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sexta-feira, 20 de outubro de 2023

ENSAIO: DOR - RUBEM ALVES - COM GABARITO

 ENSAIO: Dor

          Rubem Alves

        GOSTO DA ADÉLIA PRADO por várias razões. É poeta. Tem o jeitão mineiro. E é teóloga. Sempre que ela fala sobre os mistérios do mundo sagrado eu me calo e medito. Quase sempre as palavras dela iluminam as minhas dúvidas. Sugestão para algum estudante que esteja à procura de tema para dissertação: "A Teologia da Adélia Prado"...

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjAvT_J6AN-0mWhuQxi4_Ake6rK55dLdA9sFFWQqHoAsNxM-FzqR3Cko13DJFOzAOjMoel4Efo1tQH9QpT3sS-1azsKXIvUe4z1O-KOlQ8JipCZszXeS8YsXy6HJ8ggAx-UxJT_WsNVR-LbWaz30j-V3GK1yZ7cJEddzalI37iexWSQlPWZcJs140qQrh8/s1600/ADELIA.jpg


        Mas hoje peço perdão. Discordo do que ela escreveu. Estava falando sobre a coisa mais terrível que há no mundo, o demônio, e foi isso, mais ou menos, o que ela escreveu. Digo "mais ou menos" porque não sei de cor e não posso consultar os livros dela que estão encaixotados, prontos para uma mudança, que julgo, será a última... Foi isso que acho que ela disse: "O céu será igualzinho a essa vida, menos uma coisa: o medo..." Tanta coisa boa! Não é preciso mais nada. O que está aí chega. Precisa só tirar uma coisa, uma única coisa, e a Terra se transformará no céu. Qual é o nome dessa coisa terrível? Ela responde: o medo.

        Concordo. Mas acho que tem coisa pior, que é a causa de todos os medos: a dor. Nunca tive medo de cálculo renal. A despeito de nunca ter tido medo, ele veio, sem pedir licença e sem consultar se eu tinha medo ou não. Foi assim que conheci pela primeira vez a dor do inferno. Cessam todos os pensamentos. O corpo só deseja uma coisa: parar de sentir dor, a qualquer preço.

        Dor não tem jeito de explicar. Bernardo Soares diz que tudo o que é sentimento é inexplicável. O artista, para comunicar seus sentimentos inexplicáveis, se vale de um artifício: invoca um sentimento "parecido".

        De que comparação vou me valer para explicar a dor a alguém que não a está sentindo? Só sabe o que é a dor aquele que a está sentindo, no presente. Enquanto a dor está doendo, meu corpo -não minha cabeça- sabe o que ela é. Passada a dor, ela fica na memória. Passa a morar no passado. Mas isso que está na memória não é conhecimento da dor porque o passado não dói. A memória da dor, por terrível que tenha sido, não me dá conhecimento da dor, depois que ela se foi.

        Minha memória mais antiga de dor me leva de volta à roça onde vivi quando menino. Lembro-me, mas não sinto. Acho até engraçado. Era dor de dente. A dor fazia ele inchar até ficar do tamanho do universo- e eu, chorando, sem saber contar a minha dor, dizia que tinha inveja das galinhas que não tinham dentes... Foi meu primeiro encontro.

        Mais tarde ela voltou sem se anunciar. Não a mesma. Cada dor é única. Chegou bruta, definitiva. Lutei usando as armas que se compram nas farmácias. Inutilmente. Levaram-me (nesse ponto eu já não era dono de mim mesmo; estava à mercê dos outros) então para o hospital. As injeções são mais potentes que os comprimidos. Aplicaram-me seis Buscopan. A dor não tomou conhecimento. Ficou mais forte. Comecei a vomitar. O médico, reconhecendo a derrota dos recursos penúltimos, dirigiu-se à enfermeira e disse o nome do último, nenhum mais forte: "Aplica uma Dolantina nele..."

        Ela aplicou. Passados cinco minutos, senti a mais deliciosa sensação que tive em toda minha vida. Não era sensação de nada. Que me importava música, sexo ou flores? Era simplesmente a sensação de não ter dor. Pensei se essa euforia não deveria ser o estado normal da alma, sempre que o corpo não estivesse sentindo dor... Rindo e feliz, brinquei que o Paraíso morava dentro de uma ampola de Dolantina...

Rubem Alves. Folha de S. Paulo, 27.07.2010. Adaptado.

Entendendo o texto:

01 – Qual é o ponto de discordância do autor em relação ao que Adélia Prado escreveu sobre o céu?

      O autor discorda de Adélia Prado quando ela diz que o céu será igual à vida na Terra, exceto pelo fato de que não haverá medo. Ele acredita que há algo pior do que o medo, que é a dor.

02 – Qual elemento o autor considera pior do que o medo, que é a causa de todos os medos?

      O autor acredita que a dor é pior do que o medo, pois a dor é a causa de todos os medos.

03 – Como o autor descreve a experiência da dor que teve devido a um cálculo renal?

      O autor descreve a dor do cálculo renal como uma experiência extrema e avassaladora que fez com que ele desejasse desesperadamente que a dor parasse a qualquer custo.

04 – De acordo com o autor, por que a dor é difícil de explicar?

      O autor afirma que a dor é difícil de explicar porque é um sentimento que só pode ser verdadeiramente compreendido por quem a está sentindo no presente. A memória da dor, uma vez que passou, não proporciona um conhecimento verdadeiro da dor.

05 – O autor compartilha uma memória pessoal de dor na roça quando era menino. O que causou essa dor?

      A dor que o autor compartilha de sua infância foi causada por uma dor de dente, que o fez chorar e desejar não ter dentes, como as galinhas.

06 – Como a dor foi tratada quando o autor teve uma dor mais intensa e bruta?

      Quando o autor teve uma dor intensa e bruta, ele foi levado ao hospital, onde foram administradas seis injeções de Buscopan. No entanto, a dor não cedeu, e o médico prescreveu uma injeção de Dolantina, que finalmente aliviou a dor.

07 – Como o autor descreve a sensação após a injeção de Dolantina?

      O autor descreve a sensação após a injeção de Dolantina como a mais deliciosa que já sentiu em toda a sua vida. Era a sensação de não ter dor, e ele refletiu sobre como essa sensação de ausência de dor poderia ser o estado normal da alma sempre que o corpo não estivesse sentindo dor.

08 – Por que o texto é considerado um ensaio?

         O texto "Dor" de Rubem Alves é um gênero textual que se enquadra como um ensaio ou um texto de reflexão pessoal. Ele discute a experiência da dor e seus aspectos emocionais e físicos, além de fazer uma referência à escrita de Adélia Prado, trazendo um ponto de vista pessoal do autor sobre o tema da dor. Não é um texto literário, como um conto ou poema, nem um texto informativo, mas sim uma exploração de ideias e emoções em torno do tema central da dor.