Poema: TABACARIA
Fernando Pessoa
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
[...]
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a
mesma coisa que não pode haver tantos!
[...]
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão
chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a
confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates
com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o
papel de prata, que é de folhas de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
[...]
Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem
não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha
tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
[...]
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos
também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a
tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa
como gente
Continuará fazendo coisas
como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo
tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem
outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o
contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os
pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a
metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria
(metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o
universo
Reconstruiu-se-me sem ideal
nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
Poesias de Álvaro de
Campos. Fernando Pessoa. Lisboa:
Ática, 1944 (imp.
1993). - 252. Obra poética, cit. p. 362-6.
Entendendo o poema:
01 – O eu lírico do poema
faz considerações a respeito de si mesmo, de sua identidade e de sua relação
com o mundo.
a)
Como o eu lírico se sente diante da realidade
em que vive?
Sente-se desagregado, não compartilha os valores da realidade.
b)
Tendo como referência a questão da identidade
individual e social de cada ser humano, explique a crítica e a autocrítica
existente nestes versos: “Quando quis
tirar a máscara, / Estava pegada à cara”.
O autor refere-se às máscaras que cada um de nós usa socialmente. No
caso do eu lírico, quando quis romper com essas convenções e ser ele mesmo, já
havia perdido sua própria identidade.
02 – De acordo com o texto,
o que significa as palavras:
·
Algibeira: bolso.
·
Dominó: túnica com capuz e mangas para disfarce de mascarados no
carnaval.
03 – No texto, são feitas
três referências à metafísica. Metafísica (além da física), no sentido
habitual, é todo conhecimento ou especulação filosófica relacionados com o ser
ou com sua transcendência. No poema, é com certo desprezo que o eu lírico trata
a metafísica, como no verso “Olha que não há mais metafísica no mundo senão
chocolates”.
a)
Apesar disso, o eu lírico pratica a
metafísica no poema? Justifique.
Sim, pois suas reflexões sobre o ser – a identidade, o sentido da
vida, o futuro do mundo, et. – são temas metafísicos.
b)
Qual a vantagem, segundo a visão expressa no
texto, em comer bombons, como faz a menina, ou ser como “o Esteves sem
metafísica”?
Essas pessoas são o que são e, por não terem despertado para certos
problemas da existência, não ficam filosofando, vivem de forma natural e
simples.
c)
Com base na opinião do eu lírico sobre a
metafísica, explique os sentidos dos versos: “Se eu casasse com a filha da
minha lavadeira / Talvez fosse feliz”.
Provavelmente, a filha da lavadeira é uma pessoa simples, como o
Esteves. Se o eu lírico se casasse com ela, talvez aprendesse a ser simples
também e a não complicar as coisas. Esse pensamento é apenas uma especulação,
pois a consciência e irreversível.
04 – Observe que, na 5ª
estrofe, o eu lírico faz uma verdadeira “viagem” mental, especulando sobre seu
próprio futuro e sobre o futuro do mundo. Suas reflexões são interrompidas por
um fato concreto; um homem (Esteves) entra na tabacaria, fazendo com que a
“realidade plausível” caia sobre o eu lírico. Este, agora “acordado”, diz: “Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
/ E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário”.
a)
Com base nesses versos, levante hipóteses: É
provável que eu lírico pretendesse tratar de temas metafísico ou de temas
reais? Por quê?
De temas reais, pois se ergue “enérgico” e “humano”, o que pressupõe
uma interação com o mundo concreto, real.
b)
Ele conseguiu seu objetivo? Justifique.
Não, pois, conforme afirma, tenciona escrever “versos em que digo o
contrário”, o que nos leva a crer que acabou escrevendo versos metafísicos.
c)
Ao dizer, então, que “a metafísica é uma
consequência de estar mal disposto”, o eu lírico está blefando ou não? Por quê?
Está blefando, pois obviamente, para o eu lírico, ela não é apenas
resultado de uma indisposição física, e, sim, parte integrante de um ser que
está em crise com o mundo e consigo mesmo.
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