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domingo, 7 de agosto de 2022

CRÔNICA: QUE LÍNGUA É ESSA? (FRAGMENTO) - MARCOS BAGNO - COM GABARITO

 Crônica: Que língua é essa? – Fragmento

                Marcos Bagno

Trecho de “A língua de Eulália”, novela sociolinguística

                  O mito e a realidade; o errado e o diferente; o eu e o outro

        O mito da língua única

        À noite, como ficou combinado, reúnem-se todas na sala grande da lareira, devidamente acesa. Diante do fogo há um largo tapete felpudo sobre o qual foram espalhadas algumas almofadas grandes e macias. No centro, uma mesinha baixa com um bule de chá, outro de chocolate, canecas de louça branca, um prato com biscoitinhos, outro com um apetitoso bolo inglês. [...]

        – E então, essa aula começa ou não começa? – pergunta Sílvia, tornando a encher a xícara de chocolate.

        – Aula? – surpreende-se Irene. – Eu tinha pensado só num bate-papo, nada de muito sério... Afinal, estamos todas de férias, não é? – e pisca um olho para a sobrinha.

        – Mas bater papo com alguém que sabe a Divina comédia de cor vale por uma aula... – diz Emília.

        Sorriso geral.

        – Já que você insiste, vamos começar – diz Irene. – E quero começar pedindo a vocês que me respondam: “Quantas línguas se fala no Brasil?”.

        Silêncio. As três, tímidas, não ousam arriscar uma resposta. Emília cutuca Vera com o cotovelo e diz:

        – Vera, você faz Letras: é obrigada a saber a resposta...

        Vera, assim convocada em seus brios acadêmicos, pigarreia e diz:

        – Bom, o que a gente aprende na escola, desde pequena, é que no Brasil só se fala português.

        – Isso mesmo – confirma Sílvia. – No Brasil a gente fala português de Norte a Sul.

        Irene escuta com atenção. Depois começa a falar:

        – É bem a resposta que eu esperava. E não havia por que ser diferente. Meninas, na tradição de ensino da língua portuguesa no Brasil existe um mito que há muito tempo vem causando um sério estrago na nossa educação.

        – Que mito é esse, tia?

        – É o mito da unidade linguística do Brasil.

        As três moças se entreolham, surpresas. Irene prossegue:

        – O mito da unidade linguística do Brasil pode ser resumido na resposta que a Vera e a Sílvia me deram agora há pouco: “No Brasil só se fala uma língua, o português”. Um mito, entre outras definições possíveis, é uma ideia falsa, sem correspondente na realidade.

        – Quer dizer que a resposta delas é falsa, mentirosa? – pergunta Emília.

        – Exatamente – responde Irene.

        – E por quê, tia?

        – Primeiro, no Brasil não se fala uma só língua. Existem mais de duzentas línguas ainda faladas em diversos pontos do país pelos sobreviventes das antigas nações indígenas. Além disso, muitas comunidades de imigrantes estrangeiros mantêm viva a língua de seus ancestrais: coreanos, japoneses, alemães, italianos etc.

        – Mas os índios são muito poucos e vivem isolados – replica Sílvia.

        – É, e as comunidades de imigrantes também são uma minoria dentro do conjunto total da população brasileira – completa Emília.

        – A língua mais usada, mais falada, mais escrita é mesmo o português – conclui Vera.

        – Pode ser – diz Irene. – Mas mesmo deixando de lado os índios e os imigrantes, nem por isso a gente pode dizer que no Brasil só se fala uma única língua. Talvez vocês se surpreendam com o que vou dizer agora, mas não existe nenhuma língua que seja uma só.

        – Como assim, Irene? – pergunta Emília, espantada. – Que quer dizer isso?

        – Isso quer dizer que aquilo que a gente chama, por comodidade, de português não é um bloco compacto, sólido e firme, mas sim um conjunto de “coisas” aparentadas entre si, mas com algumas diferenças. Essas “coisas” são chamadas variedades.

        Toda língua varia

        – Puxa vida, estou entendendo cada vez menos – queixa-se Sílvia.

        – Vamos bem devagar para as coisas ficarem claras – propõe Irene. – Você certamente já ouviu um português falar, não é?

        – Já – responde Sílvia.

        – Já percebeu as muitas diferenças que existem entre o modo de falar do português e o modo de falar nosso, brasileiro. De que tipo são essas diferenças? Vamos ver algumas delas:

·        Diferenças fonéticas (no modo de pronunciar os sons da língua): o brasileiro diz eu sei, o português diz eu sâi;

·        Diferenças sintáticas (no modo de organizar as frases, as orações e as partes que as compõem): nós no Brasil dizemos estou falando com você; em Portugal eles dizem estou a falar consigo;

·        Diferenças lexicais (palavras que existem lá e não existem cá, e vice-versa): o português chama de saloio aquele habitante da zona rural, que no Brasil a gente chama de caipira, capiau, matuto;

·        Diferenças semânticas (no significado das palavras): cuecas em Portugal são as calcinhas das brasileiras. Imagine uma mulher entrar numa loja de São Paulo e pedir cuecas para ela usar! Vai causar o maior espanto!

·        Diferenças no uso da língua. Por exemplo, você se chama Sílvia e um português muito amigo seu quer convidar você para jantar. Ele provavelmente vai perguntar: “A Sílvia janta conosco?”. Se você não estiver acostumada com esse uso diferente, poderá pensar que ele está falando de uma outra Sílvia, e não de você. Porque, no Brasil, um amigo faria o mesmo convite mais ou menos assim: “Sílvia, você quer jantar com a gente?”. Nós não temos, como os portugueses, o hábito de falar diretamente com alguém como se esse alguém fosse uma terceira pessoa...

        – Tudo bem até agora? – pergunta Irene.

        – Tudo bem – responde Sílvia.

        – Essas e outras diferenças – prossegue Irene – também existem, em grau menor, entre o português falado no Norte-Nordeste do Brasil e o falado no Centro-Sul, por exemplo. Dentro do Centro-Sul existem diferenças entre o falar, digamos, do carioca e o falar do paulistano. E assim por diante.

        Irene faz uma pequena pausa. Toma um gole de chá e continua:

        – Até agora, falamos das variedades geográficas: a variedade portuguesa, a variedade brasileira, a variedade brasileira do Norte, a variedade brasileira do Sul, a variedade carioca, a variedade paulistana... Mas a coisa não para por aí. A língua também fica diferente quando é falada por um homem ou por uma mulher, por uma criança ou por um adulto, por uma pessoa alfabetizada ou por uma não alfabetizada, por uma pessoa de classe alta ou por uma pessoa de classe média ou baixa, por um morador da cidade e por um morador do campo e assim por diante. Temos então, ao lado das variedades geográficas, outros tipos de variedades: de gênero, socioeconômicas, etárias, de nível de instrução, urbanas, rurais etc.

        – E cada uma dessas variedades equivale a uma língua? – pergunta Emília.

        – Mais ou menos – responde Irene. – Na verdade, se quiséssemos ser exatas e precisas na hora de dar nome a uma língua, teríamos de dizer, por exemplo, falando da Vera: “Esta é a língua portuguesa, falada no Brasil, em 2001, na região Sudeste, no estado e na cidade de São Paulo, por uma pessoa branca, de 21 anos, de classe média, professora primária, cursando universidade” etc. Ou seja, teríamos de levar em conta todos os elementos – chamados variáveis – que compõem uma variedade. É como se cada pessoa falasse uma língua só sua... [...]

        Toda língua muda

        – Deu pra entender o que é uma variedade, Sílvia? – pergunta Irene.

        – Deu, sim, é até mais fácil do que eu pensava – responde a estudante de Psicologia.

        Irene dá um sorriso maroto e fingindo um tom de ameaça anuncia:

        – Mas a coisa pode ficar ainda mais complicada...

        – Como, tia?

        – Pegue, por exemplo, um texto de jornal escrito no começo do século XX. Você vai sentir diferenças no vocabulário e no modo de construção da frase. Recue mais um pouco no tempo e tente encontrar alguma coisa escrita no começo do século XIX, em 1808, por exemplo, quando a família real portuguesa se transferiu para o Brasil. Mais diferenças ainda. Dê um salto ainda maior e tente ler a famosa carta de Pero Vaz de Caminha ao rei D. Manuel dando a notícia do descobrimento do Brasil. Um texto de 1500, último ano do século XV! Tem muita coisa ali que a gente nem consegue entender! E se quiséssemos ler uma cantiga d’amor, como a que citei hoje à tarde, que era um gênero de poesia praticado em Portugal nos séculos XII – XIII? Quase impossível: só mesmo com a ajuda e a orientação de um filólogo, especialista em textos antigos! O que todos esses textos têm em comum?

        – Foram escritos em português, não é? – arrisca Sílvia.

        – Sim – responde Irene.

        – Por que será então que eles vão se tornando cada vez menos compreensíveis para um brasileiro no início do século XXI? – quer saber Vera.

        – Porque toda língua, além de variar geograficamente, no espaço, também muda com o tempo. A língua que falamos hoje no Brasil é diferente da que era falada aqui mesmo no início da colonização, e também é diferente da língua que será falada aqui mesmo dentro de trezentos ou quatrocentos anos!

        – Parece lógico – comenta Sílvia. – Todas as coisas mudam, os costumes, as crenças, os meios de comunicação, as roupas... até os bichos evoluíram e continuam evoluindo... Por que a língua não haveria de mudar, não é?

        – É por isso – prossegue Irene – que nós linguistas dizemos que toda língua muda e varia. Quer dizer, muda com o tempo e varia no espaço. Temos até uns nomes especiais para esses dois fenômenos. A mudança ao longo do tempo se chama mudança diacrônica. A variação geográfica se chama variação diatópica. E é por isso também que não existe a língua portuguesa.

        – Ah, não? – admira-se Emília. – Então o que é que existe?

        – Existe um pequeno número de variedades do português – faladas numa determinada região, por determinado conjunto de pessoas, numa determinada época – que, por diversas razões, foram eleitas para servirem de base para a constituição, para a elaboração de uma norma-padrão. A norma-padrão é aquele modelo ideal de língua que deve ser usado pelas autoridades, pelos órgãos oficiais, pelas pessoas cultas, pelos escritores e jornalistas, aquele que deve ser ensinado e aprendido na escola. Vejam bem que eu disse aquele que deve ser, não aquele que necessariamente é empregado pelas pessoas cultas. Essa norma, ao longo do tempo, se torna objeto de um grande investimento...

        – Investimento, Irene? – pergunta Sílvia. – Como assim?

        – No processo de constituição, de cristalização da norma-padrão como o que deve ser “a” língua, ela é analisada pelos gramáticos, que escrevem livros para descrever as regras de funcionamento dela, livros que servem ao mesmo tempo para prescrever essas regras, isto é, impor essas regras como as únicas aceitáveis para o uso “correto” da língua. Os dicionaristas também se debruçam sobre a norma-padrão e tentam definir os significados precisos para as palavras que compõem esse padrão. A Academia de Letras estabelece a ortografia oficial, a maneira única de escrever, que é imposta por decreto-lei governamental. Ela também cuida para que as palavras de origem estrangeira não “contaminem” excessivamente a língua, e propõe novos termos para substituí-las, termos com uma forma mais próxima daquilo que os tradicionalistas chamam de “a índole da língua”. Os autores de livros didáticos preparam seus manuais escolares pensando em estratégias pedagógicas eficazes para que as crianças aprendam a norma-padrão... Todo esse trabalho de padronização, de criação e cultivo de um modelo de língua, é que compõe o tal investimento de que eu falei... Por isso a norma-padrão dá a impressão de ser mais rica, mais complexa, mais versátil que todas as demais variedades da língua falada pelas pessoas do país. Na verdade, ela nada tem de melhor que essas variedades, ela só tem mais que as outras.

        – E o que é que ela tem mais que as outras? – pergunta Sílvia.

        – Por causa do tal investimento, a norma-padrão tem principalmente mais palavras eruditas, tem mais termos técnicos, tem um vocabulário maior e mais diversificado. Ela também tem mais construções sintáticas consideradas de bom gosto, tem expressões de origem erudita que servem de modelos para serem imitados, metáforas clássicas que dão um ar “nobre” à linguagem... Mas se esse mesmo investimento fosse aplicado a qualquer uma das muitas variedades faladas no país, ela também se enriqueceria e se mostraria capaz de ser veículo para todo tipo de mensagem, de discurso, de texto científico e literário...

[...]

           BAGNO, Marcos. A língua de Eulália – novela sociolinguística. 9. ed. São Paulo: Contexto, 2001. p. 17-23.

               Fonte: Livro Língua Portuguesa – Trilhas e Tramas – Volume 1 – Leya – São Paulo – 2ª edição – 2016. p. 205-9.

Entendendo a crônica:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Divina comédia: poema épico de Dante Alighieri.

·        Brio: orgulho.

·        Pigarrear: arranhar a garganta.

02 – É comum ouvirmos que no Brasil se fala uma mesma língua de norte a sul do país. Você concorda? Por quê?

      Resposta pessoal do aluno.

03 – Que línguas e dialetos contribuíram para a formação da língua que falamos hoje?

      Resposta pessoal do aluno.

04 – A língua portuguesa de Portugal é a mesma língua portuguesa do Brasil? Podemos afirmar que falamos uma “língua brasileira”?

      Resposta pessoal do aluno.

05 – Moradores de áreas urbanas e rurais falam do mesmo modo?

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Não.

06 – Médicos, professores, crianças, roqueiros, surfistas, trabalhadores rurais e profissionais de outras áreas usam a mesma variedade linguística?

      Não. Usam de acordo com a região em que vivem e trabalham.

07 – A língua de Eulália é, segundo seu autor, uma “novela sociolinguística”. Nela, as personagens fictícias expõem conceitos e teorias sobre a língua. No trecho que você leu é apresentado um conceito de norma-padrão.

a)   Identifique-o.

“[...] A norma-padrão é aquele modelo ideal de língua que deve ser usado pelas autoridades, pelos órgãos oficiais, pelas pessoas cultas, pelos escritores e jornalistas, aquele que deve ser ensinado e aprendido na escola. Vejam bem que eu disse aquele que deve ser, não aquele que necessariamente é empregado pelas pessoas cultas. [...]”

b)   A personagem Irene concorda ou não com esse conceito? Justifique.

Não. Ela faz restrições a esse conceito e defende a tese de que não há uma variedade superior às outras.

c)   E você, o que pensa sobre isso?

Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Nenhuma variedade é melhor que outra e que todas devem ser respeitadas.

08 – De acordo com o texto, o que contribui para a existência de uma norma-padrão? Copie no caderno as alternativas corretas.

a)   A descrição e a prescrição das regras de determinada variedade pelos gramáticos.

b)   O registro dos significados precisos das palavras que compõem esse padrão pelos dicionaristas.

c)   O estabelecimento da ortografia oficial pela Academia Brasileira de Letras.

d)   O uso da norma-padrão pelos setores dominantes: academia, falantes cultos e de posição social elevada.

e)   A proibição legal de outras variedades consideradas erradas.

09 – Em uma passagem do texto há uma definição para o conceito de mito. Identifique essa definição e registre-a no caderno.

        “Um mito, entre outras definições possíveis, é uma ideia falsa, sem correspondente na realidade.”

10 – Leia as afirmativas de I a VIII e indique no caderno, em relação a cada uma se:

a)   A afirmativa confirma a tese defendida pela personagem Irene.

III – IV – V – VII – VIII.

b)   A afirmativa contradiz a tese defendida pela personagem Irene.

I – II – VI.

I.             Há uma unidade linguística no Brasil.

II.           A norma-padrão é a melhor variedade linguística.

III.          Não existe uma variedade linguística superior a outras.

IV.         Se houvesse investimento, qualquer variedade poderia ser considerada padrão.

V.          A norma-padrão é uma das variedades linguísticas.

VI.         A norma-padrão é um modelo que deve ser seguido por todos os falantes.

VII.       A língua muda com o tempo e varia no espaço.

VIII.     O conceito de certo e errado em relação ao uso da língua está fundamentado em preconceitos linguísticos e sociais.

11 – Qual é o sentido do subtítulo “O mito e a realidade; o errado e o diferente; o eu e o outro”?

      O outro é o diferente, por isso, às vezes, é considerado errado, devido ao preconceito.

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

CARTA: A MARIA JÚLIA - MARCOS BAGNO - COM GABARITO

Carta: A Maria Júlia

           José Romildo

        Recife, 7 de maio de 1990

        Prezada Maria Júlia,

        Bem que gostaria de ver a cara de surpresa que você deve estar fazendo enquanto lê este meu bilhetinho. Será que você ainda se lembra de mim? Vou ajudar: eu sou aquele pernambucano que falou com você nas férias, lá no Rio de Janeiro, junto da estátua do Cristo Redentor. E então, já se lembrou? A gente conversou durante mais de duas horas. Falamos de muitas coisas, mas, principalmente, de livros. Pois é exatamente por causa de livro que resolvi escrever para você. Hoje de manhã eu decidir dar um pouco d ordem à minha estante, para ver se achava nela algum espaço para uns livros novos que andei comprando. Não sou organizado, sabe, e tenho muita preguiça de colocar os livros em ordem alfabética ou separados por assunto. O resultado é uma confusão dos diabos: história com romance policial, matemática com inglês, álbum de retratos misturado com revista de esportes.

        Pois foi no meio dessa anarquia (como diz minha mãe) que encontrei as Histórias extraordinárias, de Edgar Allan Poe. Ao ver o livro, lembrei logo de você. Quer saber por quê? Você me disse, lá no Rio, que nunca tinha lido uma história policial, e que não tinha o menor interesse por esse tipo de livro. Confesso que, na hora, fiquei muito espantado e pensei assim comigo: “Oxente, como é que alguém diz que gosta de ler e nunca se interessou por histórias policiais?” Eu adoro, simplesmente adoro, uma boa trama (sabe o que é?), um mistério bem misterioso, um segredo bem guardado. Esse livro do Poe (eu acho que a pronúncia é “pôu”) é muito bom, Maria Júlia, mas muito bom mesmo. Como já li e reli mais de dez vezes, achei que podia passar um tempo sem ele. É por isso que estou te mandando o livro. Se você ler e gostar, pode ficar com ele, é um presente. Se ler e não gostar tanto quanto eu, não se aperreie, pode me devolver, foi um empréstimo.

        Na hora de escrever no envelope, pintou a dúvida: eu só sei o teu nome, mas não tenho o teu endereço. Foi aí que me lembrei que você disse que sua mãe trabalha na agência dos Correios de Dores do Indaiá. Espero que minha ideia de escrever para lá tenha funcionado...

        Fico por aqui. Um abraço. Até qualquer dia.

        José Romildo.

BAGNO, M.; RESENDE, S. M. Os nomes do amor. São Paulo: Moderna, 1993, p. 5-6.

       Fonte: Língua Portuguesa. Linguagens no Século XXI. 5ª série. Heloísa Harue Takazaki. Ed. IBEP. 1ª edição, 2002. p. 33-4.

Entendendo a carta:

01 – Quem escreveu a carta? De onde ela foi escrita?

      José Romildo, de Recife. Pernambuco.

02 – Para quem é a carta? Onde mora esse destinatário?

      Para Maria Júlia, da cidade de Dores do Indaiá.

03 – Eles já se conheciam? Explique.

      Sim, encontraram-se uma vez, quando estavam de férias no Rio de Janeiro.

04 – O que levou José Romildo a escrever para ela?

      O fato de ela ter dito que não gostava de histórias policiais. Ele resolveu lhe mandar um livro.

05 – Há palavras ou expressões que você não conhece na carta de José Romildo? Quais?

      Resposta pessoal do aluno.

06 – Que idade você supõe que eles tinham?

      A idade dos dois está, aproximadamente, entre 12 e 18 anos. Isso pode ser comprovado através da linguagem usada (confusão dos diabos, pintou uma dúvida), das referências à escola e aos pais.

07 – Em alguns trechos, José Romildo faz perguntas para Maria Júlia como se ela estivesse conversando diretamente com ele. Em que trechos isso acontece? Copie-os em seu caderno.

      “E então, já se lembrou?”; “Quer saber por quê?”; “Sabe o que é?”

      

 


domingo, 20 de janeiro de 2019

CARTA: CONTRA A DOUTRINA GRAMATICAL TRADICIONAL - MARCOS BAGNO - COM QUESTÕES GABARITADAS

Carta: Contra a doutrina gramatical tradicional
        
   São Paulo, 04 de novembro de 2001.
           Sr. Editor;
        (…) 

       Em 1990, o linguista e educador britânico Michael Stubbs escrevia que “toda a área da língua na educação está impregnada de superstições, mitos e estereótipos, muitos dos quais têm persistido por séculos e, às vezes, com distorções deliberadas dos fatos linguísticos e pedagógicos por parte da mídia”. É triste constatar que essas palavras, publicadas há mais de uma década, se aplicam com precisão impressionante ao que ainda ocorre hoje em dia no Brasil. Afinal, de que outro modo qualificar a reportagem de capa do número 1725 de Veja senão como uma série de “distorções deliberadas dos fatos linguísticos e pedagógicos por parte da mídia”?
        O texto assinado pelo Sr. João Gabriel de Lima demonstra o quanto nossos meios de comunicação de massa se encontram, perdoe-me o lugar-comum, na contramão da História quando o assunto é língua. Há um absoluto despreparo de jornalistas e comunicadores para tratar do tema (um exemplo gritante disso veio a público em outra edição recente de Veja, a de número 1710, com a reportagem “Todo mundo fala assim”). 
        Se falo de contramão é porque — passados mais de cem anos de surgimento, crescimento e afirmação da Linguística moderna como ciência autônoma —, a mídia continua a dar as costas à investigação científica da linguagem, preferindo consagrar-se à divulgação e sustentação das “superstições, mitos e estereótipos” que circulam na sociedade ocidental há mais de dois mil anos. Isso é ainda mais surpreendente quando se verifica que, na abordagem de outros campos científicos, os meios de comunicação se mostram muito mais cuidadosos e atenciosos para com os especialistas da área. Quando o assunto é língua, porém, o espaço maior é invariavelmente ocupado por alguns oportunistas que, apoderando-se inteligentemente dessas “superstições, mitos e estereótipos”, conseguem transformar esse folclore linguístico em bens de consumo que lhes rendem muito lucro financeiro, além de fama e destaque na mídia. Basta comparar o espaço dedicado, no último número de Veja, ao Prof. Luiz Antônio Marcuschi (reconhecido quase unanimemente hoje no Brasil como o nome mais importante da ciência linguística entre nós) e aos atuais pregadores da tradição gramatical que infestam o quotidiano dos brasileiros com suas quinquilharias multimidiáticas sobre o que é "certo" e "errado" na língua. 
        Seria espantoso ver uma matéria de Veja em que aparecessem zoólogos falando mal da Biologia, ou engenheiros criticando a Física, ou cirurgiões maldizendo da Medicina. No entanto, ninguém se espanta (e muitos até aplaudem) quando o Sr. João Gabriel de Lima, fazendo eco aos detratores da Linguística (como o Sr. Pasquale Cipro Neto), fala da existência de “certa corrente relativista” e escreve absurdos como “trata-se de um raciocínio torto, baseado num esquerdismo de meia-pataca, que idealiza tudo o que é popular — inclusive a ignorância, como se ela fosse atributo, e não problema, do ‘povo’. O que esses acadêmicos preconizam é que os ignorantes continuem a sê-lo”. Seria muito fácil retrucar que estamos aqui diante de um “direitismo de meia-pataca” que acredita na existência de uma “ignorância popular”, mas, como cientista, prefiro recorrer a outro tipo de argumento, baseado na reflexão teórica serena e na experiência conjunta de muitas pessoas que há anos se dedicam ao estudo e ao ensino da língua portuguesa no Brasil. 
        Segundo a reportagem, as críticas que o Sr. Pasquale Cipro Neto recebe dessa “corrente relativista” deixam-no “irritado”. Ora, o que parece realmente irritar o Sr. Pasquale é o fato de que, apesar de obter tanto sucesso entre os leigos, nada do que ele diz ou escreve é levado a sério nos centros de pesquisa científica sobre a linguagem, sediados na mais importantes universidades do Brasil — centros de pesquisa linguística, diga-se de passagem, reconhecidos internacionalmente como entre alguns dos melhores do mundo (Unicamp, USP, Unesp, UFRGS, UFPE entre outras). Muito pelo contrário, se o nome do Sr. Pasquale é mencionado nas nossas universidades, é sempre como exemplo de uma atitude anticientífica dogmática e até obscurantista no que diz respeito à língua e seu ensino (em vários de seus artigos em jornais e revistas ele já chamou os linguistas de "idiotas", "ociosos", "defensores do vale-tudo" e "deslumbrados").
        Se o Sr. Pasquale se irrita com os cientistas da linguagem, é porque sabe que não tem como responder às críticas que recebe por parte dos pesquisadores, dos teóricos e dos educadores empenhados num conhecimento maior e melhor da realidade linguística do nosso país. Digo isso com base na experiência de já ter participado de três debates junto com o Sr. Pasquale e ter conhecido sua estratégia de nunca responder com argumentos consistentes às críticas a ele dirigidas, preferindo sempre retrucar com arrogância, prepotência, grosserias e ataques pessoais (chamando os linguistas de "ortodoxos" — seja isso lá o que for — e de "bichos-grilos") ou fazendo-se de vítima de alguma perseguição (num desses encontros ele declarou sentir-se como um "boi de piranha"). 
        A razão para essa falta de argumentos consistentes é muita simples: o Sr. Pasquale não tem formação científica para tratar dos assuntos de que trata. Suas opiniões se baseiam exclusivamente na arcaica doutrina gramatical normativo-prescritiva, cuja inconsistência teórica e cujos problemas epistemológicos graves vêm sendo demonstrados e criticados pela Linguística moderna desde pelo menos o final do século XIX. As concepções do Sr. Pasquale de "certo" e de "errado" estão em franca oposição, não só com as teorias científicas mais atuais, mas até mesmo com a postura investigativa dos gramáticos profissionais de sólida formação filológica (coisa que ele definitivamente não é), para não mencionar as diretrizes pedagógicas das instâncias superiores da Educação nacional. O documento do Ministério da Educação chamado Parâmetros Curriculares Nacionais, por exemplo, é bem explícito em seu volume dedicado ao ensino da língua portuguesa: 
        A imagem de uma língua única, mais próxima da modalidade escrita da linguagem, subjacente às prescrições normativas da gramática escolar, dos manuais e mesmo dos programas de difusão da mídia sobre 'o que se deve e o que não se deve falar e escrever', não se sustenta na análise empírica dos usos da língua. 
        E este mesmo documento é enfático ao afirmar que: há muitos preconceitos decorrentes do valor social relativo que é atribuído aos diferentes modos de falar: é muito comum se considerarem as variedades linguísticas de menor prestígio como inferiores ou erradas. O problema do preconceito disseminado na sociedade em relação às falas dialetais deve ser enfrentado, na escola, como parte do objetivo educacional mais amplo de educação para o respeito à diferença. Para isso, e também para poder ensinar Língua Portuguesa, a escola precisa livrar-se de alguns mitos: o de que existe uma única forma 'certa' de falar — a que se parece com a escrita — e o de que a escrita é o espelho da fala — e, sendo assim, seria preciso 'consertar' a fala do aluno para evitar que ele escreva errado. Essas duas crenças produziram uma prática de mutilação cultural que, além de desvalorizar a forma de falar do aluno, tratando sua comunidade como se fosse formada por incapazes, denota desconhecimento de que a escrita de uma língua não corresponde inteiramente a nenhum de seus dialetos, por mais prestígio que um deles tenha em um dado momento histórico. 
        É provável, no entanto, que o Sr. Pasquale Cipro Neto e o Sr. João Gabriel de Lima acreditem que os Parâmetros Curriculares Nacionais sejam obra de membros daquela "corrente relativista" que conseguiram se infiltrar no Ministério da Educação e se apoderar da redação do documento oficial. Vamos, então, deixar de lado as propostas oficiais de ensino e lançar um olhar sobre a própria prática normativo-prescritiva de pessoas como o Sr. Pasquale — assim ficará mais fácil descobrir por que ele não encontra argumentos para reagir às críticas bem-fundadas dos linguistas e educadores sérios e por que só consegue fazer sucesso entre os leigos e os que se recusam (certamente por motivações ideológicas) a aceitar uma concepção de língua mais democrática. 
        Consultando a gramática que Pasquale Cipro Neto assina em parceria com Ulisses Infante (Gramática da Língua Portuguesa, Editora Scipione, São Paulo, 1998), encontra-se, à p. 521-522, a seguinte explicação para o uso supostamente "correto" do verbo custar:
        Custar, no sentido de "ser custoso", "ser penoso", "ser difícil" tem como sujeito uma oração subordinada substantiva reduzida. Observe: 
        Ainda me custa aceitar sua ausência. 
        Custou-nos encontrar sua casa. 
        Custou-lhe entender a regência do verbo custar. 

        No Brasil, na linguagem cotidiana, são comuns construções como "Zico custou a chutar" ou "Custei para entender o problema" [...]
        Na língua culta, essas construções em que custar apresenta um sujeito indicativo de pessoa são rejeitadas. Em seu lugar, devem-se utilizar construções em que surja objeto indireto de pessoa: "Custou a Zico chutar" (= Custou-lhe chutar").
        Quero chamar a atenção, aqui, para a seguinte afirmação dos autores: "Na língua culta, essas construções [...] são rejeitadas". Aqui está um exemplo claro e nítido de uma concepção abstrata da língua, tratada como uma espécie de entidade viva, de sujeito animado, capaz de "rejeitar" alguma coisa. Ora, que língua culta é essa que supostamente rejeita essas construções? Será a língua dos nossos grandes escritores, que sempre serviu de material para o trabalho dos gramáticos normativistas? Fui investigar e descobri que não é, porque os exemplos de uso do verbo custar com sujeito são mais do que abundantes na nossa melhor literatura: 

(1) "Seixas custou a conter-se" (José de Alencar)
(2) "... as moças custavam a se separar" (Clarice Lispector) 
(3) "Renato custou a acordar" (Carlos Drummond de Andrade) 
(4) "Felicidade, custas a vir e, quando vens, não te demoras" (Cecília Meireles)" 
        Será que Alencar, Clarice Lispector, Drummond e Cecília Meireles não são bons exemplos de usuários da "língua culta"? Se não é na literatura, quem sabe, então, se recorrermos à imprensa contemporânea? Será que é lá que mora a famosa "língua culta" que rejeita essas construções? Ora, consultando o jornal onde o próprio Pasquale Cipro Neto escreve (Folha de S. Paulo) e onde presta serviços de "consultor de português" (seja isso lá o que for), encontramos: 
(6) Quem foi ao show de Maria Bethânia, anteontem à noite, depois de assistir o sóbrio concerto de João Gilberto, custou a crer que estivesse na mesma cidade (22/6/1998, p. 5-10). 
(7) O técnico colombiano, Hernán Darío Gómez, [...] custou a admitir a superioridade rival (16/6/1998, p. 4-14). 
(8) O nome Kubitschek era complicado de pronunciar, custou a ser assimilado pela fonética eleitoral (21/11/1997, p. 4-3). 

        Se lembrarmos que José de Alencar morreu em 1877, fica muitíssimo claro que essa construção está viva e presente na nossa língua há muito mais de um século! Os autores da gramática estão proferindo uma inverdade ao dizer que essa construção é típica do "Brasil quotidiano". Os Srs. Pasquale e Ulisses, em vez de se curvar à realidade concreta dos fatos, tentam nos convencer de que a opção que eles preferem, só porque é a tradicional, é que deve ser considerada "a melhor". É uma atitude essencialmente dogmática, que se recusa a empreender a pesquisa empírica mínima necessária para afirmações sobre o que existe e o que não existe na língua. Além disso, essa atitude é ainda mais conservadora do que a posição assumida por gramáticos de gerações anteriores à deles, como Celso Pedro Luft e Domingos Paschoal Cegalla, que reconhecem a vitória da construção "eu custo a crer que"... 
        Esse é apenas um pequeno exemplo de como é fácil, para um pesquisador munido de instrumental teórico consistente e de metodologia científica adequada, desautorizar uma a uma, e de modo convincente, as afirmações presentes no trabalho do Sr. Pasquale Cipro Neto e de outros atuais defensores da doutrina gramatical tradicional mais normativa e mais prescritiva possível. Por causa de tudo isso é que a estreia do Sr. Pasquale no programa Fantástico da Rede Globo representa, para a grande maioria dos cientistas da linguagem e dos educadores conscientes, mais um exemplo de como o nosso trabalho ainda está no começo, apesar de tudo o que já temos dito e feito. O quadro do Sr. Pasquale no Fantástico faz regredir em pelo menos 25 anos os grandes avanços já obtidos pela Linguística na renovação do ensino de língua na escola brasileira. Não consigo, portanto, deixar de repetir o chavão: ele se encontra na contramão da História. 
        Como já enfatizei acima, pessoas como o Sr. Pasquale só conseguem fazer sucesso entre os leigos, porque dizem exatamente o que as pessoas desejam ouvir: os mitos, as superstições e as crenças infundadas que, há mais de dois mil anos, guiam o senso-comum ocidental no que diz respeito à língua. Refiro-me ao senso-comum ocidental porque essa situação de embate entre uma ciência linguística moderna e uma doutrina gramatical arcaica também se verifica em outros países – basta ler os livros Language Myths, publicado na Inglaterra sob organização de L. Bauer e P. Trudgill, e o Catalogue des idées reçues sur le langage, publicado na França por Marina Yaguello. É por isso que escrevi, acima, que nossa luta ainda está no começo. É uma pena que não possamos contar com a ajuda dos meios de comunicação para dissipar todos esses mitos e preconceitos, que impedem a formação, no Brasil em particular, de uma autoestima linguística, uma vez que tudo o que os brasileiros ouvem e leem são os mesmos chavões, repetidos há séculos, de que "brasileiro não sabe português" e que a língua que falamos é "português estropiado". (O pesquisador canadense Christophe Hopper localizou lamúrias e queixas sobre a "ruína" e a "decadência" do francês em textos publicados em 1933, 1905, 1730 e 1689, o que prova a antiguidade desse discurso alarmista e preconceituoso sobre o fenômeno da mudança das línguas ao longo do tempo!) 
        Outro fato lamentável, na reportagem de VEJA, é que seu autor não tenha prestado o grande favor à sociedade de identificar quem são os membros dessa "certa corrente relativista", para que todos, público leitor em geral e linguistas profissionais em particular, pudéssemos nos precaver contra o suposto "raciocínio torto" de um "esquerdismo de meia-pataca" dos que acreditam que ensinar a norma-padrão não seria útil para as classes sociais desfavorecidas. Minha curiosidade ficou especialmente aguçada porque, como pesquisador dedicado há muitos anos ao estudo das relações entre língua, ensino de língua e fenômenos sociais, até hoje não encontrei uma única obra - assinada por linguista de formação ou por educador profissional - que negasse a importância do ensino da norma-padrão na escola brasileira, que pregasse a ideia torpe de que não se deve ensinar as formas prestigiosas da língua, ou que "preconizam que os ignorantes continuem a sê-lo", para citar as palavras infelizes da reportagem de VEJA.
        Entre os membros da comunidade acadêmico-científica que não se intimidam diante da pressão esmagadora das "superstições, mitos e estereótipos" sobre a língua podemos citar a Profa. Magda Soares (reconhecida como uma das mais importantes educadoras brasileiras de todos os tempos) e o Prof. Sírio Possenti (que nunca teve papas na língua para denunciar e demolir cientificamente os absurdos proferidos por gente como Pasquale Cipro Neto). Ora, já em 1986, Magda Soares, em seu livro (um clássico da educação brasileira) Linguagem e Escola (Editora Ática), escrevia, sem hesitação (p. 78): 
        Um ensino de língua materna comprometido com a luta contra as desigualdades sociais e econômicas reconhece, no quadro dessas relações entre a escola e a sociedade, o direito que têm as camadas populares de apropriar-se do dialeto de prestígio, e fixa-se como objetivo levar os alunos pertencentes a essas camadas a dominá-lo, não para que se adaptem às exigências de uma sociedade que divide e discrimina, mas para que adquiram um instrumento fundamental para a participação política e a luta contra as desigualdades sociais. 
        Também em seu muito divulgado livro Por que (não) ensinar gramática na escola (Ed. Mercado de Letras, 1996), Sírio Possenti faz questão de enfatizar (p. 17-18): 

O PAPEL DA ESCOLA É ENSINAR LÍNGUA PADRÃO 

        [...] adoto sem qualquer dúvida o princípio (quase evidente) de que o objetivo da escola é ensinar o português padrão, ou, talvez mais exatamente, o de criar condições para que ele seja aprendido. Qualquer outra hipótese é um equívoco político e ideológico. 
        E eu mesmo, que não tenho hesitado em combater abertamente a manutenção das concepções arcaicas e preconceituosas de língua, escrevi em meu mais recente livro publicado (Português ou Brasileiro? Um convite à pesquisa, Parábola Editorial, 2001): 
        [...] como responder a pergunta (invariavelmente presente na fala dos professores de língua): qual o objeto de ensino nas aulas de português? O que devemos ensinar a nossos alunos em sala de aula? 
        Uma resposta concisa e rápida seria: devemos ensinar a norma-padrão. Já que só se pode ensinar algo que o aprendiz ainda não conhece, cabe à escola ensinar a norma-padrão, que não é língua materna de ninguém, que nem sequer é língua, nem dialeto, nem variedade, como enfatizei acima. Ensinar o padrão se justificaria pelo fato dele ter valores que não podem ser negados - em sua estreita associação com a escrita, ele é o repositório dos conhecimentos acumulados ao longo da história. Esses conhecimentos, assim armazenados, constituiriam a cultura mais valorizada e prestigiada, de que todos os falantes devem se apoderar para se integrar de pleno direito na produção/condução/transformação da sociedade de que fazem parte. 
        Tenho, portanto, a consciência muito tranquila (como decerto também a têm Magda Soares, Sírio Possenti e, de fato, a maioria dos linguistas e educadores brasileiros comprometidos com a democratização de nossa sociedade) de não fazer parte daquela "corrente relativista" e de não poder ser acusado de ter um "raciocínio torto". Por isso, volto a lamentar que o Sr. João Gabriel de Lima não tenha dado nome aos bois, para que, juntos, pudéssemos combater esse suposto "esquerdismo de meia-pataca". Não nomear seus adversários no plano intelectual, no entanto, é prática corrente de pessoas como Pasquale Cipro Neto que, embora alegando referir-se a "alguns" linguistas, nunca se dá ao trabalho de dizer quem são os "idiotas", "ociosos" e "deslumbrados" a que se refere.
        A grande diferença entre os linguistas e educadores que defendem o ensino da norma-padrão e os apregoadores da doutrina gramatical arcaica está no fato de que já se sabe hoje em dia que, para aprender as formas mais padronizadas e prestigiosas da língua, não é necessário conhecer a nomenclatura gramatical tradicional, as definições tradicionais, nem praticar a velha e mecânica análise lexical e muito menos a torturante análise sintática. Em seu depoimento a VEJA, o Sr. Pasquale Cipro Neto lamenta que ninguém mais saiba diferenciar "sujeito" de "predicado", nem mesmo os professores. Ora, todo um longo trabalho de investigação teórica e de pesquisa em sala de aula - no Brasil e no resto do mundo -, trabalho que se faz há pelo menos trinta anos, já deixou muito claro que não é decorando as páginas da gramática normativa que uma pessoa será capaz de falar, ler e escrever adequadamente às diversas situações. O já citado M. Stubbs escrevia, em 1987, que [...]
        Muita gente lamenta o fim do ensino da gramática formal (análise sintática e coisas assim), alegando que ele ajudava as crianças a escrever melhor, com mais precisão e assim por diante. [...] é duvidoso que aquele ensino jamais tenha ajudado muita gente a escrever melhor, e é nítido que ele afugentou um grande número de pessoas. A relação entre análise e compreensão, e entre compreensão consciente e produção de linguagem efetiva, é difícil de demonstrar. 
        E o pedagogo canadense Gilles Gagné, em 1983, já dizia: "O uso da língua procede da intenção para a convenção", conclui McShane (1981), ao passo que a escola procede infelizmente ao contrário, isto é, das convenções linguísticas para as intenções de comunicação; intenções, além disso, quase sempre artificiais e impostas ou sugeridas pelo mestre.
        E aquele que é considerado hoje, inclusive internacionalmente, como o nome mais importante da pesquisa científica sobre o português brasileiro contemporâneo – o Prof. Ataliba T. de Castilho, da USP, atual presidente da Associação de Linguística e Filologia da América Latina e coordenador do grande Projeto da Gramática do Português Falado (projeto apresentado de maneira distorcida e preconceituosa no número 1710 de VEJA) – escreve com toda clareza em seu livro A língua falada e o ensino de português (Ed. Contexto, 1998, p. 21-22): 
        [...] os recortes linguísticos devem ilustrar as variedades sócio culturais da Língua Portuguesa, sem discriminações contra a fala vernácula do aluno, isto é, de sua fala familiar. A escola é o primeiro contato do cidadão com o Estado, e seria bom que ela não se assemelhasse a um "bicho estranho", a um lugar onde se cuida de coisas fora da realidade cotidiana. Com o tempo o aluno entenderá que para cada situação se requer uma variedade linguística, e será assim iniciado no padrão culto, caso já não o tenha trazido de casa. 
        Desse modo, prossegue o autor (p. 23), a gramática deixará de ser vista pelos alunos como a disciplina do certo e do errado, reassumindo sua verdadeira dimensão, que é a de esquadrinhar através dos materiais linguísticos o funcionamento da mente humana. 
        Afinal, o que aconteceu, ao longo dos séculos, segundo Castilho, foi que a gramática, que não era uma disciplina autônoma, assumiu na escola uma vida própria, desgarrada de suas origens, e concentrada apenas na sentença, na palavra e no som, obscurecendo-se sua argumentação e empobrecendo-se seu alcance.

      Se existe, porém, uma grande resistência contra o redimensionamento do lugar do ensino da gramática na escola é porque todos sabemos que, ao longo do tempo, o conhecimento mecânico da doutrina gramatical se transformou num instrumento de discriminação e de exclusão social. "Saber português", na verdade, sempre significou "saber gramática", isto é, ser capaz de identificar - por meio de uma terminologia falha e incoerente - o "sujeito" e o "predicado" de uma frase, pouco importando o que essa frase queria dizer, os efeitos de sentido que podia provocar etc. Transformada num saber esotérico, reservado a uns poucos "iluminados", a "gramática" passou a ser reverenciada como algo misterioso e inacessível - daí surgiu a necessidade de "mestres" e "guias", capazes de levar o "ignorante" a atravessar o abismo que separa os que sabem dos que não sabem português... 
        Em conclusão, Sr. Editor, gostaria de lhe pedir que, uma vez que tão amplo espaço foi concedido aos defensores da ideia medieval de que "os brasileiros não sabem falar bem", caberia agora a VEJA conceder igual espaço aos verdadeiros especialistas, às pessoas que dedicam toda sua energia, toda sua inteligência, toda sua vida, enfim, ao estudo dos fenômenos da linguagem humana e à proposição de novos métodos de ensino, capazes de dar voz aos que, por força de tantas estruturas sociais injustas, sempre foram mantidos no silêncio. Talvez assim Veja possa se livrar do risco de ser acusada de promover "distorções deliberadas dos fatos linguísticos e pedagógicos". 
                                                                 Atenciosamente,
                                                                   Marcos Bagno
Entendendo a carta:
01 – O primeiro parágrafo contém a tese a ser desenvolvida no decorrer do texto. Qual é essa tese?
      A de que a reportagem da Veja pode ser qualificada como “uma série de distorções deliberadas dos fatos linguísticos e pedagógicos por parte da mídia”.

02 – No segundo parágrafo, o autor da carta explica a causa principal das distorções linguísticas e pedagógicas por parte da mídia. Qual seria?
      A falta de preparo de jornalistas e comunicadores para tratar do tema.

03 – Pasquale questiona: “Como o aluno vai aprender a diferença entre sujeito e predicado se nem o professor entende direito? Por que, segundo Bagno, essa questão constitui uma distorção pedagógica?
      É uma distorção pedagógica porque a questão de Pasquale tem como pressuposto a falsa ideia de que aprender a classificar termos gramaticais (como sujeito e predicado) signifique aprender Língua Portuguesa.

04 – Marcos Bagno usa um recurso argumentativo bastante eficiente para defender sua posição: desautoriza aqueles que defendem ideias contrárias. Explique essa afirmação e localize o recurso na carta reproduzida.
      Pasquale e o jornalista João Gabriel de Lima não seriam as pessoas mais adequadas para falar sobre a língua, já que não possuem formação para isso. O terceiro e o quarto parágrafos exemplificam o recurso.

05 – Qual seria a estratégia de Pasquale, segundo Marcos Bagno, para falta de argumentos consistentes?
      Ofender seus supostos “adversários”: os linguistas de formação teórica consistente.

06 – O que seria um argumento consistente, segundo Marcos Bagno?
      Aquele baseado em pesquisa sistemática, em dados empíricos, em trabalhos científicos de especialistas.

07 – O autor se refere ao embasamento teórico de Pasquale como sendo ultrapassado e não válido. Comente.
      No quinto parágrafo, o autor comenta que as opiniões de Pasquale estão baseadas na “arcaica doutrina gramatical normativo-prescritiva, cuja inconsistência teórica e cujos problemas epistemológicos graves vêm sendo demonstrados e criticados pela Linguística moderna desde pelo menos o final do século XIX”.

08 – Observe que o autor da carta faz várias citações no decorrer de seu texto. Qual é a função dessas citações?
      As citações comprovam e/ou endossam o que diz o autor da carta. Assim, conferem credibilidade ao texto.

09 – Releia: “É provável, no entanto, que o Sr. Pasquale Cipro Neto e o Sr. João Gabriel de Lima acreditem que os Parâmetros Curriculares Nacionais sejam obra de membros daquela "corrente relativista" que conseguiram se infiltrar no Ministério da Educação e se apoderar da redação do documento oficial.”

        A ironia não é um argumento, mas pode ser um excelente recurso persuasivo, ou seja, uma forma de seduzir o leitor. Que palavras constituem ironia? Explique.
      A expressão “membros daquela corrente relativista” e as palavras “infiltrar” e “apoderar” são relativas aos linguistas, mas sugerem, de forma irônica, obscurantismo e marginalidade.

10 – Releia o seguinte trecho da revista Veja.
        (As críticas) ecoam o pensamento de uma certa corrente relativista, que acha que os gramáticos preocupados com as regras da norma culta prestam um desserviço à língua. De acordo com essa tendência, o certo e o errado em português não são conceitos absolutos. Quem aponta incorreções na fala popular estaria, na verdade, solapando a inventividade e a autoestima das classes menos abastadas. Isso configuraria uma postura elitista. Trata-se de um raciocínio torto, baseado num esquerdismo de meia-pataca, que idealiza tudo o que é popular – inclusive a ignorância, como se ela fosse atributo, e não problema, do “povo”. O que esses acadêmicos preconizam é que os ignorantes continuem a sê-lo. Que percam oportunidades de emprego e consequente chance de subir na vida por falar errado.

a)   Aponte as premissas sobre as quais se fundamenta esse trecho.
·        A língua portuguesa é única e invariável.
·        Existe aquilo que é certo e aquilo que é errado falar.
·        A fala “errada” deve ser corrigida.
·        A fala popular possui incorreções, próprias de gente ignorante.
Todas as premissas são verdadeiras.

b)   As premissas, segundo Marcos Bagno, são falsas ou verdadeiras?
São todas falsas.

c)   O argumento mais apelativo do trecho afirma que não ensinar a língua padrão é limitar as possibilidades de ascensão social e profissional do estudante. Como isso é refutado na carta de Marcos Bagno?
Marcos Bagno afirma que, em hipótese alguma, nenhum linguista ou educador jamais defendeu em obra científica tal absurdo. Muito pelo contrário, defende-se que o ensino da norma culta seja o objetivo da escola. Entretanto, o que se deve erradicar é o preconceito em relação às falas populares e a ideia de que a norma culta se aprende com regras gramaticais.

11 – No texto, são utilizadas diferentes palavras e expressões para se referir a Pasquale e a outros profissionais do mesmo ramo.
a)   Faça uma lista dessas palavras e expressões.
Oportunistas; pregadores da tradição gramatical, detratores da Linguística, apregoadores da doutrina gramatical arcaica, defensores da ideia medieval de que “os brasileiros não sabem falar bem”.

b)   O que todas as palavras e expressões têm em comum?
Todas são depreciativas e enfatizam o caráter e falta de atualização desses profissionais.