quarta-feira, 15 de maio de 2019

POEMA: EXORTAÇÃO - MAURÍCIO DE ALMEIDA GOMES - COM GABARITO

Poema: Exortação
              Maurício de Almeida Gomes

Ribeiro Couto e Manuel Bandeira,
poetas do Brasil,
do Brasil, nosso irmão,
disseram:
“-- É preciso criar a poesia brasileira,
de versos quentes , fortes, como o Brasil,
sem macaquear a literatura lusíada”.

          Angola grita pela minha voz
          pedindo a seus filhos nova poesia!

Deixemos moldes arcaicos,
ponhamos de lado,
corajosamente, suaves endeixas,
brandas queixas,
e cantemos a nossa terra
e toda a sua beleza.

Angola, grande promessa do futuro,
forte realidade do presente,
inspira novas ideias,
encerra ricos motivos.

É preciso inventar a poesia de Angola!

Fecho meus olhos e sonho,
abrindo de par em par o coração,
e vejo a projecção dum filme colorido
com tintas de fantasia
e cenas de magia:

As imagens são paisagens, gentes, feras.
e sucedem-se lenta, lenta, lentamente…
assisto maravilhado
ao despenhar gemente
das quedas d’água do duque de Bragança…
vejo crescer florestas colossais
no maiombe, onde o verde é símbolo
de tanta esperança…

Amboim fecundo, amboim cafezeiro,
de alcantis envoltos sempre em nevoeiro denso,
como um fumo cheiroso
do seu café gostoso,
tão famoso no mundo.

O deserto de namib a espreguiçar-se
num bocejo mole,
estendendo tentáculos de areia
como polvo gigante
-- visão alucinante,
miragem
no escrínio esquisito
que guarda avaramente
a joia mais horrivelmente linda
e única no mundo
-- a welwitshia mirabilis,
que em si encerra mistério tão profundo…

É preciso escrever a poesia de Angola!

Vejo anharas infindáveis,
onde noivam no capim,
pelo amor amansadas,
feras bravas, indomáveis…
vejo lagos de safiras,
tão calmos
como olhos ternos,
chorosos,
de tímidas gazelas…

E terras rendilhadas do litoral,
secas, rugosas, escalvadas,
onde reina o imbondeiro,
gigantesco prometeu agrilhoado,
visão estranha, infernal, horrenda,
verde pálido, branco, cinzento,
lembrando líquen mágico, colossal

Baías, cabos, estuários,
praias morenas,
mares verdes, mares azuis,
e rios de aspecto inofensivo
mas cheios de jacarés…

Terras de mandioca e batata doce,
campos de sisal, minas e metais,
goiabeiras, palmeiras, cajueiros,
areais imensos, cheios de diamantes,
chuvadas torrenciais,
filas tristes de negros carregadores gemendo,
cantando tristemente seus cantares…
planaltos, montanhas e fogueiras,
feiticeiros dançando loucamente:
Angola é grande e rica e bela e vária.

É preciso criar a poesia de Angola!

Terra enorme onde o insecto impera:
mosquito da febre e mosca tzé-tzé,
cobrindo tudo de sono.

Olhai o senhor arquitecto Salalé,
tão pequenino, tão teimoso e diligente…
como ele projecta e constrói castelos,
milhões de vezes maiores que ele é,
para vergonha nossa,
que pouco fazemos,
presos de fútil, preguiçoso dandismo…


Encostai o ouvido atento
ao coração do novo negro,
escutareis só vós, poetas da minha terra,
que estais por nascer,
aquilo que para outros é segredo defeso,
mistério da esfíngica, malsinada alma negra.
criai ânimo, ganhai alento,,
e vibrantemente cantai a nossa terra!

É preciso forjar a poesia de Angola!

Essa nova poesia
será vasada em forma candente
sem limites nem peias,
diferente!...

Mas onde estão os filhos de Angola,
se os não oiço cantar e exaltar
tanta beleza e tanta tristeza,
tanta dor e tanta ânsia
desta terra e desta gente?

Essa nova poesia,
forte, terna, nova e bela,
Amálgama de lágrimas e sangue,
sublimação de muito sofrimento,
afirmação duma certeza.

Poesia inconformista,
diferente,
será revolucionária,
como arte literária,
desprezando regras estabelecidas,
ideias feitas, pieguices, transcendências…

Poesia nossa, única, inconfundível,
diferente,
quente, que lembre o nosso sol,
suave, lembrando nosso luar…
que cheire o cheiro do mato,
tenha as cores do nosso céu.
o nervosismo do nosso mar,
o paroxismo das queimadas,
o cantar das nossas aves,
rugir de feras, gritos de negros,
gritos de há muitos anos,
de escravos, de engenhos das roças,
no espaço vibrando, vibrando…

Sons magoados, tristíssimos, enervantes,
de quissanges e marimbas…
versos que encerrem e expliquem
todo o mistério desta terra,
versos nossos, húmidos, diferentes,
que, quando recitados,
nos façam reviver o drama negro
e suavizem corações,
iluminem consciências,
e evoquem paisagens
e mostrem caminhos,
rumos, auroras…

Uma poesia nossa, nossa, nossa!
-- cântico, reza, salmo, sinfonia,
Que uma vez cantada,
Rezada,
Escutada,
Faça toda a gente sentir
Faça toda a gente dizer:

          -- É a poesia de Angola!
                             In: Tania Macêdo e Rita Chaves, op. cit. p. 61-66.

Entendendo o poema:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo.
·        Amálgama: reunião, mistura, ajuntamento.

·        Marimba: tambor.

·        Quissange: música.

02 – A primeira estrofe do poema cita nominalmente dois escritores brasileiros, Ribeiro Couto e Manuel Bandeira, que pertenceram à primeira geração do nosso Modernismo. Sabendo que essa geração empenhava-se, entre outras coisas, pelo resgate das tradições da cultura popular brasileira e pela definição de uma identidade nacional, responda: O que justifica a citação desses poetas no poema de Maurício Gomes?
      Assim como os modernistas brasileiros da primeira geração, os poetas angolanos da geração de Maurício Gomes também estavam interessados em criar uma poesia livre dos modelos lusitanos ou europeus, uma poesia que fosse expressão da identidade nacional.

03 – O título do poema é “Exortação”. O que o poema procura exortar?
      O poema procura exortar os poetas angolanos a fazer uma nova poesia, genuinamente angolana.

04 – Observe estes versos do poema:
        “Deixemos moldes arcaicos,
        ponhamos de lado,
        corajosamente, suaves endeixas,
        brandas queixas,
        [...]
        Desprezando regras estabelecidas,
        Ideias feitas, pieguices, transcendências...”

a)   De acordo com esses versos, o que a nova “poesia de Angola” deve desprezar? Comprove sua resposta com palavras e expressões do texto.
Deve desprezar modelos literários antigos e tudo aquilo que seja etéreo ou excessivamente sentimental como comprovam as expressões: “moldes arcaicos”; “ideias feitas”; “pieguices”; “transcendências”.

b)   Portanto, qual é a visão do poeta sobre a função da nova “poesia de Angola”?
A nova poesia de Angola deve tratar da realidade do país, das coisas próprias da terra e do povo angolanos.

05 – Observe as duas últimas estrofes do poema:
a)   A partir de que elementos – temas, assuntos – deve ser feita a nova “poesia de Angola”? Comprove sua resposta.
A poesia deve ser feita a partir dos elementos naturais (o luar, o mato, o céu, o mar, as aves), culturais (quissanges e marimbas) sociais e históricos (as roças, a escravidão) de Angola.

b)   Considerando o contexto em que o poema foi escrito, é possível dizer que ele tem um caráter anticolonialista? Por quê? Justifique sua resposta.
Sim, pois, no contexto do colonialismo português, o rompimento com os modelos literários portugueses e a valorização de elementos próprios da terra revelam uma atitude nacionalista, em contraposição aos interesses da metrópole portuguesa.

06 – Releia estes versos finais do poema:
        “Uma poesia nossa, nossa, nossa!
        -- cântico, reza, salmo, sinfonia,
        Que uma vez cantada,
        Rezada,
        Escutada,
        Faça toda a gente sentir
        Faça toda a gente dizer:

        -- É a poesia de Angola!”

a)   O que justifica a repetição da palavra nossa no 1° verso desse fragmento?
Há a intenção de reforçar a ideia da identidade cultural angolana, ou seja, a nova poesia angolana seria expresso cultural do povo angolano.

b)   Por que o poeta mistura elementos de diferentes naturezas, como cântico, reza, salmo e sinfonia para caracterizar a nova “poesia de Angola”?
Porque a nova poesia seria um elemento de comunhão do povo angolano, uma espécie de espaço sagrado da cultura angolana, em que se manifestariam as mais profundas raízes (místicas, religiosas e profanas) do povo de Angola.




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