sexta-feira, 24 de maio de 2019

CRÔNICA: NA ESQUINA E NA PRAÇA - MARINA COLASANTI - COM GABARITO

Crônica: Na esquina e na praça
                      
                 Marina Colasanti

        Dobramos a esquina e vi o homem caído. Não. Dobramos a esquina e ouvi os gritos do homem caído. Não. Dobramos a esquina e ouvi os gritos. Aí vi que eram de um homem caído.
        -- Mãe, vou até a praça com a Rita brincar nos balanços.
        -- Tá bem. Não demora. Rita, traz leite na volta.

        Vi o homem caído e pensei que estivesse ferido e falei, para o carro que o homem está ferido. Mas logo pensei que estivesse bêbado, mania minha de dramatizar. Aí vi o sangue.
        Começou a chover, achei que as meninas tinham se protegido debaixo de alguma marquise. Não me preocupei por elas estarem demorando.
        O homem estava caído ao lado da carrocinha de cachorro-quente, na calçada da praia. Saltamos do carro correndo. Pensei que tinha se machucado carregando engradados de refrigerantes, tinha se cortado nos cacos. Tentei inventar uma história para justificar de forma incolor o homem caído no sangue. Mas o homem tinha a sua história.
        Reclamei com as duas quando as vi chegar. Vinham suadas, de cabelo molhado. Cadê o leite? Perguntei.
        -- Foi assalto. Levaram todo o dinheiro. Estavam de carro.
        O homem pálido, a cabeça encostada num embrulho, quase não se mexia. Cadê a ambulância? Já vem. O sangue na calçada ia virando mingau, os sapatos deixaram uma marca clara revelando o cimento.
        -- Mãe, você não sabe o que aconteceu!
        -- Deram tiro nele de pura malvadeza. Não queriam pagar o cachorro-quente e ainda levaram o dinheiro.
        O homem gemendo. Me leva, gente, me leva que eu estou morrendo. Tá morrendo nada, foi na perna, amigo, perna não mata ninguém. É, mas é na perna que tem o femural, eu fosse a senhora levava ele, a ambulância não vem mesmo, o homem acaba morrendo.
        Acaba morrendo no meu carro. Aí, o que é que eu faço? E vai manchar tudo de sangue. Não, não é por causa do sangue, mas é porque a gente não deve mexer em gente ferida. Não é não, é por causa do medo mesmo, estou com medo de me envolver com o homem, com o sangue do homem, com a morte e a vida do homem. Oh, meu Deus, por que é que eu fui passar por esta esquina e dar de cara com a minha mesquinhez?
        -- Mãe, foi um bando de meninos [...]. Eles rodearam a gente e atiraram areia e pedras na gente, puxaram o cabelo da Rita, aí disseram que minha mãe era piranha e eu disse que não era, que minha mãe é jornalista, e eles não deixavam a gente ir embora nem andar, e disseram que iam arrancar minha carteira e tomar meu dinheiro e ainda me davam uma surra.  
        -- Eu vi da janela quando deram o tiro nele.
        Será que o homem morre mesmo? e se morrer e eu não tiver levado ele, como é que vou viver depois? E seu levar e morrer no caminho, como é que eu vou viver depois? Mas eu juro que a ambulância vem, o homem disse que vinha. Eu preciso que a ambulância venha.
        -- Aí, mãe, chegaram dois moços e vieram salvar a gente. Espantaram os meninos, deram a maior bronca, e trouxeram a gente até aqui embaixo.
        Lá vem a ambulância. Pronto. É pela boca da calça que se levanta a perna de um ferido. Eles sabem mexer sem machucar. O homem não está morrendo, não vai morrer, não tem femural nenhuma. Foi um tiro na perna, e eu estou salva.
        -- Tive tanto medo, mãe.

                     Marina Colasanti. Na esquina e na praça. In: _______ A casa das palavras. São Paulo: Ática. [s.d.] v. 32.
Entendendo a crônica:

01 – O que você achou do texto e das situações apresentadas nele?
      Resposta pessoal do aluno.

02 – O que a leitura desse texto despertou em você? Comente com os colegas e verifiquem se eles também tiveram a mesma sensação ao ler o texto.
      Resposta pessoal do aluno.

03 – Por que o primeiro parágrafo, a narradora relata os fatos na ordem não linear? Que efeito de sentido isso causa na compreensão?
      Isso ocorreu porque ela foi relatando os fatos com base no que ia recordando, o que torna a narrativa não linear. O efeito é a ideia de agitação da vida cotidiana.

04 – Embora a história seja contada de forma desordenada, é possível perceber que duas situações diferentes de violência foram relatadas.
a)   Que situações são essas?
O homem que levou um tiro na perna e as meninas que foram assaltadas.

b)   Identifique em cada parágrafo do texto cada uma das duas histórias apresentadas.
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: A resposta está indicada no texto.

05 – Releia o seguinte trecho: “Acaba morrendo no meu carro. Aí, o que é que eu faço? E vai manchar tudo de sangue. Não, não é por causa do sangue, mas é porque a gente não deve mexer em gente ferida. Não é não, é por causa do medo mesmo, estou com medo de me envolver com o homem, com o sangue do homem, com a morte e a vida do homem. Oh, meu Deus, por que é que eu fui passar por esta esquina e dar de cara com a minha mesquinhez?”

a)   Por que o narrador se considera mesquinha? Explique.
Porque ela reconhece que estava mais preocupada com a sua própria situação do que com o problema vivenciado pela pessoa que estava precisando de ajuda.

b)   A maneira como a narradora desse trecho trata o problema revela que a violência é vista de que forma?
A atitude dela revela que a violência é vista de maneira banal.


2 comentários:

  1. 4. Releia o seguinte trecho: " Tentei inventar uma história para justificar de forma INCOLOR o homem caído no sangue." O que a oposição entre INCOLOR e CAÍDO NO SANGUE sugere? *

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