Crônica: Na
esquina e na praça
Dobramos a esquina e vi o homem caído.
Não. Dobramos a esquina e ouvi os gritos do homem caído. Não. Dobramos a
esquina e ouvi os gritos. Aí vi que eram de um homem caído.
-- Mãe, vou até a praça com a Rita
brincar nos balanços.
-- Tá bem. Não demora. Rita, traz leite
na volta.
Vi o homem caído e pensei que estivesse
ferido e falei, para o carro que o homem está ferido. Mas logo pensei que estivesse
bêbado, mania minha de dramatizar. Aí vi o sangue.
Começou a chover, achei que as meninas
tinham se protegido debaixo de alguma marquise. Não me preocupei por elas
estarem demorando.
O homem estava caído ao lado da
carrocinha de cachorro-quente, na calçada da praia. Saltamos do carro correndo.
Pensei que tinha se machucado carregando engradados de refrigerantes, tinha se
cortado nos cacos. Tentei inventar uma história para justificar de forma
incolor o homem caído no sangue. Mas o homem tinha a sua história.
Reclamei com as duas quando as vi
chegar. Vinham suadas, de cabelo molhado. Cadê o leite? Perguntei.
-- Foi assalto. Levaram todo o
dinheiro. Estavam de carro.
O homem pálido, a cabeça encostada num
embrulho, quase não se mexia. Cadê a ambulância? Já vem. O sangue na calçada ia
virando mingau, os sapatos deixaram uma marca clara revelando o cimento.
-- Mãe, você não sabe o que aconteceu!
-- Deram tiro nele de pura malvadeza.
Não queriam pagar o cachorro-quente e ainda levaram o dinheiro.
O homem gemendo. Me leva, gente, me
leva que eu estou morrendo. Tá morrendo nada, foi na perna, amigo, perna não
mata ninguém. É, mas é na perna que tem o femural, eu fosse a senhora levava
ele, a ambulância não vem mesmo, o homem acaba morrendo.
Acaba morrendo no meu carro. Aí, o que
é que eu faço? E vai manchar tudo de sangue. Não, não é por causa do sangue,
mas é porque a gente não deve mexer em gente ferida. Não é não, é por causa do
medo mesmo, estou com medo de me envolver com o homem, com o sangue do homem,
com a morte e a vida do homem. Oh, meu Deus, por que é que eu fui passar por
esta esquina e dar de cara com a minha mesquinhez?
-- Mãe, foi um bando de meninos [...].
Eles rodearam a gente e atiraram areia e pedras na gente, puxaram o cabelo da
Rita, aí disseram que minha mãe era piranha e eu disse que não era, que minha
mãe é jornalista, e eles não deixavam a gente ir embora nem andar, e disseram
que iam arrancar minha carteira e tomar meu dinheiro e ainda me davam uma
surra.
-- Eu vi da janela quando deram o tiro
nele.
Será que o homem morre mesmo? e se
morrer e eu não tiver levado ele, como é que vou viver depois? E seu levar e
morrer no caminho, como é que eu vou viver depois? Mas eu juro que a ambulância
vem, o homem disse que vinha. Eu preciso que a ambulância venha.
-- Aí, mãe, chegaram dois moços e
vieram salvar a gente. Espantaram os meninos, deram a maior bronca, e trouxeram
a gente até aqui embaixo.
Lá vem a ambulância. Pronto. É pela
boca da calça que se levanta a perna de um ferido. Eles sabem mexer sem
machucar. O homem não está morrendo, não vai morrer, não tem femural nenhuma.
Foi um tiro na perna, e eu estou salva.
-- Tive tanto medo, mãe.
Marina
Colasanti. Na esquina e na praça. In: _______ A casa das palavras. São Paulo:
Ática. [s.d.] v. 32.
Entendendo a crônica:
01 – O que você achou do
texto e das situações apresentadas nele?
Resposta pessoal do aluno.
02 – O que a leitura desse
texto despertou em você? Comente com os colegas e verifiquem se eles também
tiveram a mesma sensação ao ler o texto.
Resposta pessoal
do aluno.
03 – Por que o primeiro
parágrafo, a narradora relata os fatos na ordem não linear? Que efeito de
sentido isso causa na compreensão?
Isso ocorreu
porque ela foi relatando os fatos com base no que ia recordando, o que torna a
narrativa não linear. O efeito é a ideia de agitação da vida cotidiana.
04 – Embora a história seja
contada de forma desordenada, é possível perceber que duas situações diferentes
de violência foram relatadas.
a)
Que situações são essas?
O homem que levou um tiro na perna e as meninas que foram
assaltadas.
b)
Identifique em cada parágrafo do texto cada
uma das duas histórias apresentadas.
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: A resposta está indicada no
texto.
05 – Releia o seguinte
trecho: “Acaba morrendo no meu carro.
Aí, o que é que eu faço? E vai manchar tudo de sangue. Não, não é por causa do
sangue, mas é porque a gente não deve mexer em gente ferida. Não é não, é por
causa do medo mesmo, estou com medo de me envolver com o homem, com o sangue do
homem, com a morte e a vida do homem. Oh, meu Deus, por que é que eu fui passar
por esta esquina e dar de cara com a minha mesquinhez?”
a)
Por que o narrador se considera mesquinha?
Explique.
Porque ela reconhece que estava mais preocupada com a sua própria
situação do que com o problema vivenciado pela pessoa que estava precisando de
ajuda.
b)
A maneira como a narradora desse trecho trata
o problema revela que a violência é vista de que forma?
A atitude dela revela que a violência é vista de maneira banal.
4. Releia o seguinte trecho: " Tentei inventar uma história para justificar de forma INCOLOR o homem caído no sangue." O que a oposição entre INCOLOR e CAÍDO NO SANGUE sugere? *
ResponderExcluireu estou em duvida?
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