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terça-feira, 12 de dezembro de 2023

CRÔNICA: SÓ QUERO UM PRESENTE - RUBEM ALVES - COM GABARITO

 CRÔNICA: Só quero um presente

                 Rubem Alves

Minhas netas: no dia 15 o vô ficou mais velho. Bobagem, porque a gente envelhece o tempo todo; o tempo não para; é como o rio. Só que a gente não percebe. Mas aí chega um dia que faz a gente parar e prestar atenção: o dia do aniversário. No dia do aniversário a gente diz: “Passou mais um ano da minha vida”. É o dia quando os números mudam. Quando me perguntam: “Qual é a sua idade?” – eu respondo: “67”. Mas depois do dia 15 a resposta é “68”.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg-01fvWl6ck6q36oi9qtync_sZwb53LhiWy6GIRfpUUY60FfljwYgcsUHlEz925iBvrorphBeIkeb7lRSJ8QLuaLagI0hjO0Udw7shjV2pzHrEi3aZKgfKhCS3t2G5SDi662gMNth9gQlOvNT6LYtEWCS4B_1HZcE-pFH0rw8qoGFJodaXl0HQ47s2LOE/s1600/PRESENTE.jpg


Vocês crianças, quando pensam em aniversário, dão risada e ficam felizes. Aniversário é dia de festa e presentes. Toda criança quer que o tempo passe depressa para ficar mais velha, deixar de ser criança e ficar adulta. Acham que ser criança é coisa ruim, porque crianças não são donas do seu nariz, não fazem o que querem. Bom mesmo é ser grande. Os grandes fazem o que querem e não precisam pedir permissão. Criança é passarinho sem asas. Adulto é passarinho com asas: voam bem alto e vão aonde as crianças não podem ir. No dia do aniversário as crianças olham para frente: imaginam que está chegando o dia quando elas terão asas e poderão voar.

Os grandes, no dia do aniversário, olham para trás. Eles têm saudades do tempo em que eram crianças. É só depois que a gente deixa de ser criança que a gente descobre que ser criança é muito bom.

Explico de outro jeito. Imaginem que vocês vão fazer uma viagem. A felicidade da viagem começa antes da viagem. A gente examina mapas, lê artigos sobre os lugares que vão ser visitados, conversa com amigos que já foram, olha fotografias. E só de imaginar fica feliz.

Depois de feita a viagem é diferente. A felicidade ficou para trás. Só resta ver as fotos e conversar…

Criança é quem ainda não viajou e fica feliz imaginando a viagem. Viagem imaginada é sempre feliz. Adulto é quem já viajou e fica feliz olhando as fotos da viagem.

Foi por isso que resolvi mexer numa caixa de fotografias velhas – fotografias do tempo em que eu era menino. Foi o tempo mais feliz da minha vida. Caí muitas vezes, cortei o pé com cacos de vidro (eu andava sempre descalço), me espetei com espinhos e pregos, cortei a mão com faca e serrote, fiquei doente, tive dor de dente, me queimei (eu vivia correndo; entrei correndo na cozinha e dei uma topada com a cozinheira que carregava uma panela de água fervente. A panela virou, a água fervente entornou no meu braço e peito; doeu muito; fiquei todo empolado), martelei o dedo, fui picado por marimbondos e abelhas, pus a mão em taturanas, caí de árvores, senti muita dor. Mas as dores passavam logo. E a alegria voltava. Fui um menino sempre alegre. Tudo no mundo me encantava. Menino, eu não imaginava que, um dia, eu seria velho…

Pois esse dia chegou. Meu aniversário me diz que agora sou velho. Ser velho tem vantagens. Uma delas é ser avô. Se eu fosse jovem não seria avô, não teria netas. E não estaria escrevendo agora pensando em vocês – porque vocês não existiriam. Houve um tempo em que vocês não existiam. Vocês só existem porque eu deixei de ser criança e fiquei velho. Vocês são, para mim, um motivo de alegria.

[...]

Não quero presentes comprados. Não preciso de nada. Um presente que vocês, minhas netas, e os meus filhos, me poderiam dar é simples: ler as coisas que eu escrevo. Cada coisa que eu escrevo – quero que cada uma delas seja gostosa como um morango vermelho… Escrevo para dar felicidade.

Quero que vocês sejam felizes.

ALVES, Rubem. Só quero um presente. In: Quando eu era menino. Campinas: Papirus, 2003.

 

Entendendo o texto

01. Sobre qual assunto cotidiano a crônica trata?

          Sobre as reflexões de um avô diante do aniversário e da percepção do próprio envelhecimento.

02. Segundo o cronista, qual é a principal diferença entre a criança e o adulto no dia do aniversário?

          A criança deseja que o tempo passe depressa para ficar adulta. Já os adultos sentem saudade do tempo em que eram crianças.

03. Assinale (V) para as afirmativas verdadeiras e (F) para as falsas.

        ( F ) O cronista deseja um presente bem caro.

        ( V ) O cronista pensa que a velhice tem suas vantagens, uma delas é ser avô.

       ( V ) As netas são motivo de alegria para o cronista.

04. Considerando o desfecho da crônica, explique o sentido do título.

          O título “Só quero um presente” faz referência ao pedido de presente de aniversário do avô, destacado no desfecho da crônica: ele deseja que suas netas sejam felizes.

05. Leia os trechos e responda às questões.“[...] o tempo não para; é como o rio.”

a.   Quais elementos são comparados?

               O tempo e o rio.

b.   Explique em que consiste a comparação feita.

               Tanto o tempo quanto o rio têm como característica comum o fato de nunca pararem.

06. Leia o trecho e responda às questões.

(A) Criança é passarinho sem asas.

(B) Adulto é passarinho com asas: voam bem alto e vão aonde as crianças não podem ir.

a.   Que elementos são comparados implicitamente em cada trecho?

              A: crianças e passarinho sem asas;

             B: adulto e passarinho com asas.

        b.   Explique em que consiste a comparação feita.

         As asas são elementos empregados para se referir à condição de liberdade. Assim, as crianças ainda não se sentem livres, enquanto os adultos, sim.

        c.   Que efeito essa comparação implícita garante ao texto?

          O emprego de metáfora garante mais poeticidade e expressividade ao texto.

        07. A crônica lida tem a finalidade de promover:

            a.   o humor.

           b.   a ironia.

          c.   a reflexão.

          d.   a crítica.

      08. Considerando a crônica lida, é possível afirmar que ela pretende levar o leitor a concluir que:

         a.   a infância é a fase mais importante da vida.

         b.   a fase adulta é a fase mais importante da vida.

        c.   a velhice é a fase mais importante da vida.

       d.   todas as fases da vida são importantes.

 

 

sexta-feira, 20 de outubro de 2023

ENSAIO: DOR - RUBEM ALVES - COM GABARITO

 ENSAIO: Dor

          Rubem Alves

        GOSTO DA ADÉLIA PRADO por várias razões. É poeta. Tem o jeitão mineiro. E é teóloga. Sempre que ela fala sobre os mistérios do mundo sagrado eu me calo e medito. Quase sempre as palavras dela iluminam as minhas dúvidas. Sugestão para algum estudante que esteja à procura de tema para dissertação: "A Teologia da Adélia Prado"...

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjAvT_J6AN-0mWhuQxi4_Ake6rK55dLdA9sFFWQqHoAsNxM-FzqR3Cko13DJFOzAOjMoel4Efo1tQH9QpT3sS-1azsKXIvUe4z1O-KOlQ8JipCZszXeS8YsXy6HJ8ggAx-UxJT_WsNVR-LbWaz30j-V3GK1yZ7cJEddzalI37iexWSQlPWZcJs140qQrh8/s1600/ADELIA.jpg


        Mas hoje peço perdão. Discordo do que ela escreveu. Estava falando sobre a coisa mais terrível que há no mundo, o demônio, e foi isso, mais ou menos, o que ela escreveu. Digo "mais ou menos" porque não sei de cor e não posso consultar os livros dela que estão encaixotados, prontos para uma mudança, que julgo, será a última... Foi isso que acho que ela disse: "O céu será igualzinho a essa vida, menos uma coisa: o medo..." Tanta coisa boa! Não é preciso mais nada. O que está aí chega. Precisa só tirar uma coisa, uma única coisa, e a Terra se transformará no céu. Qual é o nome dessa coisa terrível? Ela responde: o medo.

        Concordo. Mas acho que tem coisa pior, que é a causa de todos os medos: a dor. Nunca tive medo de cálculo renal. A despeito de nunca ter tido medo, ele veio, sem pedir licença e sem consultar se eu tinha medo ou não. Foi assim que conheci pela primeira vez a dor do inferno. Cessam todos os pensamentos. O corpo só deseja uma coisa: parar de sentir dor, a qualquer preço.

        Dor não tem jeito de explicar. Bernardo Soares diz que tudo o que é sentimento é inexplicável. O artista, para comunicar seus sentimentos inexplicáveis, se vale de um artifício: invoca um sentimento "parecido".

        De que comparação vou me valer para explicar a dor a alguém que não a está sentindo? Só sabe o que é a dor aquele que a está sentindo, no presente. Enquanto a dor está doendo, meu corpo -não minha cabeça- sabe o que ela é. Passada a dor, ela fica na memória. Passa a morar no passado. Mas isso que está na memória não é conhecimento da dor porque o passado não dói. A memória da dor, por terrível que tenha sido, não me dá conhecimento da dor, depois que ela se foi.

        Minha memória mais antiga de dor me leva de volta à roça onde vivi quando menino. Lembro-me, mas não sinto. Acho até engraçado. Era dor de dente. A dor fazia ele inchar até ficar do tamanho do universo- e eu, chorando, sem saber contar a minha dor, dizia que tinha inveja das galinhas que não tinham dentes... Foi meu primeiro encontro.

        Mais tarde ela voltou sem se anunciar. Não a mesma. Cada dor é única. Chegou bruta, definitiva. Lutei usando as armas que se compram nas farmácias. Inutilmente. Levaram-me (nesse ponto eu já não era dono de mim mesmo; estava à mercê dos outros) então para o hospital. As injeções são mais potentes que os comprimidos. Aplicaram-me seis Buscopan. A dor não tomou conhecimento. Ficou mais forte. Comecei a vomitar. O médico, reconhecendo a derrota dos recursos penúltimos, dirigiu-se à enfermeira e disse o nome do último, nenhum mais forte: "Aplica uma Dolantina nele..."

        Ela aplicou. Passados cinco minutos, senti a mais deliciosa sensação que tive em toda minha vida. Não era sensação de nada. Que me importava música, sexo ou flores? Era simplesmente a sensação de não ter dor. Pensei se essa euforia não deveria ser o estado normal da alma, sempre que o corpo não estivesse sentindo dor... Rindo e feliz, brinquei que o Paraíso morava dentro de uma ampola de Dolantina...

Rubem Alves. Folha de S. Paulo, 27.07.2010. Adaptado.

Entendendo o texto:

01 – Qual é o ponto de discordância do autor em relação ao que Adélia Prado escreveu sobre o céu?

      O autor discorda de Adélia Prado quando ela diz que o céu será igual à vida na Terra, exceto pelo fato de que não haverá medo. Ele acredita que há algo pior do que o medo, que é a dor.

02 – Qual elemento o autor considera pior do que o medo, que é a causa de todos os medos?

      O autor acredita que a dor é pior do que o medo, pois a dor é a causa de todos os medos.

03 – Como o autor descreve a experiência da dor que teve devido a um cálculo renal?

      O autor descreve a dor do cálculo renal como uma experiência extrema e avassaladora que fez com que ele desejasse desesperadamente que a dor parasse a qualquer custo.

04 – De acordo com o autor, por que a dor é difícil de explicar?

      O autor afirma que a dor é difícil de explicar porque é um sentimento que só pode ser verdadeiramente compreendido por quem a está sentindo no presente. A memória da dor, uma vez que passou, não proporciona um conhecimento verdadeiro da dor.

05 – O autor compartilha uma memória pessoal de dor na roça quando era menino. O que causou essa dor?

      A dor que o autor compartilha de sua infância foi causada por uma dor de dente, que o fez chorar e desejar não ter dentes, como as galinhas.

06 – Como a dor foi tratada quando o autor teve uma dor mais intensa e bruta?

      Quando o autor teve uma dor intensa e bruta, ele foi levado ao hospital, onde foram administradas seis injeções de Buscopan. No entanto, a dor não cedeu, e o médico prescreveu uma injeção de Dolantina, que finalmente aliviou a dor.

07 – Como o autor descreve a sensação após a injeção de Dolantina?

      O autor descreve a sensação após a injeção de Dolantina como a mais deliciosa que já sentiu em toda a sua vida. Era a sensação de não ter dor, e ele refletiu sobre como essa sensação de ausência de dor poderia ser o estado normal da alma sempre que o corpo não estivesse sentindo dor.

08 – Por que o texto é considerado um ensaio?

         O texto "Dor" de Rubem Alves é um gênero textual que se enquadra como um ensaio ou um texto de reflexão pessoal. Ele discute a experiência da dor e seus aspectos emocionais e físicos, além de fazer uma referência à escrita de Adélia Prado, trazendo um ponto de vista pessoal do autor sobre o tema da dor. Não é um texto literário, como um conto ou poema, nem um texto informativo, mas sim uma exploração de ideias e emoções em torno do tema central da dor.

 

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

CARTA A UM ADOLESCENTE - RUBEM ALVES - COM GABARITO

 CARTA A UM ADOLESCENTE

          Rubem Alves

Você pediu que eu escrevesse sobre a maldade. Foi a primeira vez que uma pessoa me pediu isso. Você foi corajoso porque falar sobre a maldade é falar sobre nós mesmos. A maldade é algo que mora dentro de nós, à espera do momento certo para se apossar do nosso corpo. Ao pedir que eu falasse sobre a maldade você me pediu que o ajudasse a entender o lado escuro de você mesmo.

Para a gente entender a maldade é preciso entender, antes, os dois poderes de que somos feitos. Somos feitos de uma mistura de amor e poder. Amor é um sentimento que nos liga a determinadas coisas, e vai desde o simples gostar até o estar apaixonado. O amor quer abraçar, ficar perto, proteger. Amo meu cachorrinho: quero brincar com ele, tenho saudade dele. Se ele morrer eu vou chorar. Gosto da minha casa. Dói muito – dá raiva – se alguém picha de preto o muro que tinha justo sido pintado de branco. Gosto muito de uma pessoa: pode ser o pai, a mãe, o avô, a namorada. Por causa desse sentimento fico triste vendo que aquela pessoa está triste. O amor faz isso: coloca o outro dentro da gente. O que o outro sente, a gente sente também. Um amigo meu, pedreiro, senhor João, a primeira coisa que fazia quando me visitava em minha casa era salvar, com um peneira, as abelhas que estavam morrendo afogadas na piscina. Ele sofria com as abelhas.
Por isso, muitas pessoas são vegetarianas. Elas não suportam pensar na dor por que passam os bichos para que nós nos lambuzemos com a carne deles. Uma pessoa muito querida, que não é vegetariana, não consegue comer frango ao molho pardo. O molho pardo desse frango se faz com sangue – e ela se lembra de haver visto frangos de pescoço cortado, pendurados num gancho, agonizantes, seu sangue vagarosamente pingando num prato. Agora, sempre que ela vê frango ao molho pardo, ela se lembra do sofrimento daquela ave inocente. Os bichos também sofrem.

O amor nos liga à natureza toda. Eu amo a natureza – os riachos de água limpa, as cachoeiras frias, as matas com suas samambaias, avencas, orquídeas, bananeiras, as borboletas, cigarras, pássaros. Nós humanos, temos olhos deformados – não percebemos a beleza dos seres que são diferentes da gente. Mas todos eles, inclusive os besouros (que alguns chamam de “bisorros”), as rãs, os lagartos, as marias-fedidas, as taturanas, os urubus – todos eles querem viver, sofrem, fazem parte desse nosso mundo e são necessários à sua existência. Todos eles são nossos irmãos – porque todos nós teremos o mesmo fim. Um dia nós voltaremos à terra e, quem sabe, renasceremos como besouro ou galinha…

Aquilo que eu amo eu quero proteger. Proteger o cachorrinho, o muro de casa, a natureza… Às vezes, a gente quer algo anterior ao proteger: a gente crer criar. Você ainda não é pai. Não tem, portanto nenhum filho para proteger. Chegará um dia, entretanto, em que você desejará ter um filho que você ainda não tem. Para isso é preciso que você tenha os poderes de homem – para semear no ventre de uma mulher a semente do filho que você ama, mas ainda não tem. Você deseja ser (ainda não é) administrador de empresa, cozinheiro, médico ou flautista: você ama essas coisas; mas ainda não é. O amor sozinho, não faz milagres. Para ser qualquer dessas coisas você terá que, devargazinho, ir desenvolvendo poderes no seu corpo, poderes que tornarão a forma ou de conhecimentos ou de habilidades.

Quando você tem essas duas coisas juntas o amor e o poder, coisas muito bonitas acontecem. O poder torna possível a existência daquilo que a gente ama: gero um filho, planto um jardim, construo uma casa.
O poder, assim está a serviço da alegria. Pelo poder eu posso contribuir para que o mundo seja melhor. O poder e o amor juntos, estão a serviço da preservação da vida.

Acontece, entretanto que a vida anda devagar. Leva tempo para uma criança ser gerada. Leva tempo para uma árvore crescer. Por vezes, ao plantar uma árvore, a gente sabe que nunca se assentará à sua sombra.
Já a morte anda rápido. Mata-se numa fração de segundo. Basta puxar um gatilho. Ou pisar o bicho. Ou quebrar o ovo. Corta-se uma árvore que levou cem anos para crescer em poucos minutos: se for uma bananeira, basta um golpe de facão.

Você me perguntou sobre a maldade: a maldade é isso – quando as pessoas sentem prazer no ato de destruir, isto é quando as pessoas sentem prazer no exercício puro do poder, sem que esse poder tenha um objetivo de vida. Bondade é o poder usado para a vida. Maldade é o poder usado para a morte.

A adolescência é o momento da vida quando se descobrem as delícias do poder. Criança tem amor mas não tem poder. Ela quer sorvete mas não tem o dinheiro. A mãe segura, põe de castigo, dá palmada. A criança é impotente. Na adolescência o corpo se desenvolve. Fica maior que o corpo da mãe, o corpo do pai. Ganha força. Juntos, então os adolescentes se constituem num exército poderoso. É por isso que os adolescentes gostam de estar juntos: isso lhes dá um sentimento de poder. Há coisas que nunca fariam sozinhos. Mas, em grupo, tudo é permitido. As pessoas mais mansas podem se tornar monstruosas em grupo. No grupo a gente perde o senso da responsabilidade moral.

Como eu já disse, o poder, como fim em sim mesmo, sem um propósito de amor, dá prazer rápido. Quebrar, pichar, arrancar, bater, cortar esmagar, derrubar – todas essas são formas do poder-prazer a serviço da morte. É uma coisa demoníaca.
Por isso, meu amigo, adolescente, quero confessar uma coisa que nunca confessei: “Tenho medo de vocês”. O fascínio que vocês têm pelo poder me assusta. É isso que é maldade: poder sem amor.
Eu queria poder dar para vocês, como herança, o ovo onde moram os meus sonhos, na esperança de que vocês continuassem a chocá-lo, depois da minha partida. Sim, o mundo que eu amo se parece com um ovo: está cheio de vida mas é muito frágil. Dentro dele estão coisas delicadas, fáceis de serem destruídas: plantas, insetos, ninhos, aves, músicas, poemas, memórias, livros, peixes, muros brancos, crianças, velhos, jardins…
Mas eu tenho medo que vocês não resistam à tentação de quebrar o ovo onde eu e o meu mundo moramos. Como é fácil quebrar um ovo! Fácil e irreversível: nunca mais! Assim, por enquanto, o ovo onde moram meus sonhos fica sob a minha guarda. Até encontra os herdeiros que eu espero.

Rubem Alves,
In Correio Popular, Campinas, 24.II.96

https://alforje.wordpress.com/2013/06/05/carta-a-um-adolescente-rubem-alves/

Fonte: Figueiredo, Adriana Giarola Ferraz-Sistema Maxi de Ensino: ensino médio: língua portuguesa 2º ano: cadernos de1 a 4: manual do professor/Adriana Giarola Ferraz Figueiredo, Denise Silveira Silva Barros, Alberto Luís Pugina Silva. 1.ed. São Paulo: Maxiprint Editora,2018. p.15-7.

Entendimento do texto

01. O Texto “Carta a um adolescente” foi escrito a partir de uma condição especial. Que condição é essa? Justifique a sua resposta.

Trata-se de um texto que foi escrito a partir de um pedido, um pedido feito por um adolescente que solicitou que o autor escrevesse sobre o tema maldade. Esse pedido pode ser comprovado já no título do texto, que nos remete a uma carta, uma resposta destinada a um destinatário definido.

02.  É possível perceber, ao longo do texto, que o autor formula a sua argumentação para defender um ponto de vista em relação ao tema abordado, a maldade.

a)   Qual é a estratégia escolhida pelo autor para se posicionar diante desse tema?

Para se posicionar diante do tema maldade, o autor opta por fazer uma reflexão acerca dos “poderes” que, segundo ele, circundam o ser humano, o amor e o poder.

b)   E qual  é a tese do autor a respeito da maldade? Exemplifique a sua resposta com um trecho do texto.

Para o autor, a maldade é uma atitude ruim, que destrói e que condena  o mundo e as pessoas aos caos: “[...] a maldade é isso – quando as pessoas sentem prazer no ato de destruir; isto é quando as pessoas sentem prazer no exercício puro do poder, sem que esse poder tenha um objetivo de vida.[...] Maldade é o poder usado para a morte.”

c)   Em certo momento do texto, o autor confessa que tem medo dos adolescentes. Em que alicerces ele fundamenta esse medo? Explique.

O autor fundamenta o medo que tem dos adolescentes no fato de perceber que estes têm um fascínio muito grande pelo poder. Mais que isso, ele teme que o poder seja usado, pelos adolescentes, desvinculado do amor, que é o grande problema apontado pelo escritor na carta.

03.  Observe os trechos retirados do texto e justifique a presença da crase nos contextos destacados.

a)   “A maldade ´algo que mora dentro de nós, à espera do momento certo para se apossar do nosso corpo”.

Trata-se da crase empregada em locução prepositiva.

b)   “O amor nos liga à natureza toda”.

Trata-se da crase empregada na junção da preposição “a”, pedida pelo verbo “ligar”, + o artigo “a” que acompanha o substantivo “natureza”.

c)   Às vezes, a gente quer algo anterior ao proteger: a gente quer criar”.

Trata-se da crase em uma locução adverbial de tempo.

04. Releia este período: “Um dia nós voltaremos à terra e, quem sabe, renasceremos como besouro ou galinha...”. O uso do acento indicativo da crase, na expressão destacada, está correto? Por quê?

O uso do acento indicativo da crase, na expressão “à terra”, nesse contexto, está adequado, pois aqui não está se referindo à terra em oposição à água ou ao mar, mas sim à terra como um lugar de origem.

 



sexta-feira, 18 de março de 2022

CONTO: O GALO QUE CANTAVA PARA FAZER O SOL NASCER - RUBEM ALVES - COM GABARITO

 Conto: O galo que cantava para fazer o sol nascer

             Rubem Alves

        Era uma vez um galo que acordava bem cedo todas as manhãs e dizia para a bicharada do galinheiro:

        -- Vou cantar para fazer o sol nascer...

        Ato contínuo, subia até o alto do telhado, estufava o peito, olhava para o nascente e ordenava, definitivo:

        -- Có-có-ri-có-có...

        E   ficava esperando.

        Dali a pouco a bola vermelha começava a aparecer, até que se mostrava toda, acima das montanhas, iluminando tudo.

        O galo se voltava, orgulhoso, para os bichos e dizia:

        -- Eu não falei?

        E todos ficavam biqui/abertos e respeitosos ante poder tão extraordinário conferido ao galo: cantar pra fazer o sol nascer.

        Ninguém duvidava. Tinha sido sempre assim. Também o galo-pai cantara para fazer o sol nascer, e o galo-avô...

        Tal poder extraordinário provocava as mais variadas reações.

        Primeiro, os próprios galos não estavam de acordo. E isto porque não havia um galo só. Quando a cantoria começava, de madrugada, ela ia se repetindo pelos vales e montanhas. Em cada galinheiro havia um galo que pensara a mesma coisa e julgava todos os outros uns impostores invejosos. Além do que não havia acordo sobre a partitura certa para fazer o sol nascer. Cada um dizia que a única verdadeira era a sua – todas as outras sendo falsificações e heresias. Em cada galinheiro imperava o terror. Os galos jovens tinham de aprender a cantar do jeitinho do galo velho, e se houvesse algum que desafinasse ou trocasse bemóis por sustenidos, era imediatamente punido. Por vezes, a punição era um ano de proibição de cantar. Sendo mais grave o desafino, ameaçava-se com o caldeirão de canja do fazendeiro, fervendo sobre o fogão de lenha.

        [...]

        Depois, havia grande ansiedade entre os moradores do galinheiro. E se galo ficasse rouco? E se esquecesse da partitura?

        Quem cantaria para fazer nascer o sol? O dia não amanheceria. E por causa disso cuidavam do galo com o major cuidado. Ele, sabendo disso, sempre ameaçava a bicharada, para ser mais bem tratado ainda.

        -- Olha que eu enrouqueço! dizia.

        E todos se punham a correr, para satisfazer as suas vontades.

        [...]

        Aconteceu, como era inevitável, que certa madrugada o galo perdeu a hora. Não cantou para fazer o sol nascer.

        E o sol nasceu sem o seu canto.

        O galo acordou com o rebuliço no galinheiro. Todos falavam ao mesmo tempo.

        -- O sol nasceu sem o galo... O sol nasceu sem o galo...

        O pobre galo não podia acreditar naquilo que os seus olhos viam: a enorme bola vermelha, lá no alto da montanha. Como era possível? Teve um ataque de depressão ao descobrir que o seu canto não era tão poderoso como sempre pensara. E a vergonha era muita.

        Os bichos, por seu lado, ficaram felicíssimos. Descobriram que não precisavam do galo para que o sol nascesse. O sol nascia de qualquer forma, com galo ou sem galo.

        Passou-se muito tempo sem que se ouvisse o cantar do galo, de deprimido e humilhado que ele estava. O que era uma pena: porque é tão bonito. Canto de galo e sol nascente combinam tanto. Parece que nasceram um para o outro.

        Até que, numa bela manhã, o galinheiro foi despertado de novo com o canto do galo. Lá estava ele, como sempre, no alto do telhado, peito estufado.

        -- Está cantando para fazer o sol nascer? Perguntou o peru em meio a uma gargalhada.

        -- Não, ele respondeu.  Antes, quando eu cantava para fazer o sol nascer, eu era doido varrido. Mas agora eu canto porque o sol vai nascer. O canto é o mesmo. E eu virei poeta.

 ALVES, Rubem. Estórias de bichos. 2. ed. São Paulo: Loyola, 1990. p. 22-5.

Fonte: Livro- PORTUGUÊS: Linguagens – Willian R. Cereja/Thereza C. Magalhães – 6ª Série – 2ª edição - Atual Editora – 2002 – p. 234-6.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Bemóis e sustenidos: variações de tom de uma nota musical.

·        Depressão: abatimento moral.

·        Deprimido: estado daquele que entra em depressão.

·        Heresia: pensamento que se opõe às ideias vigentes.

·        Impostor: fingindo, que se faz passar por alguém que não é.

·        Partitura: representação gráfica de uma composição musical.

·        Rebuliço: barulho, agitação.

02 – O galo, no início da história, gozava de uma condição especial.

a)   Como era tratado?

Com respeito e atenção.

b)   Por que o tratavam assim?

Porque tinham medo de que ele se zangasse e não fizesse mais o sol nascer.

03 – Em todas as comunidades, é muito forte o significado da tradição, isto é, das crenças, dos costumes, dos valores, etc.

a)   No galinheiro desta história, os galos valorizam a tradição? Por quê?

Sim, porque transmitem sua técnica de canto de geração a geração, não aceitando nenhuma inovação.

b)   Que consequência teve, para a comunidade do galinheiro, o fato de o galo um dia não cantar para o sol nascer?

A comunidade descobriu que o sol nasce mesmo sem o canto do galo; Isso modificou o modo de ver a tradição e levou o fim dos privilégios do galo, vindos de longa data.

04 – Releia este parágrafo:

        “Passou-se muito tempo sem que se ouvisse o cantar do galo, de deprimido e humilhado que ele estava. O que era uma pena: porque é tão bonito. Canto de galo e sol nascente combinam tanto. Parece que nasceram um para o outro.”

a)   Até esse parágrafo, o narrador se limitava a contar a história, sem emitir opiniões pessoais. Identifique o trecho em que muda sua postura.

“O que era uma pena” até “nasceram um para o outro”.

b)   Pode-se dizer que esse parágrafo antecipa o desfecho da história. Quais são as “pistas” existentes nele que permitem prever o destino do galo?

O narrador, ao dizer que o canto do galo é bonito, antecipa o papel que ele vai assumir no desfecho da história.

05 – Observe as palavras destacadas nestas frases: “Antes, quando eu cantava para fazer o sol nascer, eu era doido varrido. Mas agora eu canto porque o sol vais nascer”.

a)   Relacione as palavras destacadas a estas ideias:

Causa – tempo – consequência – finalidade.

·        Qual dessas ideias a palavra para exprime?

Finalidade.

·        Qual dessas ideias a palavra porque exprime?

Causa.

b)   Por que o galo diz que era “doido varrido” quando cantava para fazer o sol nascer?

Percebe agora que o que fazia não tinha sentido.

c)   Explique por que ele agora se considera poeta.

Porque agora ele canta sem nenhuma finalidade específica, canta apenas porque é bonito ou porque gosta de cantar.

06 – Observe a palavra destacada neste trecho: “E todos ficavam biqui/abertos e respeitosos”. O autor inventou um neologismo, isto é, uma palavra nova, que não existe na língua. Para fazer isso, ele apenas modificou o início de outra palavra, essa sim existe na língua.

a)   Qual é essa outra palavra?

Boquiaberto.

b)   O que as duas palavras significam?

Em estado de espanto.

07 – No texto, o autor também empregou palavras criadas a partir da união de outras duas: galo-pai e galo-avô. Seguindo o exemplo de Rubem Alves, invente você também palavras a partir da junção de outras existentes na língua. Se quiser, aproveite estas sugestões: galo, madrugada, sol, canto, montanha, poeta, bichos. Ou crie livremente.

      Resposta pessoal do aluno.

 

terça-feira, 15 de março de 2022

CRÔNICA: BRINQUEDOS - (FRAGMENTO) - RUBEM ALVES - COM GABARITO

 Crônica: Brinquedos – Fragmento

               Rubem Alves

   Minha netas: Quando eu era menino eu brincava muito. Brincar é a coisa mais gostosa. Algumas pessoas grandes têm vergonha de brincar; acham que brincar é coisa de criança. O resultado é que elas ficam sérias, preocupadas, ranzinzas, amargas, implicantes, chatas, impacientes. Perdem a capacidade de rir e ninguém gosta da sua companhia. Quem brinca não fica velho. Pode ficar velho por fora, como eu. Mas por dentro continua criança, como eu.

        Naquele tempo, o jeito de as meninas e os meninos brincarem era muito diferente do jeito de hoje. Hoje, falou brincar, falou comprar brinquedo. E os brinquedos se encontram nas lojas e custam dinheiro. Mas lá na roça onde eu morava não havia nem lojas. E mesmo que houvesse, eu era um menino pobre. Não tinha dinheiro para comprar brinquedos.

        Eu brincava. Brincava sem comprar brinquedos. Não precisava. Eu fazia meus brinquedos. Na verdade, fazer os brinquedos era a parte mais divertida do brincar. [...]

ALVES, Rubem. Quando eu era menino. Campinas: Papirus, 2003.

             Fonte: Língua portuguesa – Ensino Fundamental anos finais. Caderno 1 – 7° ano – São Paulo. p. 34-5.

Entendendo a crônica:

01 – Esse texto é uma crônica, gênero textual que aborda situações do cotidiano. Qual o tema cotidiano trazido pela crônica “Brinquedos”? De que forma o texto é construído?

      O tema é a ação de brincar e os benefícios dessa atitude. A narrativa é construída como uma conversa entre o avô e as netas.

02 – Que tipo de narrador há no texto? Comprove sua resposta com uma passagem do texto.

      Narrador-personagem. “Quando eu era menino”.

03 – Qual o tempo dessa narrativa? De que forma percebemos isso?

      Tempo pretérito. Percebemos isso por meio do tempo verbal. “Quando eu era menino”. / “Naquele tempo”.

04 – Qual o resultado, segundo o narrador, de algumas pessoas grandes terem vergonha de brincar?

      Elas ficam sérias, preocupadas, implicantes, perdem a capacidade de rir.

05 – Segundo o narrador, o que acontece com quem brinca?

      Quem brinca não fica velho.

06 – Qual a diferença no jeito de brincar das crianças no tempo mencionado pelo narrador e as crianças de hoje?

      Quando se fala em brincar hoje em dia, fala-se em comprar brinquedos. Mas na roça onde ele morava, não havia lojas, ele era pobre e não tinha dinheiro para comprar brinquedos.

07 – Por que o narrador diz que não precisava comprar brinquedos?

      Porque ele próprio fazia seus brinquedos.

08 – De que forma podemos estabelecer uma relação desse texto com a pintura Jogos infantis analisado no início desta unidade?

      Pelo tema do brincar.

09 – Na sua opinião, as memórias do narrador sobre sua infância são felizes? Justifique sua resposta.

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Sim, ele teve uma infância feliz. Embora não tinha dinheiro para comprar brinquedos, ele se divertia fazendo os próprios brinquedos.