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terça-feira, 17 de dezembro de 2024

FÁBULA: URUBUS E SABIÁS - RUBEM ALVES - COM GABARITO

 FÁBULA: Urubus e sabiás

                  Rubem Alves

 

"Tudo aconteceu numa terra distante, no tempo em que os bichos falavam... Os urubus, aves por natureza becadas, mas sem grandes dotes para o canto, decidiram que, mesmo contra a natureza, eles haveriam de se tornar grandes cantores. E para isto fundaram escolas e importaram professores, gargarejaram dó-ré-mi-fá, mandaram imprimir diplomas, e fizeram competições entre si, para ver quais deles seriam os mais importantes e teriam a permissão para mandar nos outros. Foi assim que eles organizaram concursos e se deram nomes pomposos, e o sonho de cada urubuzinho, instrutor em início de carreira, era se tornar um respeitável urubu titular, a quem todos chamam de Vossa Excelência. Tudo ia muito bem até que a doce tranquilidade da hierarquia dos urubus foi estremecida. A floresta foi invadida por bandos de pintassilgos tagarelas, que brincavam com os canários e faziam serenatas para os sabiás... Os velhos urubus entortaram o bico, o rancor encrespou a testa, e eles convocaram pintassilgos, sabiás e canários para um inquérito.

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEge5CzuC7tjPdYhr_QjnsuIKIGbkFXbiaRRGSKkJiS7pQ3t_2BgnwYZwMS1yXPaoPZExqKpUi1Xoj33kLEGMJ63oRBDGOLMnU2rvRGdAaB2cTZoyiDfwYBKHYAI2CdgVXOyhNkJzC_Msx1SC2wpsUbWniBH5XpL9uwpNV5UDkZGjp5G0jAvdbxASW2Fpkw/s320/URUBUS.jpg 

— Onde estão os documentos dos seus concursos? E as pobres aves se olharam perplexas, porque nunca haviam imaginado que tais coisas houvesse. Não haviam passado por escolas de canto, porque o canto nascera com elas. E nunca apresentaram um diploma para provar que sabiam cantar, mas cantavam simplesmente...

— Não, assim não pode ser. Cantar sem a titulação devida é um desrespeito à ordem.

E os urubus, em uníssono, expulsaram da floresta os passarinhos que cantavam sem alvarás...

MORAL: Em terra de urubus diplomados não se houve canto de sabiá."


O texto acima foi extraído do livro "Estórias de quem gosta de ensinar — O fim dos Vestibulares", editora Ars Poetica — São Paulo, 1995, pág. 81. Rubem Alves: tudo sobre o autor e sua obra em "Biografias".

 

Entendendo o texto

 01-Qual a prática social criticada pelo sujeito autor no texto-discurso?

    a- a de que na nossa sociedade o conhecimento sempre vem em primeiro lugar;

    b- a de que na nossa sociedade o dom é muito valorizado;

    c- a de que na nossa sociedade o diploma vale mais do que o conhecimento;

    d- a de que na nossa sociedade ensina-se a todos;

02-Em um dos efeitos de sentidos possíveis, os personagens urubus representam:

    a- grupo de pessoas talentosas;

    b- grupo de pessoas poderosas;

    c- grupo pessoas gentis;

    d- grupo de pessoas estudiosas.

03-Em um dos efeitos de sentidos possíveis, os personagens sabiás, pintassilgos e canários representam:

    a- grupo de pessoas poderosas;

    b- grupo de pessoas que possuem o saber fazer;

    c- grupo de pessoas invasoras;

    d- grupo de pessoas diplomadas.

04-A qual outro grupo de pessoas você associaria os personagens urubus?

Burocratas, políticos corruptos, pessoas que valorizam mais a aparência do que a essência.

05-A qual outro grupo de pessoas você associaria os personagens sabiás?

Artistas, artesãos, cientistas, pessoas que possuem um talento natural e inovador.

06-Assinale o único enunciado em que o sujeito autor não foi irônico com os urubus?

    a- aves por natureza becadas, mas sem grandes dotes para o canto;

    b- o sonho de cada urubuzinho, instrutor em início de carreira, era se tornar um respeitável urubu titular;

    c- eles haveriam de se tornar grandes cantores;

    d- o rancor encrespou a testa.

07-Qual único argumento não foi usado pelos urubus para impedir o canto dos sabiás?

    a- concurso;

    b- diploma;

    c- talento;

    d- alvará.

08-No enunciado — Não, assim não pode ser. Cantar sem a titulação devida é um desrespeito à ordem.”, os urubus principalmente:

    a- exigem respeito às leis;

    b- exigem formatura/diploma para que os sabiás cantem;

    c- apelam para a grosseria;

    d- tentam impedir o canto dos sabiás

09-No enunciado “E para isto fundaram escolas e importaram professores”, a crítica central é:

    a- os que têm dinheiro e poder ocupam as melhores posições na sociedade, pagando cursos, mesmo não tendo tanto talento;

    b- os que tem dinheiro e poder investem na educação;

    c- só os que tem dinheiro e poder que tem acesso aos melhores professores;

10-Qual enunciado revela o primeiro conflito da narrativa em relação ao projeto dos personagens urubus?

    a- mesmo contra a natureza, eles haveriam de se tornar grandes cantores;

    b- fundaram escolas e importaram professores;

    c- Tudo ia muito bem até que a doce tranquilidade da hierarquia dos urubus foi estremecida;

    d- Os velhos urubus entortaram o bico, o rancor encrespou a testa.

11-O clímax, ponto máximo do conflito, está revelado no enunciado:

    a) A floresta foi invadida por bandos de pintassilgos tagarelas, que brincavam com os canários e faziam serenatas para os sabiás...

    b) Os velhos urubus entortaram o bico, o rancor encrespou a testa, e eles convocaram pintassilgos, sabiás e canários para um inquérito.
    c)— Onde estão os documentos dos seus concursos? E as pobres aves se olharam perplexas, porque nunca haviam imaginado que tais coisas houvesse.

    d) E os urubus, em uníssono, expulsaram da floresta os passarinhos que cantavam sem alvarás...
12-O desfecho da narrativa está revelado em:

       a- — Onde estão os documentos dos seus concursos?

     b- Os velhos urubus entortaram o bico, o rancor encrespou a testa, e eles convocaram pintassilgos, sabiás e canários para um inquérito.

    c- E nunca apresentaram um diploma para provar que sabiam cantar, mas cantavam simplesmente...
    d- E os urubus, em uníssono, expulsaram da floresta os passarinhos que cantavam sem alvarás...

13-No enunciado “"Tudo aconteceu numa terra distante, no tempo em que os bichos falavam...”, o pronome grifado refere-se:

    a- à terra distante;

    b- ao tempo em que os bichos falavam;

    c- a todo acontecimento que vai ser narrado na história;

    d- aos urubus e sabiás.

14-Na sequência discursiva E as pobres aves se olharam perplexas, porque nunca haviam imaginado que tais coisas houvesse.”, o verbo grifado pode ser substituído sem alteração do sentido por:

     a- acontecessem;

     b- existissem;

     c- ocorressem;

     d-colaborassem.

15-Na sequência discursiva E os urubus, em uníssono, expulsaram da floresta os passarinhos que cantavam sem alvarás...”, a palavra grifada significa:

     a- diploma/formatura;

     b- licença/autorização;

     c- talento/dom;

     d- instrumentos musicais.

16-Pode-se dizer que os personagens urubus, ao saberem que “A floresta foi invadida por bandos de pintassilgos tagarelas, que brincavam com os canários e faziam serenatas para os sabiás...”, foram tomados pelo sentimento de:

     a- inveja;

     b- gratidão;

     c- vingança;

     d- medo.

17-Os fatos narrados e o respectivo desfecho são uma crítica social que exemplifica que:

     a- as leis sempre protegem os cidadãos de bem;

     b- as leis sempre são justas e se aplicam a todos;

     c- as leis muitas vezes servem aos interesses dos grupos e classes dominantes, ignorando o povo mais simples;

    d- todos possuem igualdade perante a lei.

18-Em sua postura crítica, o que deve possuir maior valor: o saber ou o diploma? Justifique sua resposta.

O saber deve possuir maior valor. O diploma é apenas um certificado, enquanto o saber é a capacidade de fazer algo, de criar, de inovar. A história dos urubus e sabiás demonstra que o talento natural e a capacidade de fazer algo são mais importantes do que qualquer título formal.

19-Marque (V) para efeitos de sentidos pertinentes e (F) para efeitos de sentidos não pertinentes ao texto-discurso:

     a-(  V  ) Percebe-se uma crítica aos que não reconhecem o saber fazer de cada ser social;

    b-(  V ) Percebe-se uma crítica aos que colocam os diplomas acima do saber fazer;

    c-(  F  ) Percebe-se uma crítica aos que possuem conhecimento espontâneo e natural;

    d-( F ) Percebe-se que o sujeito autor defende claramente o diploma acima do talento;

20-Produza um texto-discurso, discutindo sobre o que mais vale: “o diploma ou o conhecimento?”, “tirar notas para passar de ano ou aumentar o aprendizado a cada ano de estudo?”. Afinal, você é urubu ou sabiá?

A fábula de Rubem Alves nos convida a refletir sobre a valorização excessiva de diplomas e títulos em nossa sociedade. Os urubus, com seus diplomas e regras, representam um sistema que muitas vezes sufoca a criatividade e o talento. Já os sabiás simbolizam a importância do conhecimento prático e da expressão individual.

É fundamental entender que o diploma é uma ferramenta, mas não define a capacidade de um indivíduo. O conhecimento, por sua vez, é a base para a inovação e o desenvolvimento. Ao priorizarmos o aprendizado contínuo e o desenvolvimento de habilidades, estamos investindo em nosso crescimento pessoal e profissional.

Tirar boas notas é importante, mas não deve ser o único objetivo da educação. Aprender de forma significativa, questionar, criar e desenvolver o pensamento crítico são habilidades muito mais valiosas para a vida.

Eu me identifico mais com os sabiás. Acredito que o conhecimento deve ser buscado de forma autônoma e que a educação deve estimular a curiosidade e a criatividade. Ao invés de apenas memorizar informações para passar em provas, devemos buscar entender o mundo ao nosso redor e desenvolver soluções para os problemas que enfrentamos.

Em resumo, o conhecimento é o verdadeiro tesouro, e o diploma é apenas um reflexo de um momento específico da nossa jornada de aprendizado.

 

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

CRÔNICA: SÓ QUERO UM PRESENTE - RUBEM ALVES - COM GABARITO

 CRÔNICA: Só quero um presente

                 Rubem Alves

Minhas netas: no dia 15 o vô ficou mais velho. Bobagem, porque a gente envelhece o tempo todo; o tempo não para; é como o rio. Só que a gente não percebe. Mas aí chega um dia que faz a gente parar e prestar atenção: o dia do aniversário. No dia do aniversário a gente diz: “Passou mais um ano da minha vida”. É o dia quando os números mudam. Quando me perguntam: “Qual é a sua idade?” – eu respondo: “67”. Mas depois do dia 15 a resposta é “68”.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg-01fvWl6ck6q36oi9qtync_sZwb53LhiWy6GIRfpUUY60FfljwYgcsUHlEz925iBvrorphBeIkeb7lRSJ8QLuaLagI0hjO0Udw7shjV2pzHrEi3aZKgfKhCS3t2G5SDi662gMNth9gQlOvNT6LYtEWCS4B_1HZcE-pFH0rw8qoGFJodaXl0HQ47s2LOE/s1600/PRESENTE.jpg


Vocês crianças, quando pensam em aniversário, dão risada e ficam felizes. Aniversário é dia de festa e presentes. Toda criança quer que o tempo passe depressa para ficar mais velha, deixar de ser criança e ficar adulta. Acham que ser criança é coisa ruim, porque crianças não são donas do seu nariz, não fazem o que querem. Bom mesmo é ser grande. Os grandes fazem o que querem e não precisam pedir permissão. Criança é passarinho sem asas. Adulto é passarinho com asas: voam bem alto e vão aonde as crianças não podem ir. No dia do aniversário as crianças olham para frente: imaginam que está chegando o dia quando elas terão asas e poderão voar.

Os grandes, no dia do aniversário, olham para trás. Eles têm saudades do tempo em que eram crianças. É só depois que a gente deixa de ser criança que a gente descobre que ser criança é muito bom.

Explico de outro jeito. Imaginem que vocês vão fazer uma viagem. A felicidade da viagem começa antes da viagem. A gente examina mapas, lê artigos sobre os lugares que vão ser visitados, conversa com amigos que já foram, olha fotografias. E só de imaginar fica feliz.

Depois de feita a viagem é diferente. A felicidade ficou para trás. Só resta ver as fotos e conversar…

Criança é quem ainda não viajou e fica feliz imaginando a viagem. Viagem imaginada é sempre feliz. Adulto é quem já viajou e fica feliz olhando as fotos da viagem.

Foi por isso que resolvi mexer numa caixa de fotografias velhas – fotografias do tempo em que eu era menino. Foi o tempo mais feliz da minha vida. Caí muitas vezes, cortei o pé com cacos de vidro (eu andava sempre descalço), me espetei com espinhos e pregos, cortei a mão com faca e serrote, fiquei doente, tive dor de dente, me queimei (eu vivia correndo; entrei correndo na cozinha e dei uma topada com a cozinheira que carregava uma panela de água fervente. A panela virou, a água fervente entornou no meu braço e peito; doeu muito; fiquei todo empolado), martelei o dedo, fui picado por marimbondos e abelhas, pus a mão em taturanas, caí de árvores, senti muita dor. Mas as dores passavam logo. E a alegria voltava. Fui um menino sempre alegre. Tudo no mundo me encantava. Menino, eu não imaginava que, um dia, eu seria velho…

Pois esse dia chegou. Meu aniversário me diz que agora sou velho. Ser velho tem vantagens. Uma delas é ser avô. Se eu fosse jovem não seria avô, não teria netas. E não estaria escrevendo agora pensando em vocês – porque vocês não existiriam. Houve um tempo em que vocês não existiam. Vocês só existem porque eu deixei de ser criança e fiquei velho. Vocês são, para mim, um motivo de alegria.

[...]

Não quero presentes comprados. Não preciso de nada. Um presente que vocês, minhas netas, e os meus filhos, me poderiam dar é simples: ler as coisas que eu escrevo. Cada coisa que eu escrevo – quero que cada uma delas seja gostosa como um morango vermelho… Escrevo para dar felicidade.

Quero que vocês sejam felizes.

ALVES, Rubem. Só quero um presente. In: Quando eu era menino. Campinas: Papirus, 2003.

 

Entendendo o texto

01. Sobre qual assunto cotidiano a crônica trata?

          Sobre as reflexões de um avô diante do aniversário e da percepção do próprio envelhecimento.

02. Segundo o cronista, qual é a principal diferença entre a criança e o adulto no dia do aniversário?

          A criança deseja que o tempo passe depressa para ficar adulta. Já os adultos sentem saudade do tempo em que eram crianças.

03. Assinale (V) para as afirmativas verdadeiras e (F) para as falsas.

        ( F ) O cronista deseja um presente bem caro.

        ( V ) O cronista pensa que a velhice tem suas vantagens, uma delas é ser avô.

       ( V ) As netas são motivo de alegria para o cronista.

04. Considerando o desfecho da crônica, explique o sentido do título.

          O título “Só quero um presente” faz referência ao pedido de presente de aniversário do avô, destacado no desfecho da crônica: ele deseja que suas netas sejam felizes.

05. Leia os trechos e responda às questões.“[...] o tempo não para; é como o rio.”

a.   Quais elementos são comparados?

               O tempo e o rio.

b.   Explique em que consiste a comparação feita.

               Tanto o tempo quanto o rio têm como característica comum o fato de nunca pararem.

06. Leia o trecho e responda às questões.

(A) Criança é passarinho sem asas.

(B) Adulto é passarinho com asas: voam bem alto e vão aonde as crianças não podem ir.

a.   Que elementos são comparados implicitamente em cada trecho?

              A: crianças e passarinho sem asas;

             B: adulto e passarinho com asas.

        b.   Explique em que consiste a comparação feita.

         As asas são elementos empregados para se referir à condição de liberdade. Assim, as crianças ainda não se sentem livres, enquanto os adultos, sim.

        c.   Que efeito essa comparação implícita garante ao texto?

          O emprego de metáfora garante mais poeticidade e expressividade ao texto.

        07. A crônica lida tem a finalidade de promover:

            a.   o humor.

           b.   a ironia.

          c.   a reflexão.

          d.   a crítica.

      08. Considerando a crônica lida, é possível afirmar que ela pretende levar o leitor a concluir que:

         a.   a infância é a fase mais importante da vida.

         b.   a fase adulta é a fase mais importante da vida.

        c.   a velhice é a fase mais importante da vida.

       d.   todas as fases da vida são importantes.

 

 

sexta-feira, 20 de outubro de 2023

ENSAIO: DOR - RUBEM ALVES - COM GABARITO

 ENSAIO: Dor

          Rubem Alves

        GOSTO DA ADÉLIA PRADO por várias razões. É poeta. Tem o jeitão mineiro. E é teóloga. Sempre que ela fala sobre os mistérios do mundo sagrado eu me calo e medito. Quase sempre as palavras dela iluminam as minhas dúvidas. Sugestão para algum estudante que esteja à procura de tema para dissertação: "A Teologia da Adélia Prado"...

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjAvT_J6AN-0mWhuQxi4_Ake6rK55dLdA9sFFWQqHoAsNxM-FzqR3Cko13DJFOzAOjMoel4Efo1tQH9QpT3sS-1azsKXIvUe4z1O-KOlQ8JipCZszXeS8YsXy6HJ8ggAx-UxJT_WsNVR-LbWaz30j-V3GK1yZ7cJEddzalI37iexWSQlPWZcJs140qQrh8/s1600/ADELIA.jpg


        Mas hoje peço perdão. Discordo do que ela escreveu. Estava falando sobre a coisa mais terrível que há no mundo, o demônio, e foi isso, mais ou menos, o que ela escreveu. Digo "mais ou menos" porque não sei de cor e não posso consultar os livros dela que estão encaixotados, prontos para uma mudança, que julgo, será a última... Foi isso que acho que ela disse: "O céu será igualzinho a essa vida, menos uma coisa: o medo..." Tanta coisa boa! Não é preciso mais nada. O que está aí chega. Precisa só tirar uma coisa, uma única coisa, e a Terra se transformará no céu. Qual é o nome dessa coisa terrível? Ela responde: o medo.

        Concordo. Mas acho que tem coisa pior, que é a causa de todos os medos: a dor. Nunca tive medo de cálculo renal. A despeito de nunca ter tido medo, ele veio, sem pedir licença e sem consultar se eu tinha medo ou não. Foi assim que conheci pela primeira vez a dor do inferno. Cessam todos os pensamentos. O corpo só deseja uma coisa: parar de sentir dor, a qualquer preço.

        Dor não tem jeito de explicar. Bernardo Soares diz que tudo o que é sentimento é inexplicável. O artista, para comunicar seus sentimentos inexplicáveis, se vale de um artifício: invoca um sentimento "parecido".

        De que comparação vou me valer para explicar a dor a alguém que não a está sentindo? Só sabe o que é a dor aquele que a está sentindo, no presente. Enquanto a dor está doendo, meu corpo -não minha cabeça- sabe o que ela é. Passada a dor, ela fica na memória. Passa a morar no passado. Mas isso que está na memória não é conhecimento da dor porque o passado não dói. A memória da dor, por terrível que tenha sido, não me dá conhecimento da dor, depois que ela se foi.

        Minha memória mais antiga de dor me leva de volta à roça onde vivi quando menino. Lembro-me, mas não sinto. Acho até engraçado. Era dor de dente. A dor fazia ele inchar até ficar do tamanho do universo- e eu, chorando, sem saber contar a minha dor, dizia que tinha inveja das galinhas que não tinham dentes... Foi meu primeiro encontro.

        Mais tarde ela voltou sem se anunciar. Não a mesma. Cada dor é única. Chegou bruta, definitiva. Lutei usando as armas que se compram nas farmácias. Inutilmente. Levaram-me (nesse ponto eu já não era dono de mim mesmo; estava à mercê dos outros) então para o hospital. As injeções são mais potentes que os comprimidos. Aplicaram-me seis Buscopan. A dor não tomou conhecimento. Ficou mais forte. Comecei a vomitar. O médico, reconhecendo a derrota dos recursos penúltimos, dirigiu-se à enfermeira e disse o nome do último, nenhum mais forte: "Aplica uma Dolantina nele..."

        Ela aplicou. Passados cinco minutos, senti a mais deliciosa sensação que tive em toda minha vida. Não era sensação de nada. Que me importava música, sexo ou flores? Era simplesmente a sensação de não ter dor. Pensei se essa euforia não deveria ser o estado normal da alma, sempre que o corpo não estivesse sentindo dor... Rindo e feliz, brinquei que o Paraíso morava dentro de uma ampola de Dolantina...

Rubem Alves. Folha de S. Paulo, 27.07.2010. Adaptado.

Entendendo o texto:

01 – Qual é o ponto de discordância do autor em relação ao que Adélia Prado escreveu sobre o céu?

      O autor discorda de Adélia Prado quando ela diz que o céu será igual à vida na Terra, exceto pelo fato de que não haverá medo. Ele acredita que há algo pior do que o medo, que é a dor.

02 – Qual elemento o autor considera pior do que o medo, que é a causa de todos os medos?

      O autor acredita que a dor é pior do que o medo, pois a dor é a causa de todos os medos.

03 – Como o autor descreve a experiência da dor que teve devido a um cálculo renal?

      O autor descreve a dor do cálculo renal como uma experiência extrema e avassaladora que fez com que ele desejasse desesperadamente que a dor parasse a qualquer custo.

04 – De acordo com o autor, por que a dor é difícil de explicar?

      O autor afirma que a dor é difícil de explicar porque é um sentimento que só pode ser verdadeiramente compreendido por quem a está sentindo no presente. A memória da dor, uma vez que passou, não proporciona um conhecimento verdadeiro da dor.

05 – O autor compartilha uma memória pessoal de dor na roça quando era menino. O que causou essa dor?

      A dor que o autor compartilha de sua infância foi causada por uma dor de dente, que o fez chorar e desejar não ter dentes, como as galinhas.

06 – Como a dor foi tratada quando o autor teve uma dor mais intensa e bruta?

      Quando o autor teve uma dor intensa e bruta, ele foi levado ao hospital, onde foram administradas seis injeções de Buscopan. No entanto, a dor não cedeu, e o médico prescreveu uma injeção de Dolantina, que finalmente aliviou a dor.

07 – Como o autor descreve a sensação após a injeção de Dolantina?

      O autor descreve a sensação após a injeção de Dolantina como a mais deliciosa que já sentiu em toda a sua vida. Era a sensação de não ter dor, e ele refletiu sobre como essa sensação de ausência de dor poderia ser o estado normal da alma sempre que o corpo não estivesse sentindo dor.

08 – Por que o texto é considerado um ensaio?

         O texto "Dor" de Rubem Alves é um gênero textual que se enquadra como um ensaio ou um texto de reflexão pessoal. Ele discute a experiência da dor e seus aspectos emocionais e físicos, além de fazer uma referência à escrita de Adélia Prado, trazendo um ponto de vista pessoal do autor sobre o tema da dor. Não é um texto literário, como um conto ou poema, nem um texto informativo, mas sim uma exploração de ideias e emoções em torno do tema central da dor.

 

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

CARTA A UM ADOLESCENTE - RUBEM ALVES - COM GABARITO

 CARTA A UM ADOLESCENTE

          Rubem Alves

Você pediu que eu escrevesse sobre a maldade. Foi a primeira vez que uma pessoa me pediu isso. Você foi corajoso porque falar sobre a maldade é falar sobre nós mesmos. A maldade é algo que mora dentro de nós, à espera do momento certo para se apossar do nosso corpo. Ao pedir que eu falasse sobre a maldade você me pediu que o ajudasse a entender o lado escuro de você mesmo.

Para a gente entender a maldade é preciso entender, antes, os dois poderes de que somos feitos. Somos feitos de uma mistura de amor e poder. Amor é um sentimento que nos liga a determinadas coisas, e vai desde o simples gostar até o estar apaixonado. O amor quer abraçar, ficar perto, proteger. Amo meu cachorrinho: quero brincar com ele, tenho saudade dele. Se ele morrer eu vou chorar. Gosto da minha casa. Dói muito – dá raiva – se alguém picha de preto o muro que tinha justo sido pintado de branco. Gosto muito de uma pessoa: pode ser o pai, a mãe, o avô, a namorada. Por causa desse sentimento fico triste vendo que aquela pessoa está triste. O amor faz isso: coloca o outro dentro da gente. O que o outro sente, a gente sente também. Um amigo meu, pedreiro, senhor João, a primeira coisa que fazia quando me visitava em minha casa era salvar, com um peneira, as abelhas que estavam morrendo afogadas na piscina. Ele sofria com as abelhas.
Por isso, muitas pessoas são vegetarianas. Elas não suportam pensar na dor por que passam os bichos para que nós nos lambuzemos com a carne deles. Uma pessoa muito querida, que não é vegetariana, não consegue comer frango ao molho pardo. O molho pardo desse frango se faz com sangue – e ela se lembra de haver visto frangos de pescoço cortado, pendurados num gancho, agonizantes, seu sangue vagarosamente pingando num prato. Agora, sempre que ela vê frango ao molho pardo, ela se lembra do sofrimento daquela ave inocente. Os bichos também sofrem.

O amor nos liga à natureza toda. Eu amo a natureza – os riachos de água limpa, as cachoeiras frias, as matas com suas samambaias, avencas, orquídeas, bananeiras, as borboletas, cigarras, pássaros. Nós humanos, temos olhos deformados – não percebemos a beleza dos seres que são diferentes da gente. Mas todos eles, inclusive os besouros (que alguns chamam de “bisorros”), as rãs, os lagartos, as marias-fedidas, as taturanas, os urubus – todos eles querem viver, sofrem, fazem parte desse nosso mundo e são necessários à sua existência. Todos eles são nossos irmãos – porque todos nós teremos o mesmo fim. Um dia nós voltaremos à terra e, quem sabe, renasceremos como besouro ou galinha…

Aquilo que eu amo eu quero proteger. Proteger o cachorrinho, o muro de casa, a natureza… Às vezes, a gente quer algo anterior ao proteger: a gente crer criar. Você ainda não é pai. Não tem, portanto nenhum filho para proteger. Chegará um dia, entretanto, em que você desejará ter um filho que você ainda não tem. Para isso é preciso que você tenha os poderes de homem – para semear no ventre de uma mulher a semente do filho que você ama, mas ainda não tem. Você deseja ser (ainda não é) administrador de empresa, cozinheiro, médico ou flautista: você ama essas coisas; mas ainda não é. O amor sozinho, não faz milagres. Para ser qualquer dessas coisas você terá que, devargazinho, ir desenvolvendo poderes no seu corpo, poderes que tornarão a forma ou de conhecimentos ou de habilidades.

Quando você tem essas duas coisas juntas o amor e o poder, coisas muito bonitas acontecem. O poder torna possível a existência daquilo que a gente ama: gero um filho, planto um jardim, construo uma casa.
O poder, assim está a serviço da alegria. Pelo poder eu posso contribuir para que o mundo seja melhor. O poder e o amor juntos, estão a serviço da preservação da vida.

Acontece, entretanto que a vida anda devagar. Leva tempo para uma criança ser gerada. Leva tempo para uma árvore crescer. Por vezes, ao plantar uma árvore, a gente sabe que nunca se assentará à sua sombra.
Já a morte anda rápido. Mata-se numa fração de segundo. Basta puxar um gatilho. Ou pisar o bicho. Ou quebrar o ovo. Corta-se uma árvore que levou cem anos para crescer em poucos minutos: se for uma bananeira, basta um golpe de facão.

Você me perguntou sobre a maldade: a maldade é isso – quando as pessoas sentem prazer no ato de destruir, isto é quando as pessoas sentem prazer no exercício puro do poder, sem que esse poder tenha um objetivo de vida. Bondade é o poder usado para a vida. Maldade é o poder usado para a morte.

A adolescência é o momento da vida quando se descobrem as delícias do poder. Criança tem amor mas não tem poder. Ela quer sorvete mas não tem o dinheiro. A mãe segura, põe de castigo, dá palmada. A criança é impotente. Na adolescência o corpo se desenvolve. Fica maior que o corpo da mãe, o corpo do pai. Ganha força. Juntos, então os adolescentes se constituem num exército poderoso. É por isso que os adolescentes gostam de estar juntos: isso lhes dá um sentimento de poder. Há coisas que nunca fariam sozinhos. Mas, em grupo, tudo é permitido. As pessoas mais mansas podem se tornar monstruosas em grupo. No grupo a gente perde o senso da responsabilidade moral.

Como eu já disse, o poder, como fim em sim mesmo, sem um propósito de amor, dá prazer rápido. Quebrar, pichar, arrancar, bater, cortar esmagar, derrubar – todas essas são formas do poder-prazer a serviço da morte. É uma coisa demoníaca.
Por isso, meu amigo, adolescente, quero confessar uma coisa que nunca confessei: “Tenho medo de vocês”. O fascínio que vocês têm pelo poder me assusta. É isso que é maldade: poder sem amor.
Eu queria poder dar para vocês, como herança, o ovo onde moram os meus sonhos, na esperança de que vocês continuassem a chocá-lo, depois da minha partida. Sim, o mundo que eu amo se parece com um ovo: está cheio de vida mas é muito frágil. Dentro dele estão coisas delicadas, fáceis de serem destruídas: plantas, insetos, ninhos, aves, músicas, poemas, memórias, livros, peixes, muros brancos, crianças, velhos, jardins…
Mas eu tenho medo que vocês não resistam à tentação de quebrar o ovo onde eu e o meu mundo moramos. Como é fácil quebrar um ovo! Fácil e irreversível: nunca mais! Assim, por enquanto, o ovo onde moram meus sonhos fica sob a minha guarda. Até encontra os herdeiros que eu espero.

Rubem Alves,
In Correio Popular, Campinas, 24.II.96

https://alforje.wordpress.com/2013/06/05/carta-a-um-adolescente-rubem-alves/

Fonte: Figueiredo, Adriana Giarola Ferraz-Sistema Maxi de Ensino: ensino médio: língua portuguesa 2º ano: cadernos de1 a 4: manual do professor/Adriana Giarola Ferraz Figueiredo, Denise Silveira Silva Barros, Alberto Luís Pugina Silva. 1.ed. São Paulo: Maxiprint Editora,2018. p.15-7.

Entendimento do texto

01. O Texto “Carta a um adolescente” foi escrito a partir de uma condição especial. Que condição é essa? Justifique a sua resposta.

Trata-se de um texto que foi escrito a partir de um pedido, um pedido feito por um adolescente que solicitou que o autor escrevesse sobre o tema maldade. Esse pedido pode ser comprovado já no título do texto, que nos remete a uma carta, uma resposta destinada a um destinatário definido.

02.  É possível perceber, ao longo do texto, que o autor formula a sua argumentação para defender um ponto de vista em relação ao tema abordado, a maldade.

a)   Qual é a estratégia escolhida pelo autor para se posicionar diante desse tema?

Para se posicionar diante do tema maldade, o autor opta por fazer uma reflexão acerca dos “poderes” que, segundo ele, circundam o ser humano, o amor e o poder.

b)   E qual  é a tese do autor a respeito da maldade? Exemplifique a sua resposta com um trecho do texto.

Para o autor, a maldade é uma atitude ruim, que destrói e que condena  o mundo e as pessoas aos caos: “[...] a maldade é isso – quando as pessoas sentem prazer no ato de destruir; isto é quando as pessoas sentem prazer no exercício puro do poder, sem que esse poder tenha um objetivo de vida.[...] Maldade é o poder usado para a morte.”

c)   Em certo momento do texto, o autor confessa que tem medo dos adolescentes. Em que alicerces ele fundamenta esse medo? Explique.

O autor fundamenta o medo que tem dos adolescentes no fato de perceber que estes têm um fascínio muito grande pelo poder. Mais que isso, ele teme que o poder seja usado, pelos adolescentes, desvinculado do amor, que é o grande problema apontado pelo escritor na carta.

03.  Observe os trechos retirados do texto e justifique a presença da crase nos contextos destacados.

a)   “A maldade ´algo que mora dentro de nós, à espera do momento certo para se apossar do nosso corpo”.

Trata-se da crase empregada em locução prepositiva.

b)   “O amor nos liga à natureza toda”.

Trata-se da crase empregada na junção da preposição “a”, pedida pelo verbo “ligar”, + o artigo “a” que acompanha o substantivo “natureza”.

c)   Às vezes, a gente quer algo anterior ao proteger: a gente quer criar”.

Trata-se da crase em uma locução adverbial de tempo.

04. Releia este período: “Um dia nós voltaremos à terra e, quem sabe, renasceremos como besouro ou galinha...”. O uso do acento indicativo da crase, na expressão destacada, está correto? Por quê?

O uso do acento indicativo da crase, na expressão “à terra”, nesse contexto, está adequado, pois aqui não está se referindo à terra em oposição à água ou ao mar, mas sim à terra como um lugar de origem.