quinta-feira, 2 de maio de 2019

ROMANCE: VIDAS SECAS - (FRAGMENTO) - GRACILIANO RAMOS - COM GABARITO

Romance: VIDAS SECAS - (Fragmento)
                  GRACILIANO RAMOS

        Fabiano ia satisfeito. Sim senhor, arrumara-se. Chegara naquele estado, com a família morrendo de fome, comendo raízes. Caíra no fim do pátio, debaixo de um juazeiro, depois tomara conta da casa deserta. Ele, a mulher e os filhos tinham-se habituado à camarinha escura, pareciam ratos – e a lembrança dos sofrimentos passados esmorecera.
        Pisou com firmeza no chão gretado, puxou a faca de ponta, esgaravatou as unhas sujas. Tirou do aió um pedaço de fumo, picou-o, fez um cigarro com palha de milho, acendeu-o ao binga, pôs-se a fumar regalado.

        -- Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta.
        Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se ouvindo falar só. E, pensando bem, ele não era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos; mas como vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se, na presença dos brancos e julgava-se cabra.
        Olhou em torno, com receio de que, fora os meninos, alguém tivesse percebido a frase imprudente. Corrigiu-a, murmurando:
        -- Você é um bicho, Fabiano.
        Isto para ele era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades.
        Chegara naquela situação medonha – e ali estava, forte até gordo, fumando o seu cigarro de palha.
        Era. Apossara-se da casa porque não tinha onde cair morto, passara uns dias mastigando raiz de imbu e semente de mucunã. Viera a trovoada. E, com ela, o fazendeiro, que o expulsara. Fabiano fizera-se desentendido e oferecera os seus préstimos, resmungando, coçando os cotovelos, sorrindo aflito. O jeito que tinha era ficar. E o patrão aceitara-o, entregara-lhe as marcas de ferro.
        Agora Fabiano era vaqueiro, e ninguém o tiraria dali. Aparecera como um bicho, entocara-se como um bicho, mas criara raízes, estava plantado. Olhou as quipás, os mandacarus e os xique-xiques. Era mais forte que tudo isso, era como as catingueiras e as baraúnas. Ele, Sinhá Vitória, os dois filhos e a cachorra baleia estavam agarrados à terra.
        Chape-chape. As alpercatas batiam no chão rachado. O corpo do vaqueiro derreava-se, as pernas faziam dois arcos, os braços moviam-se desengonçados. Parecia um macaco.
        Entristeceu. Considerar-se plantado em terra alheia! Engano. A sina dele era correr mundo, andar para cima e para baixo, à toa, como judeu errante. Um vagabundo empurrado pela seca. Achava-se ali de passagem, era hóspede. Sim senhor, hóspede que demorava demais, tomava amizade à casa, ao curral, ao chiqueiro das cabras, ao juazeiro que os tinha abrigado uma noite.
                                        Vidas Secas. 27. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1970. p. 53-5.

Entendendo o romance:

01 – De acordo com o texto, de o significado das palavras abaixo:
·        Aió: bolsa usada na caça.
·        Mucunã: trepadeira de grande porte, comum nas Guianas e em alguns Estados brasileiros.
·        Binga: isqueiro.
·        Camarinha: quarto de dormir.
·        Derrear-se: vergar-se, inclinar-se.
·        Quipá: planta brasileira da família dos cactos.
·        Gretado: rachado, com fendas.
·        Regalado: comprazer, satisfeito.

02 – Nesse episódio de Vidas Secas lido, é possível extrair algumas informações a respeito da personagem Fabiano e de sua família.
a)   Que razões teriam levado Fabiano e sua família à fazenda onde ele mora e trabalha como vaqueiro?
A fuga da seca.

b)   Portanto, que tipo de problema social é enfocado pela obra?
O problema da seca, da miséria, da migração, da falta de oportunidades sociais, etc.

03 – Além de abordar temas ligados à realidade nacional, outro traço do romance de 30 é a busca de uma linguagem brasileira. Observe a linguagem empregada no texto e as referências ao homem e à natureza.
a)   Que palavras do texto são típicas do português brasileiro e servem para designar elementos da paisagem nacional?
Aió, mucunã, quipá, mandacaru, xique-xique.

b)   Considerando o tema da obra e as descrições de Fabiano e da paisagem, levante hipóteses: Qual é a região brasileira retratada na obra?
O Nordeste.

c)   Predomina, nessa linguagem, a variedade padrão ou uma variedade não padrão da língua?
Predomina a variedade padrão.

04 – Ao longo do texto, a personagem é caracterizada de três formas diferentes. Observe:
        “-- Fabiano, você é um homem”.
        “...encolhia-se, na presença dos brancos e julgava-se cabra.”
        “-- Você é um bicho, Fabiano.”
        “Parecia um macaco”.

a)   A que elementos da natureza Fabiano é comparado no segundo e no terceiro fragmentos?
É comparado a animais.

b)   Essas comparações lembram procedimentos de outro movimento literário, que também enfocou as relações entre o homem e o meio natural e social. Qual é esse movimento?
O naturalismo.

05 – Observe o 2° e 3° parágrafos do texto. Fabiano, depois de preparar um cigarro de palha, exclama satisfeito: “— Fabiano, você é um homem”. Considerando o histórico da personagem, responda: Para Fabiano, o que é sentir-se um homem?
      É ter um emprego e uma casa para morar, sentir-se útil e ligado a um lugar e ter até direito a pequenos prazeres, como fumar.

06 – Observe estes dois trechos do texto:
        “Agora Fabiano era vaqueiro, e ninguém o tiraria dali. [...] estava plantado”.
        “Entristeceu. Considerar-se plantado em terra alheia! Engano”.

Esses trechos mostram uma mudança no interior do pensamento de Fabiano, como se ele tomasse consciência de sua real condição.
a)   De que Fabiano toma consciência?
Toma consciência de que a terra não é sua e que, a qualquer momento, talvez aconteça outra seca e ele tenha de migrar novamente.

b)   Que tipo de problema social, amplamente denunciado pelo Movimento dos Sem-Terra (MST) no Brasil de hoje, se verifica na base da real condição de Fabiano?
O problema da propriedade rural, isto é, os lavradores não são donos da terra onde trabalham.

07 – Outro traço que caracteriza o romance de 30 é o emprego de novas técnicas narrativas, principalmente aquelas que sustentam a introspecção e a análise psicológica de personagens. É o caso, por exemplo, do discurso indireto livre, que funde a fala do narrador à fala ou ao pensamento da personagem. Observe os fragmentos abaixo:
        “Fabiano ia satisfeito. Sim senhor, arrumara-se”.
        “Olhou os quipás, os mandacarus e os xique-xiques. Era mais forte que tudo isso, era como as catingueiras e as baraúnas”.
        “Entristeceu. Considerar-se plantado em terra alheia!”

Identifique nesses fragmentos os trechos que correspondem ao pensamento de Fabiano.
      “Sim senhor, arrumara-se”; “Era mais forte [...] baraúnas”; “Considerar-se plantado em terra alheia!”.

08 – Com base no estudo de texto feito, conclua: De modo geral, como se caracteriza o romance de 30:
a)   Quanto aos temas e ao recorde da realidade?
Enfoca problemas sociais brasileiros, especialmente de algumas regiões, como Nordeste.

b)   Quanto à linguagem e às técnicas narrativas?
Predomina a variedade padrão; empregam-se técnicas narrativas como o discurso indireto livre.

c)   Quanto ao trabalho com as personagens?
Procura-se trabalhar a personagem do ponto de vista psicológico.






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