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quinta-feira, 6 de março de 2025

CONTO: INSÔNIA - GRACILIANO RAMOS - COM GABARITO

 Conto: Insônia

            Graciliano Ramos

        A mulher desapertava a roupa, despia-se cantando, e eu me conservava distante, encabulado, tentando desamarrar o cordão do sapato, que tinha dado um nó. Não podia descalçar-me e olhava estupidamente um despertador que trabalhava muito depressa. Os ponteiros avançavam e o laço do sapato não queria desatar-se.

        O professor explicava a lição comprida numa voz dura de matraca, falava como se mastigasse pedras.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgzmnlW7CN93KWUvY-WvoX9MA-BVTN35vT6k67HZrzIGuJTbwTdf3cfa2Tk_zD0Hu7zLczVdEQpKW635hlamDwxak4OWBtavoLok7HiolBll5fzPtni0zld68nXCSF3fx61i4I4Rs4dyhfnzjn81q2vprTOVLviKA4_ux16Nyh8GIxq_eU8tHWNVWYTqRg/s320/PROFE.jpg


        O político influente entregava-me a carta de recomendação. Eu, gaguejava um agradecimento difícil, atrapalhava-me por causa da datilógrafa bonita, descia a escada perseguido pelos óculos de um secretário e pelo tique-taque da máquina de escrever.

        Tudo se confunde. A rapariga que se despia, o professor, o político, misturam-se. A criança doente, os enfermeiros, os médicos, o homem dos esparadrapos, não se distinguem das árvores, dos telhados, do céu, das igrejas.

        Vou diluir-me, deixar a coberta, subir na poeira luminosa das réstias, perder-me nos gemidos, nos gritos, nas vozes longínquas, nas pancadas medonhas do relógio velho.

Graciliano Ramos. Insônia. São Paulo: Record, 1976.

Fonte: Português – Novas Palavras – Ensino Médio – Emília Amaral; Mauro Ferreira; Ricardo Leite; Severino Antônio – Vol. Único – FTD – São Paulo – 2ª edição. 2003. p. 546.

Entendendo o conto:

01 – Qual é o tema central do conto "Insônia"?

      O conto explora a angústia e a confusão mental de um indivíduo que sofre de insônia, misturando realidade e delírio.

02 – Quais elementos da narrativa contribuem para a atmosfera de confusão e angústia?

      A mistura de cenas desconexas, a sensação de tempo acelerado (o despertador), a dificuldade em realizar ações simples (desamarrar o sapato) e a fusão de personagens e objetos contribuem para essa atmosfera.

03 – Como o protagonista se sente em relação às pessoas ao seu redor?

      O protagonista se sente distante e encabulado em relação à mulher, e intimidado e atrapalhado nas interações com o professor e o político.

04 – Qual é a relação do protagonista com o tempo no conto?

      O tempo parece acelerado e opressor para o protagonista, simbolizado pelo despertador que "trabalha muito depressa".

05 – O que a mistura de personagens e cenários representa no conto?

      A mistura de personagens e cenários representa a desintegração da realidade na mente do protagonista, um sintoma da insônia e da angústia que ele sente.

06 – Qual é o significado da frase "Vou diluir-me, deixar a coberta, subir na poeira luminosa das réstias, perder-me nos gemidos, nos gritos, nas vozes longínquas, nas pancadas medonhas do relógio velho"?

      Essa frase representa o desejo do protagonista de se libertar da angústia e da confusão, fundindo-se com o ambiente e perdendo a própria identidade.

07 – Como a linguagem de Graciliano Ramos contribui para a construção do conto?

      A linguagem concisa e precisa de Graciliano Ramos, com frases curtas e diretas, intensifica a sensação de angústia e confusão, transmitindo a experiência da insônia de forma vívida e impactante.

 

 

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

ROMANCE: SÃO BERNARDO - (FRAGMENTO) - GRACILIANO RAMOS - COM GABARITO

 Romance: São Bernardo – Fragmento

                 Graciliano Ramos  

        [...]            

        “Sou um homem arrasado. Doença! Não. Gozo de perfeita saúde. Quando o Costa Brito, por causa de duzentos mil réis que me queria abafar, vomitou os dois artigos, chamou-me doente, aludindo a crimes que me imputam. O Brito da Gazeta era uma besta. Até hoje, graças a Deus, nenhum médico me entrou em casa. Não tenho doença nenhuma.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhVJVV7zme98JHAPizk1SQpMB4zITRKinlZT2pH2MXYv3QbVl1HRsO-Pm6sqzsveWlyRW3mHI1MRzqyXgvjRZaCq_xt3_e7WGZvBGGEhF7EpZ9fbu9Avb4MF4dTnRicCM1FUwKWVYo0knrzuECdCJAlegYXVkQxO-8zAjtNFzRW4-b3Zei8f1XAFwoXfQM/s320/Sao-bernardo-graciliano-ramos-1-edico.jpg


        O que estou é velho. Cinquenta anos pelo São Pedro. Cinquenta anos perdidos, cinquenta anos gastos sem objetivo, a maltratar-me e a maltratar os outros. O resultado é que endureci, calejei, e não é um arranhão que penetra esta casaca espessa e vê ferir cá dentro a sensibilidade embotada.

        Cinquenta anos! Quantas horas inúteis! Consumir-se uma pessoa a vida inteira sem saber para quê! Comer e dormir como um porco! Levantar-se cedo todas as manhãs e sair correndo, procurando comida! E depois guardar para os filhos, para os netos, para muitas gerações. Que estupidez! Que porcaria! Não é bom vir o diabo e levar tudo? 

        [...]

        As janelas estão fechadas. Meia-noite. Nenhum rumor na casa deserta.

        Levanto-me, procuro uma vela, que a luz vai apagar-se. Não tenho sono. Deitar-me rolar no colchão até a madrugada, é uma tortura. Prefiro ficar sentado, concluindo isto. Amanhã não terei com que me entreter.

        Ponho a vela no castiçal, risco um fósforo e acendo-o. sinto um arrepio. A lembrança de Madalena persegue-me. Diligencio afastá-la e caminho em redor da mesa. Aperto as mãos de tal forma que me firo com as unhas, e quando caio em mim estou mordendo os beiços a ponto de tirar sangue.    

        De longe em longe sento-me fatigado e escrevo uma linha. Digo em voz baixa:

        – Estraguei a minha vida, estraguei-a estupidamente.

        A agitação diminui.

        – Estraguei a minha vida estupidamente.

        Penso em Madalena com insistência. Se fosse possível recomeçarmos... Para que enganar-me? Se fosse possível recomeçarmos aconteceria exatamente o que aconteceu. Não consigo modificar-me, é o que mais me aflige.

        A molecoreba de Mestre Caetano arrasta-se por aí, lambuzada, faminta. A Rosa, com a barriga quebrada de tanto parir, trabalha em casa, trabalha no campo e trabalha na cama. O marido é cada vez mais molambo. E os moradores que me restam são uns cambembes como ele.         

        Para ser franco, declaro que esses infelizes não me inspiram simpatia. Lastimo a situação em que se acham, reconheço ter contribuído para isso, mas não vou além. Estamos tão separados! A princípio estávamos juntos, mas esta desgraçada profissão nos distanciou.

        Madalena entrou aqui cheia de bons sentimentos e bons propósitos. Os sentimentos e os propósitos esbarraram com a minha brutalidade e o meu egoísmo.     

        Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins.      

        E a desconfiança terrível, que me aponta inimigos em toda a parte!

        A desconfiança é também consequência da profissão.

        Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes.

        Se Madalena me via assim, com certeza me achava extraordinariamente feio.

        Fecho os olhos, agito a cabeça para repelir a visão que me exibe essas deformidades monstruosas.

        A vela está quase a extinguir-se.

        Julgo que delirei e sonhei com atoleiros, rios cheios e uma figura de lobisomem.

        Lá fora há uma treva dos diabos, um grande silêncio. Entretanto o luar entra por uma janela fechada e o nordeste furioso espalha folhas secas no chão.

        É horrível! Se aparecesse alguém... Estão todos dormindo.

        Se ao menos a criança chorasse... Nem sequer tenho amizade a meu filho. Que miséria!

        Casimiro Lopes está dormindo, Marciano está dormindo. Patifes!

        E eu vou ficar aqui, às escuras, até não sei que hora, até que, morto de fadiga, encoste a cabeça à mesa e descanse uns minutos.”

        [...]

13. ed. Martins Fontes: São Paulo, 1970. p. 241 e 246-8.

Fonte: Livro – Português: Linguagens, Vol. Único. William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães. Ensino Médio, 1ª ed. 4ª reimpressão – São Paulo: ed. Atual, 2003. p. 410-411.

Entendendo o romance:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

      -- Imputar: atribuir.

      -- Diligenciar: esforçar-se, empenhar-se.

      -- Molecoreba: molecada.

      -- Cambembe: desajeitado, desastrado, sem importância.

      -- Nordeste: vento.

02 – Quem é o narrador e protagonista do romance?

      O narrador e protagonista é Paulo Honório, um homem de negócios ambicioso e de origem humilde que enriquece à custa de muito trabalho e de métodos nem sempre éticos.

03 – Qual é o principal tema do romance?

      O principal tema do romance é a trajetória de Paulo Honório, desde a sua ascensão social e econômica até a sua decadência moral e pessoal. A obra também aborda temas como a ambição, o poder, a solidão, o arrependimento e a crítica à sociedade agrária e escravista do início do século XX.

04 – Qual é o papel de Madalena na história?

      Madalena é a professora que se casa com Paulo Honório e que representa a consciência crítica do romance. Ela é uma mulher sensível e idealista que se contrapõe à brutalidade e ao egoísmo do marido.

05 – O que representa a fazenda São Bernardo para Paulo Honório?

      A fazenda São Bernardo representa o símbolo da ascensão social e do poder de Paulo Honório. Ele a adquire com muito esforço e a transforma em um próspero negócio, mas também em um lugar de solidão e de conflitos.

06 – Qual é a relação de Paulo Honório com os outros personagens do romance?

      Paulo Honório mantém relações complexas e ambivalentes com os outros personagens. Ele se mostra um homem frio e calculista, capaz de usar e manipular as pessoas para atingir seus objetivos. Ao mesmo tempo, ele demonstra ter momentos de arrependimento e de fragilidade.

07 – Qual é o papel da linguagem no romance?

      A linguagem de Graciliano Ramos é marcada pela concisão, pela objetividade e pela expressividade. O autor utiliza uma linguagem crua e realista para retratar a vida e os costumes da sociedade sertaneja.

08 – Quais são os principais conflitos enfrentados por Paulo Honório?

      Paulo Honório enfrenta diversos conflitos ao longo do romance. O principal deles é o conflito entre a sua ambição e a sua consciência. Ele também enfrenta conflitos com Madalena, com os outros personagens e com a própria fazenda São Bernardo.

09 – Qual é o desfecho do romance?

      O romance termina com a morte de Paulo Honório, que se isola cada vez mais em sua fazenda e se torna um homem amargurado e solitário. O seu fim trágico é uma reflexão sobre os limites da ambição e do poder.

10 – Qual é a importância de "São Bernardo" na obra de Graciliano Ramos?

      "São Bernardo" é considerado um dos romances mais importantes de Graciliano Ramos e da literatura brasileira. A obra marca uma nova fase na produção do autor, com uma narrativa mais intimista e introspectiva.

11 – Qual é a mensagem principal do romance?

      A mensagem principal do romance é a de que a ambição e o poder podem levar à destruição do ser humano. A história de Paulo Honório é um alerta sobre os perigos do egoísmo, da brutalidade e da falta de consciência.

 

 

terça-feira, 31 de dezembro de 2024

CRÔNICA: ATRIBULAÇÕES DE PAPAI NOEL - (FRAGMENTO) - GRACILIANO RAMOS - COM GABARITO

 Crônica: Atribulações de Papai Noel – Fragmento

             Graciliano Ramos

        [...]

        Papai Noel pisou na calçada, andou em muitos bairros, entrou em muitas moradas, distribuindo convenientemente os objetos que levava. Às crianças ricas ofereceu bicicletas, álbuns de figurinhas, cavalos de rodas, bonecas falantes, automóveis e estradas de ferro em miniatura; às pobres deu espingardas de folha, apitos, balõezinhos, cornetas, bolas de borracha e outras miudezas da casa de Cr$ 4,40. E todas as crianças ficaram satisfeitas: porque as primeiras não sabiam brincar com espingardas e cornetas, as segundas teriam receio de sujar os cavalos e os livros de figuras. A distribuição era razoável: não prejudicava hábitos adquiridos, não atentava contra a natural diferença que há entre os meninos, não estabelecia confuso no espírito delas.

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiZkPxK5jaqo_EImV-kmAwefQdAAxGFak5J8SeQ1819NzYX7vpiKcpv3NWi_mPg27VQzE9WlTT-QcdYjkTt89MWEDBVNuHMPD9gu70rAgz-RtL47A7nAyKC8ZRl6ogy1y_idJxBMuRivs3q2v-gk91APr_lFDK1d4uYOLDG_b18x0Slq8EfTrq4IYrdh98/s1600/PAPAI.jpg 


        -- Porque enfim, refletia Papai Noel, apitos e gaitas valem uma fortuna para o garoto que não possui nada; automóveis e estradas de ferro pouco interesse despertam no pequeno que tem um quarto cheio de trapalhadas semelhantes. Assim, o que devemos fazer é dar coisas preciosas aos indivíduos que não precisam delas e deixar trastes sem valor aos necessitados. Acho que há muita sabedoria nisso.

        Infelizmente o saco esvaziou antes que o ótimo velho percorresse toda a cidade. Por isso não foram visitadas as casas cobertas de lata e remendadas com tábuas. Na ladeira de um morro vagabundo os últimos presentes desapareceram. [...].

        Ergueu-se repentinamente e descobriu ali perto vários moleques do morro que iam encher as vasilhas no chafariz.

        -- Que desordem é essa? – bradou com indignação, agarrando o cajado. Isso lá são modos? Debanda, canalha.

        Os rapazes continuavam a rir. E um deles adiantou-se:

        -- Parece um tipo de carnaval. Donde vem o senhor?

        -- Donde venho? Exclamou o ancião quase engasgado. Ora aí está a consequência do livre exame. Então vocês não me conhecem?

        -- Diga logo quem é, ganiu um pirralho.

        -- Era o que faltava, eu descer a dar explicações a essa poeira. Vejo que aqui não há polícia. Vão-se embora, patifes, vão encher os potes no chafariz.

        Ameaçou-os com o bordão, mas os bichinhos importunos conservaram-se por ali rondando, sem se afastar muito. Um mais afoito, aproximou-se e perguntou baixinho:

        -- Mas por que é que o senhor não diz o seu nome?

        -- Está bem, murmurou o funcionário. Com bons modos tudo se arranja. Você se comporta direito, meu filho. Continue assim. A maioria das virtudes é o respeito às pessoas e às coisas antigas, percebe? Eu sou uma criatura muito antiga.

        -- Diga o nome, gritou um rapazinho.

        -- Santo Deus! Resmungou o velho, enjoado. Será possível que ainda não saibam? Que falta de inteligência! Então preciso explicar a vocês que sou Papai Noel?

        As risadas dos moleques rebentaram outra vez no morro.

        -- Que pilhéria!

        -- Pilhéria não, safadinho. Tu mereces cadeia, para não rires das antiguidades respeitáveis. Estão aí os frutos da democracia.

        O cajado ergueu-se, mas, como a algazarra não diminuiu, o digno homem voltou às boas.

        -- Vamos deixar de barulho. Assim não se compreende nada. Com franqueza, nunca ouviram falar de mim?

        -- Ouvimos, respondeu um sujeitinho quando a bulha serenou. Mas é tapeação, ninguém acredita nisso. [...]

        O Cruzeiro, 23 de dezembro de 1939.

RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 287-292.

Fonte: Maxi: Séries Finais. Caderno 1. Língua Portuguesa – 7º ano. 1.ed. São Paulo: Somos Sistemas de Ensino, 2021. Ensino Fundamental 2. p. 52-53.

Entendendo a crônica:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

Cr$ 4,40: valor simbólico, equivalente às lojinhas de um real.

Espingarda de folha: brinquedo de lata.

Ganiu: falou.

Pilhéria: piada.

02 – Qual a principal crítica social presente na crônica?

      A crônica de Graciliano Ramos critica a desigualdade social e a hipocrisia da sociedade, especialmente em relação ao Natal. O autor demonstra como a distribuição de presentes reforça as diferenças sociais, privilegiando as crianças ricas em detrimento das mais pobres.

03 – Como a figura do Papai Noel é retratada na crônica?

      Papai Noel é retratado de forma irônica e crítica. Ele aparece como um personagem que reforça as desigualdades sociais, distribuindo presentes de acordo com a classe social das crianças. Além disso, sua reação aos meninos pobres demonstra um certo autoritarismo e falta de empatia.

04 – Qual a importância da descrição dos presentes para a compreensão da crítica social?

      A descrição detalhada dos presentes distribuídos por Papai Noel revela a desigualdade social existente. Os presentes mais caros e sofisticados são destinados às crianças ricas, enquanto as crianças pobres recebem brinquedos simples e baratos. Essa diferença evidencia a divisão social e a falta de oportunidades para as crianças mais carentes.

05 – Qual a reação dos meninos pobres ao encontro com Papai Noel?

      Os meninos pobres reagem com desconfiança e ironia ao encontro com Papai Noel. Eles questionam a existência do personagem e demonstram um certo cinismo em relação à figura do bom velhinho. Essa reação revela a falta de esperança e a desilusão das crianças mais pobres.

06 – Qual o significado da frase "A distribuição era razoável: não prejudicava hábitos adquiridos, não atentava contra a natural diferença que há entre os meninos, não estabelecia confuso no espírito delas"?

      Essa frase ironiza a ideia de que a desigualdade social é natural e inevitável. O autor sugere que a distribuição desigual de presentes reforça as diferenças sociais existentes, perpetuando um ciclo de desigualdade.

07 – Qual a relação entre a crônica e o contexto histórico da época em que foi escrita?

      A crônica foi escrita em 1939, um período marcado por grandes desigualdades sociais no Brasil. A crítica de Graciliano Ramos à desigualdade social e à figura do Papai Noel reflete as preocupações da época e a busca por uma sociedade mais justa e igualitária.

08 – Qual a mensagem principal da crônica?

      A mensagem principal da crônica é uma crítica à desigualdade social e à hipocrisia da sociedade. Graciliano Ramos nos convida a refletir sobre o significado do Natal e a importância de construir um mundo mais justo e igualitário para todas as crianças.

 

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

CONTO: A CANOA FURADA - GRACILIANO RAMOS - COM GABARITO

 CONTO: A CANOA FURADA

                 Graciliano Ramos

Mestre Gaudêncio curandeiro, homem sabido, explicou uma noite aos amigos que a terra se move, é redonda e fica longe do sol umas cem léguas. — Já me disseram isso, murmurou Cesária.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhr4mqqHx1EwpNxgjQLyXZEaYTp_bokDnzrhIHW-Gs1OODPpCe92r4YmAJuFJQUo_pMiTX9namtG3fhRFdHvIMY75aqvoVzMtEVMlGXLTAX_VQ7Zu1CxRpeCxvMHZpYHvrpBXyX9mrfCAeg7N9iuvEdNgNjU47KlmVBI8wWOBVH6VgcGYBAPIqS6HReqqs/s1600/canoa_furada.jpg


Das Dores arregalou os olhos, seu Libório espichou o beiço e deu um assobio de admiração. O cego preto Firmino achou a distância exagerada e sorriu, incrédulo:

– Conversa, mestre Gaudêncio. Quem mediu? Das telhas para cima ninguém vai. Isso é emboança de livro, papel aguenta muita lorota. Cem léguas? Não embarco em canoa furada não, mestre Gaudêncio.

– Ora, seu Firmino! exclamou Alexandre. Para que diz isso? Embarca. Todos nós embarcamos, é da natureza do homem embarcar em canoa furada. Tudo neste mundo é canoa furada, seu Firmino. E a gente embarca. Nascemos para embarcar. Um dia arreamos, entregamos o couro às varas e, como temos religião, vamos para o céu, que é talvez a última canoa, Deus me perdoe. Embarca, seu Firmino.

Levantou-se, foi acender o cigarro ao candeeiro de folha, voltou à rede.

– Embarca. E por falar em canoa furada, vou contar aos senhores o que me aconteceu numa, há vinte anos. Canoa verdadeira, seu Firmino, de pau, não dessas que vossemecê puxou para contrariar mestre Gaudêncio. Ora muito bem. Numa das minhas viagens rolei uns meses por Macururé, levando boiadas para a Bahia. Já andaram por essas bandas? Tenho aquilo de cor e salteado. Ganhei uns cobres, mandei fazer roupa no alfaiate, comprei um corte de pano fino e um frasco de cheiro para Cesária. Demorei-me na capital uma semana. Aí fiz tenção de vender a fazenda e os cacarecos, mudar-me, dar boa vida à pobre mulher, que trabalhava no pesado, ir com ela aos teatros e rodar nos bondes. Refletindo, afastei do pensamento essas bobagens. Matuto, quando sai do mato, perde o jeito. Quem é do chão não se trepa. Ninguém me conhecia na cidade cheia como um ovo. A propósito, sabem que um ovo custa lá cinco tostões? Calculem. Não me aprumo nessas ruas grandes, onde gente da nossa marca dá topadas no calçamento liso e os homens passam uns pelos outros calados, como se não se enxergassem. Nunca vi tanta falta de educação. Vossemecê mora numa casa dois ou três anos e os vizinhos nem sabem o seu nome. Nos meus pastos a coisa era diferente. Lá eu tinha prestígio: votava com o governo, hospedava o intendente, não pagava imposto e tirava presos da cadeia, no júri. Vivia de grande. E quando aparecia na feira, o cavalo em pisada baixa, riscando nas portas, os arreios de prata alumiando, o comandante do destacamento levava a mão ao boné e me perguntava pela família. Tenho tocado nisso algumas vezes, e os amigos vão pensar que estou aqui arrotando importância. É engano, detesto pabulagem. Na capital só viam em mim um sujeito que vendia gado. Mas se quiserem saber a minha fama no sertão, deem um salto à ribeira do Navio e falem no major Alexandre. Cinquenta léguas em redor, de vante a ré, todo o bichinho dará notícia das minhas estrepolias. A história da onça, a do bode, o estribo de prata, este olho torto, que ficou muitas horas espetado num espinho, roído pelas formigas, circulam como dinheiro de cobre, tudo exagerado. É o que me aborrece, não gosto de exageros. Quero que digam só o que eu fiz. Esse negócio da canoa entrou num folheto e hoje se canta na viola, mas com tantos acréscimos que, francamente, não me responsabilizo pelo que escreveram. Exatamente o que sucedeu com o marquesão. Lembram-se? Dr. Silva pegou o marquesão de jaqueira e fez dele o que entendeu, encheu a casa de cortiços. Não era o meu marquesão, que só deu quatro pés de jaca. O caso da canoa também foi muito aumentado. É bom prevenir. Se vossemecês ouvirem falar nele em cantoria, fiquem sabendo que as nove-horas são astúcias do poeta. O acontecido foi coisa muito curta, que eu podia embrulhar num instante. E se converso demais, é porque a gente precisa matar tempo, não sapecar tudo logo de uma vez. Se não fosse assim, a história perdia a graça. Por isso espichei diante dos amigos a cidade grande, os teatros, os bondes, os ovos e a roupa nova, o corte de pano fino e o frasco de cheiro que ofereci a Cesária. Ela vestiu o pano fino e botou o frasco de cheiro no lenço, mas isto não adianta. Sem cheiro e sem pano, a história da canoa seria a mesma, um pouco mais encolhida. Bem, como disse aos amigos, demorei na Bahia, com desejo de arranjar-me por lá. Quando vi que a intenção era besteira, decidi voltar para casa, amansar brabo, arrematar caixas de segredo em leilão e animar o cordão azul e o cordão vermelho, no pastoril, que foi para isto que nasci. Sim senhores. Selei o cavalo e atirei-me para o norte. Caminhei, caminhei, cheguei ao S. Francisco. Seu Firmino andou no S. Francisco? Não andou. É o maior rio do mundo. Não se sabe onde começa, nem onde acaba, mas, na opinião dos entendidos, tem umas cem léguas de comprimento. Quer dizer que, se em vez de correr por cima da terra, ele corresse para os ares, apagava o sol, não é verdade, mestre Gaudêncio? Nunca vi tanta água junta, meus amigos. É um mar: engole o Ipanema em tempo de cheia e pede mais. Está sempre com sede. Não há rio com semelhante largura. Vossemecês pisam na beira dele, olham para a outra banda, avistam um boi e pensam que é um cabrito. Por aí podem imaginar aquele despotismo. Pois eu ia morrendo afogado no S. Francisco, vinte anos atrás. Afogado não digo que morresse, porque enfim dou umas braçadas, mas, se não me afogasse, era certo estrepar-me no dente da piranha, o bicho mais infeliz que Deus fabricou. Já viram piranha? Se não viram, perdem pouco. É uma criatura que não tem serventia e morde como cachorro doido. Onde há sangue aparece um magote delas. Entra um vivente na água e em cinco minutos deixa lá o esqueleto. Percebem? Topei o S. Francisco empanzinado, soprando. Tinha lambido as plantações de arroz, comido as ribanceiras, e a escuma subia, ia cobrindo as catingueiras e as baraúnas. Viajei dois dias para as cabeceiras, procurando passagem. E, ali pelas alturas de Propriá, vi uma canoa cheia de gente que botava para as Alagoas. — “Seu moço, perguntei ao remador, essa gangorra é segura?” E o homem respondeu, de cara enferrujada:

– “Segura ela é. Mas garantir que chegue ao outro lado não garanto. Se tem coragem de se arriscar, entre para dentro, que ainda cabe um.” Fiquei embuchado, com uma resposta atravessada na goela, pois acho desaforo alguém pôr em dúvida a minha disposição. Que, para usar de franqueza, o que faço direito é correr boi no campo. Mergulhar e brigar com peixe não é ocupação de gente. Desarreei o animal, amarrei o cabresto na popa da canoa, arrumei os picuás e embarquei. O cavalo nadou, três mulheres velhas puxaram os rosários e navegamos em paz até o meio do rio. Aí, quando mal nos precatávamos, o diabo do cocho se furou e em poucos minutos os meus troços estavam boiando. Foi um deus nos acuda: os homens perderam a fala, as mulheres soltaram os rosários e botaram as mãos na cabeça, numa latomia, numa choradeira dos pecados.

— “Então, seu mestre, perguntei ao canoeiro, o senhor não disse que esta geringonça era segura?” E o desgraçado respondeu: “Segura ela era. Mas, como o senhor está vendo, agora não é.”

— “Que é que vamos fazer?” gritei desadorado.

— “Sei lá, disse o homem. Quem tiver muque puxe por ele e veja se alcança terra, o que acho difícil.” A minha vontade foi dar uns tabefes no sem-vergonha, mas não havia tempo, os amigos veem que não havia tempo.

— “Está bem, tornei. Nós ajustaremos contas depois. Se escaparmos, será na banda alagoana. Se formos para o fundo, no céu ou no inferno a gente se encontra e você me contará isso direitinho, seu filho de uma égua.” Acocorei-me e pus-me a esgotar aquela miséria com o chapéu. Os viajantes machos fizeram o mesmo e as mulheres dos rosários, chamadas à ordem, agarraram cuias e caíram no trabalho. Tempo perdido. Gastávamos forças e o traste cada vez mais se enchia. Desanimei, ia entregar os pontos quando me veio de repente uma ideia, a ideia mais feliz que Deus me deu. Lembrei-me de que tinha no bolso da carona um formão e um martelo, comprados para o serviço da fazenda. Muito bem. Veio-me a ideia, dei um salto, fui à carona, peguei o formão e o martelo, fiz um rombo no casco da canoa. Os companheiros me olhavam espantados, julgando talvez que eu estivesse doido. Mas o meu juízo funcionava perfeitamente. Imaginam o que sucedeu? A embarcação se esvaziou em poucos minutos, continuou a viagem e chegou sem novidade a Porto-Real-do-Colégio. Natural. A água entrava por um buraco e saía por outro. Compreenderam? Uma coisa muito simples, mas se eu não tivesse pensado nisso, alguns pais de família e três devotas teriam acabado no bucho da piranha. Desembarcamos na terra alagoana. Aí chamei de parte o canoeiro, sem raiva, e dei-lhe meia dúzia de trompaços, que o prometido é devido. Ele se defendeu (era um tipo de sangue no olho) e propôs camaradagem:

— “Seu Alexandre, vamos deixar de besteira. O senhor é um homem.” Ficamos amigos, fomos para a bodega e passamos uma noite na prosa, bebendo cachaça.

Entendendo o texto

01. No trecho “Todos nós embarcamos, é da natureza do homem embarcar em canoa furada”, Alexandre sugere que:

a.   todo mundo já andou em canoa furada.

b.   todo mundo já viajou em canoa.

c.   todo mundo já ajudou as pessoas.

d.   todo mundo já foi enganado por alguém.

02. Ao tentar evitar que a canoa afundasse, Alexandre demonstrou ser:

a.   apático e egoísta.

b.   esperto e rápido.

c.   egoísta e vagaroso.

d.   vagaroso e apático.

03. No trecho “Foi um deus nos acuda: os homens perderam a fala, as mulheres soltaram os rosários e botaram as mãos na cabeça”, é possível inferir que as pessoas estavam:

a.   tranquilas.

b.   desesperadas.

c.   irritadas.

d.   felizes.

04.  No trecho “Já andaram por essas bandas? Tenho aquilo de cor e salteado. Ganhei uns cobres, mandei fazer roupa de alfaiate, comprei um corte de pano fino e um frasco de cheiro para Cesária”, um termo que é próprio da linguagem informal é:

a.   bandas.

b.   alfaiate.

c.   corte.

d.   frasco.

05. Uma das finalidades do causo lido é:

a.   narrar uma história de origem oral.

b.   relatar com veracidade os fatos.

c.   argumentar sobre os perigos das canoas.

d.   instruir sobre como usar as canoas.

06. Na história contada por Alexandre, o conflito, ou seja, o momento de tensão da narrativa, é marcado:

a.   pelo furo na canoa, que apavorou as pessoas.

b.   pelo conserto do furo na canoa, que tranquilizou as pessoas.

c.   pela chegada da canoa em terras alagoanas.

d.   pela partida da canoa de terras alagoanas.

07. O clímax da história contada por Alexandre, ou seja, o momento de maior tensão na narrativa, é quando o personagem:

a.   tampa o buraco da canoa.

b.   faz outro buraco da canoa.

c.   vira a canoa.

d.   resgata a canoa.

08. No desfecho da história contada por Alexandre, todos que estão na canoa:

a.   caem na água.

b.   têm medo de água.

c.   embarcam com medo.

d.   desembarcam com segurança.

09. No trecho “Desanimei, ia entregar os pontos quando me veio de repente uma ideia [...]”, a expressão destacada indica relação de sentido de:

a.   causa.

b.   condição.

c.   tempo.

d.   finalidade.

10. No trecho “Selei o cavalo e atirei-me para o norte” a expressão liga duas orações e estabelece entre elas relação de sentido de:

a.   adição.

b.   oposição.

c.   explicação.

d.   conclusão.

11.  No trecho “Fiquei embuchado, com uma resposta atravessada na goela, pois acho desaforo alguém pôr em dúvida a minha disposição”, a conjunção destacada tem o mesmo sentido de:

a.   mas.

b.   a fim de.

c.   para.

d.   porque.

12. No trecho “E, ali pelas alturas de Propriá vi uma canoa cheia de gente que botava para as Alagoas”, a expressão destacada indica circunstância de:

a.   tempo.

b.   modo.

c.   lugar.

d.   instrumento.

13. No trecho “Não se sabe onde começa, nem onde acaba, mas, na opinião dos entendidos, tem umas cem léguas de comprimento” a conjunção mas indica:

a.   adição.

b.   oposição.

c.   explicação.

d.   conclusão.