendo pequenas mudanças de ordem, antes que eu percebesse, alterações imperceptíveis a olhos descuidados, como os meus até então, atentos mais à figura do que às suas circunstâncias. Quando me dei conta de que o sinal de trânsito abrira para ele e para os outros pedestres em tempo rapidíssimo, e que um segundo antes o homem como que erguera rapidamente o cravo e deixara de protege-lo por um momento, senti um arrepio e suspeitei que ele tinha feito aquilo acontecer, tinha apressado o sinal de pedestres. Suspeitei mais: que coisas como aquelas já vinham acontecendo e eu tinha me recusado a ver.

        Entrou em uma confeitaria. Lotada. Pude ver seus olhos a percorrer a vitrina, a lambiscar tortinhas, sequilhos, docinhos, à procura. Olhos cinzentos, como os de um cão siberiano. Mal encontrou – com um ah! – o que queria, materializou-se uma balconista solícita e saiu levando uma sacolinha pendurada no dedo, antes dos que já estavam lá há mais tempo. Na calçada, por onde eu tinha de avançar aos encontrões, davam-lhe caminho, gentis. Rostos preocupados desanuviavam-se à sua passagem. Parou aparentemente para prender as presilhas da polaina próxima a uma mendiga que amamentava um bebê mulato raquítico. O ritmo dos passantes, a pressa, o rumo, aparentemente não se alteravam, mas algo inusitado começou a acontecer naquele momento: atarefadas como abelhas, e com naturalidade como se fizessem aquilo todos os dias, as pessoas encheram em alguns instantes a cuia da mulher de moedas, anéis, notas altas. O homem da flor seguiu seu caminho depois de arrumar os sapatos, aparentemente alheio àquilo tudo. Andava com agilidade e graça diferentes da pressa cansada dos citadinos vesperais em fim de jornada. Novos eventos inesperados aconteciam no seu caminho. Um ônibus que atropelou um rapazinho e ia passando por cima dele parou de repente, travou, quebrou. A buzina do carro de um gorducho irritado com o trânsito que parou atrás do ônibus emudeceu contra a vontade dele. Desprovido da sua arma, o gorducho passou a dar socos no miolo do volante. Não aconteceu só com ele: nenhuma buzina soava. O rapazinho se levantou, reanimado, e tudo voltou a andar, junto. Ninguém parecia perceber que não havia acaso nesses acontecimentos. Sem dar na vista, o homem da flor com certeza se divertia pelo lado de dentro.

        Parou numa esquina, olhou para os três lados, não sei se escolhendo milagres ou rumo. Seus olhos siberianos cruzaram com os meus tropicais e os prenderam por um breve momento. Vamos?, ele disse. Obrigado, eu disse. No tempo entre essas duas falas algo que me escapa se passou. Tive a impressão de estar de volta quando disse obrigado. Só uma impressão. Não havia nada nada nada de que eu lembrasse ou que o indicasse. Como se voltasse de uma distração. Depois desse momento, algo mudou em mim. Não tenho mais medo do destino ou do futuro, não sinto mais a angústia que irmana os homens. Nada de ruim acontece realmente com bilhões e bilhões de pessoas, nada que piore verdadeiramente suas vidas ou as faça sofrer mais do que estão habituadas a suportar, mas elas não sabem que é assim que vai ser. A diferença entre mim e elas, que me torna um pouco humano, é que eu sei que nada de ruim vai me acontecer. Desde aquele dia.

        Naquela esquina, às cinco horas da tarde do centro da cidade de São Paulo, o homem sorriu para mim discretamente e levantou a mão com a flor. Um táxi parou, como se produzido por aquele gesto. Antes de entrar no táxi, despediu-se com um aceno de cabeça e, num exagero de mágico, ultima graça antes de deixar o picadeiro, jogou para o ar sua flor, que se transformou em pássaro e desapareceu no céu, em gracioso voo.

             Ivan Ângelo. O ladrão de sonhos e outras histórias. São Paulo: Ática, 1994.

Fonte: Língua Portuguesa. Viva Português. 9° ano. Editora Ática. Elizabeth Campos. Paula Marques Cardoso. Silvia Letícia de Andrade. 2ª edição. 2011. P. 94-8.

Entendendo o conto:

01 – Escreva no caderno que perguntas você se fez durante a leitura do texto.

      Resposta pessoal do aluno.

02 – Sente-se com dois ou três colegas e discutam as resposta possíveis às questões que cada um levantou durante a leitura.

      Resposta pessoal do aluno.

03 – O conto “Talismã” foi escrito em primeira pessoa. A forma como o narrador está inserido na cena pode ser representada por apenas uma das ideias a seguir:

a)   Uma pessoa contando para a outra o que conversou com um amigo.

b)   Uma pessoa comentando com outra o próprio comportamento.

c)   Uma pessoa contando detalhes do comportamento de outra.

d)   Uma pessoa descrevendo todos os movimentos e sensações de outra.

04 – É pelo olhar do narrador que testemunhamos as cenas. No caderno, façam uma síntese de cada parágrafo do conto. Destaquem com suas palavras os principais elementos dessas cenas, reconstruindo o percurso narrativo. Se necessário, deem suas impressões sobre esses elementos:

      Resposta pessoal do aluno. Sugestões:

·        Parágrafo 1 = O narrador resolveu seguir um homem porque ele carregava um cravo com cuidado e vestia-se com roupas antigas.

·        Parágrafo 2 = O homem, indiferente às pessoas que passavam por ele, levava a flor protegendo-a, como se ela fosse uma vela.

·        Parágrafo 3 = O narrador comenta que o modo delicado de levar uma flor tão viçosa como um cravo lhe causou admiração.

·        Parágrafo 4 = O narrador sente-se envolver pelos movimentos aparentemente calculados do homem e isso o surpreende.

·        Parágrafo 5 = O narrador conta as hipóteses que levantou para tentar tornar o homem mais comum e justificar seu gesto solene com a flor.

·        Parágrafo 6 = O narrador suspeita que o homem é capaz de fazer com que as coisas aconteçam de acordo com o seu desejo.

·        Parágrafo 7 = O narrador nota de modo mais claro a sequência de eventos inesperados e favoráveis ocorridos com a passagem do homem.

·        Parágrafo 8 = O narrador trava um rápido, mas profundo contato com o homem. Isso o transforma e lhe dá a certeza de que nada de ruim vai lhe acontecer.

·        Parágrafo 9 = O homem sorri para o narrador, lança para o ar a flor, que se transforma em um pássaro.

05 – Em que parágrafo o narrador passa a observar a influência do homem sobre os acontecimentos à sua volta?

      No sexto parágrafo.

06 – No caderno, relacionem todas as alterações ocorridas por influência da passagem do homem que carregava a flor.

      Ele apressou o sinal dos pedestres; em uma confeitaria, uma balconista apareceu assim que ele escolheu o doce; as pessoas davam-lhe passagem de maneira gentil; rostos preocupados desanuviavam-se a sua passagem; pessoas encheram a cuia de uma mendiga com notas altas e objetos de valor; um ônibus travou no momento em que passaria por cima de um rapazinho que atropelara; a buzina de um motorista irritado com o ônibus emudeceu; o rapazinho atropelado levantou-se, refeito; após cruzar os olhos com os olhos do homem, o narrador percebeu uma profunda transformação em seu ser.

07 – Para o narrador, os eventos que testemunhou são extraordinários porque rompem a ordem previsível dos fatos.

a)   Diante das mesmas situações narradas, o que se poderia esperar que acontecesse?

As dificuldades naturais enfrentadas pela maioria das pessoa, como muito tempo de espera, falta de gentileza, comportamentos egoístas, mesquinhos ou mesmo a morte do rapaz atropelado, caso o ônibus passasse por cima dele.

b)   Que comportamentos extraordinários, surpreendentes, portanto, são observados pelo narrador?

O narrador observa a bondade, a gentileza, a simpatia e a solução positiva de um evento que poderia ser transformado em tragédia.

c)   Baseando-se nas respostas dadas aos itens anteriores, concluam: Os eventos observados pelo narrador são mágicos, ou seja, só poderiam ocorrer por meio de uma interferência sobrenatural?

Não são mágicos esses eventos; ao contrário, eles são realmente possíveis, no entanto, não são comuns, daí a admiração do narrador por eles.

d)   Na opinião de vocês, o que faz o narrador acreditar ser aquele homem com um flor o responsável por todos os eventos a sua volta?

Resposta pessoal do aluno. Sugestão: O narrador impressionado com o jeito de ser do homem, passa a enxergar a bondade das pessoas, gestos que talvez ele nunca tivesse notado.

08 – O narrador percebe uma transformação depois que seus olhos cruzaram com os do homem. Que transformação é essa?

      O narrador deixa de ter medo do destino ou do futuro por ter ganhado a certeza de que nada de ruim poderia acontecer a ele.

09 – Segundo a lógica do trecho abaixo, o que seria mais humano?

        “A diferença entre mim e elas, que me torna um pouco humano, é que eu sei que nada de ruim vai me acontecer. Desde aquele dia.”

      O medo, a angústia diária por causa das incertezas da vida.

10 – De acordo com o texto, o que você leu sobre talismãs. Então, responda:

a)   Que poderes uma pessoa que acredita em um talismã imagina que esse objeto tem?

O poder de dar sorte, de levar a fazer as escolhas certas, de evitar que algum mal lhe aconteça.

b)   No texto, a que elemento é atribuído o poder de talismã? Justifique sua resposta.

No texto, à flor foi atribuído o poder de talismã; primeiro porque ela é levada com imenso cuidado, com grande solenidade, depois, porque um evento mágico é atribuído a ela, sua transformação em um pássaro.

c)   O narrador conta que se transformou após cruzar o olhar com o do homem da flor. Na sua opinião, a confiança depositada em um objeto ou em um acontecimento pode realmente promover uma mudança na forma de enxergar a realidade?

Resposta pessoal do aluno.

d)   A que deve ser atribuída essa mudança suave, mas tão significativa na vida do narrador?

Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Pode ser atribuída ao elemento mágico (a flor) e ao homem pela confiança que o narrador passou a ter nas circunstâncias e em si mesmo após ter cruzado seus olhos com os dele.