Mostrando postagens com marcador IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

CONTO-CARTA: À ESPERA DO AMOR - IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO - COM GABARITO

 Conto-carta: À espera do amor

                     Ignácio de Loyola Brandão 

Na porta do cinema

Cara Amália,

        O que você me pediu para contar foi simples. Aconteceu com Emílio, aquele que detestava o nome, mas o cartório se recusou a mudar. Tudo se passou assim: 

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhkZ-s28xamuTUdpvmCvl2-WJXCouHY0LJvKxFMRnitSQTZkAvjQNE3jN9Yjzfme9mx-92Q70dYkNdjhmFQ-pgc4umby2xfRIwQOffJz2yeNPtjjMKmm9C3AYjbPhEWaPhsrnl_JBzqzcAKQN6nOzM_TzBLKFETEiF2cgF7qLNj3_GczO3WnlIkRdFYAbQ/s320/PORTA%20CINEMA.jpg


        Aproximava-se da porteira do cinema.

        — Ela chegou?

        — Quem?

        — Minha namorada.

        — Como vou saber quem é?

        — Verdade, você não a conhece. Devem entrar aqui centenas de pessoas.

        —  Por dia? Milhares, principalmente num filme como esse! Não sei o que viram nele.

        — História de amor. Todo mundo gosta.

        — Amor! Como se alguém acreditasse no amor.

        — Eu acredito. Por isso estou aqui, à espera de minha namorada.

        — Há meses você vem todos os dias. Meses!

        Ficou por ali, com o rabo do olho na entrada do cinema.

        Terminou a primeira sessão, nada. A segunda, tudo igual. Antes da terceira – porque eram sessões corridas, normais, sempre que havia um filme de sucesso – houve uma troca de porteiros. Chegou o sujeito carrancudo que sempre desconfiava dele e, um dia, tinha chegado a chamar o segurança para expulsá-lo. O porteiro acenou:

        — Continua à espera?

        — Sempre!

        — Não entendo, juro que não entendo.

        — Porque nunca amou.

        — Quem disse?

        — Veja a sua cara! Amarrada, amargurada, tem o olhar triste e fundo. Cadê a alegria de quem ama?

        — Gosto muito.

        — Gostar não é amar.

        — Achei que era a mesma coisa.

        — Amar é tudo.

        — E gostar?

        — Gostar é gostar. Amar é amar. Gostar quer dizer trinta por cento do sentimento. Amar é cem por cento.

        — Você é estranho. Diz coisas complicadas.

        — Amar é simples.

        — Fico te olhando, você vem todos os dias, à espera dessa namorada que nunca aparece.

        — Vai aparecer.

        — Por que não liga para ela?

        — Não tenho o número!

        — Namora e não tem o número?

        — Não namoro ainda. Vou namorar.

        — O que?

        — Vou namorar. O dia em que ela chegar e entrar por essa porta, vou saber que é ela.

        — Como? Como é que se sabe? 

        — Sabendo. É olhar e sentir. O coração acelera, a gente começa a suar, o estômago sobe para a garganta, a respiração fica ofegante, as pernas ficam bambas, as unhas tremem.

        —  As unhas tremem?

        — É a melhor coisa. Tão bom viver assim. Você sente desaparecer.

        — Desaparecer?

        — Some. E quando percebe, você é outro. Está naquele que ama. Inteiro dentro, uma coisa só. Daquele momento em diante, dois viram um. Tornam-se uma só pessoa em tudo.

        — Sei, sei …

        Nesse momento, ele se afastou para deixar entrar uma jovem morena, de olhos miúdos e um riso que se esparramava pelo rosto e começou a suar.

        Os dois se olharam e ele percebeu que após meses e meses tinha acontecido. O coração acelerou.

        A espera tinha terminado. As unhas tremeram.

        Ela continuou olhando e também sentiu. O estômago subiu à garganta. E o porteiro ficou assombrado, quando em lugar de duas pessoas, viu entrar apenas uma no cinema.

        Onde estava a outra? A pessoa que entrou piscou maliciosamente para ele.

        “Entendeu?”, perguntou.

        O porteiro fez que sim… Era o amor.

Beijos do Luiz Ernesto

 © Ignácio de Loyola Brandão – Cartas, Iluminuras – 2005.  

Entendendo o conto-carta:

01 – Quem é o narrador do conto-carta?

      O narrador é Emílio, o protagonista da história.

02 – Por que Emílio estava esperando na porta do cinema?

      Ele estava à espera de sua namorada, acreditando que ela finalmente apareceria.

03 – Como Emílio descreve o sentimento de amar em comparação com gostar?

      Ele descreve que gostar é apenas trinta por cento do sentimento, enquanto amar é cem por cento, uma entrega total.

04 – Qual foi a reação do porteiro diante da situação de Emílio?

      O porteiro inicialmente estava incrédulo e confuso, mas no final, compreendeu a situação quando viu apenas uma pessoa entrar no cinema.

05 – O que Emílio esperava sentir quando sua namorada finalmente chegasse?

      Ele esperava sentir uma série de reações físicas e emocionais intensas, como coração acelerado, sudorese, estômago na garganta e tremores nas unhas.

06 – Como a narrativa revela o desfecho sobre o amor?

      O desfecho sugere que o amor verdadeiro é uma experiência transformadora, unindo duas pessoas em uma conexão tão profunda que elas se tornam uma só.

07 – Quais são as características físicas da jovem que Emílio finalmente reconhece como sua namorada?

      Ela é descrita como uma jovem morena, de olhos miúdos e com um sorriso que se espalha pelo rosto.

08 – O que o porteiro compreende no final do conto?

      Ele finalmente compreende que a pessoa que entrou no cinema sozinha representava a união de duas pessoas profundamente conectadas pelo amor.

09 – Qual é o sentimento predominante ao final do conto?

      O sentimento predominante é a realização e a revelação do poder transformador do amor.

10 – Como o conto explora a ideia de reconhecimento do amor verdadeiro?

      Ele explora a ideia de que o amor verdadeiro é reconhecido não apenas por aparências físicas, mas por uma conexão tão profunda que transcende a presença física, unindo duas pessoas em uma só.

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

CONTO(Frag.): O HOMEM QUE QUERIA ELIMINAR A MEMÓRIA - IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO - COM GABARITO

 Conto(Frag.): O homem que queria eliminar a memória

                              Ignácio de Loyola Brandão

Entrou no hospital, mandou chamar o melhor neurocirurgião. [...]

       Quero me operar. Quero que o senhor tire um pedaço do meu cérebro.

       Um pedaço do cérebro? Por que vou tirar um pedaço do seu cérebro?

       Porque eu quero.

       Sim, mas precisa explicar.

       Não basta eu querer?

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjDUFDzaV-nli_ggVS4Cbe01VPXWOTz3gz5cryneh4TQO2-H3tp_nGEvMu6miY9bGkE9BNuWFEl0xLZxKDiV4HyCJsYKlTuG5JtFtMlBP25EVsCcWst3_p8MPCpBsQY7GEmoCOq_Z3UtxO9Lp05fNgiV-Zyqs3qgDol0A6qCrEuXpTb9O-TxnRLFsqYB40/s320/CIRURGIAO.jpg


       Claro que não. [...] Há certas coisas que o senhor está impedido de fazer. Ou melhor: eu é que estou impedido de fazer no senhor. [...]

       Por que o senhor quer cortar um pedaço do cérebro?

       Quero eliminar a minha memória. [...] Não quero mais me lembrar de nada. Só isso. As coisas passaram, passaram. Fim! [...]

       Não dá para fazer isso [...]. A medicina não está tão adiantada assim. [...]

O médico pensou. [...] Pediu ao homem que voltasse outro dia. Despediram-se. [...] Chamou um amigo.

          Estou pensando em tirar um pedaço do meu cérebro. Eliminar a memória. O que você acha?

Muito boa ideia. Por que não pensamos nisto antes? Opero você e depois você me opera. Também quero.

BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Para gostar de ler. Volume 8. Contos. São Paulo: Ática, 1983. *Adaptado: Reforma Ortográfica. Fragmento.

Entendendo o texto

01.        De acordo com esse texto, o senhor desejava

A)     dar explicações ao médico.

B)     eliminar a memória.

C)     ter uma boa ideia.

D)     voltar ao hospital outro dia.

 02. Esse texto é engraçado porque

A)     o médico acabou gostando da ideia do senhor.

B)     o médico não sabia como operar o senhor.

C)     o senhor não sabia explicar o motivo da cirurgia.

D)     o senhor quis eliminar sua memória.

03.Nesse texto, a palavra “Fim!” (ℓ. 11) foi utilizada para reforçar a ideia de que o senhor estava

A)     ansioso.

B)     depressivo.

C)     irritado.

D)     pensativo.

 

 

 

 

quarta-feira, 30 de novembro de 2022

CONTO FANTÁSTICO: O HOMEM QUE SE ENDEREÇOU - IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO - COM GABARITO

 Conto Fantástico: O homem que se endereçou

                              Ignácio de Loyola Brandão

 Apanhou o envelope e na sua letra cuidadosa subscritou a si mesmo:

Narciso, rua Treze, nº 21.

Passou cola nas bordas do papel, mergulhou no envelope e fechou-se. Horas mais tarde a empregada colocou-o no correio. Um dia depois sentiu-se na mala do carteiro. Diante de uma casa, percebeu que o funcionário tinha parado indeciso, consultara o envelope e prosseguira. Voltou ao DCT, foi colocado numa prateleira. Dias depois, um novo carteiro procurou seu endereço. Não achou, devia ter saído algo errado. A carta voltou à prateleira, no meio de muitas outras, amareladas, empoeiradas. Sentiu, então, com terror, que a carta se extraviara. E Narciso nunca mais encontrou a si mesmo.

BRANDÃO, Ignácio de Loyola.

O homem com o furo na mão e outras histórias. São Paulo. Ática, 1998.

Fonte: Maxi: ensino fundamental 2:multidisciplinar:6 º ao 9º ano/obra coletiva: Thais Ginicolo Cabral. 1.ed. São Paulo: Maxiprint,2019.7º ano Caderno 4 p.108-110.

Entendendo o texto

01. A história se inicia em um ambiente doméstico que poderia ser real e narra uma sequência de fatos que não têm a probabilidade de se realizarem. Que acontecimento estranho transpassou a realidade nesse conto?

O personagem ter entrado em um envelope como se fosse uma carta e seguido todo o transcurso de uma correspondência.

02. Qual é o tipo de narrador?

Narrador-observador.

03. Considere o contexto e infira o significado da sigla DCT.

Departamento de Correios e Telégrafos.

04. Sobre a estrutura do conto, indique:

a)   a situação inicial.

Narciso decide escrever uma carta para si mesmo, passa cola nas bordas do papel, mergulha no envelope e fecha-se. Horas mais tarde, a empregada coloca-o no correio.

b)   o conflito.

O carteiro para indeciso diante de uma casa, não encontra o endereço, e prossegue seu caminho.

Narciso acaba voltando ao DCT.

c)   clímax.

Outro carteiro procura o endereço, não encontra; algo deve ter saído errado, a carta volta à prateleira, no meio de muitas outras.

d)   o desfecho.

Narciso nunca mais encontrou a si mesmo.

05. Sobre a intenção do autor ao escrever esse conto, assinale V (verdadeiro) ou F (falso)

( F  ) O autor deseja apenas produzir um conto fantástico.

( V ) Existe uma crítica por trás do homem que “nunca mais encontrou a si mesmo”.

( V ) O nome Narciso faz uma intertextualidade com o mito Narciso.

( F ) Narciso é um nome escolhido aleatoriamente.

06. Ainda sobre esse texto, faça o que se pede.

a)   Retire do texto a palavra proparoxítona que pode, também, ser paroxítona terminada em ditongo.

Funcionário.

b)   O que propicia a dupla possiblidade de classificação quanto à posição da sílaba tônica dessa palavra? Comprove sua resposta.

O que propicia a dupla possibilidade de classificação quanto à posição da sílaba tônica dessa palavra é a separação silábica: fun-cio-ná-ri-o (proparoxítona), fun-cio-ná-rio (paroxítona terminada em ditongo).

c)   Retire a outra palavra acentuada e justifique sua acentuação.

Saído: í tônico, segunda vogal do hiato, sozinho na sílaba.

quinta-feira, 7 de julho de 2022

CONTO: O VERDE - IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO - COM GABARITO

 CONTO:O VERDE

                Ignácio de Loyola Brandão


 Estranha é a cabeça das pessoas.

Uma vez, em São Paulo, morei numa rua que era dominada por uma árvore incrível. Na época de floração, ela enchia a calçada de cores. Para usar um lugar-comum, ficava sobre o passeio um verdadeiro tapete de flores; esquecíamos o cinza que nos envolvia e vinha do asfalto, do concreto, do cimento, os elementos característicos desta cidade. 

Percebi, certo dia, que a árvore começava a morrer. Secava lentamente, até que amanheceu inerte, em folha. "É um ciclo, ela renascerá", comentávamos no bar ou na padaria. Não voltou. Pedi ao Instituto Botânico que analisasse a árvore, e o técnico concluiu: fora envenenada. 

Surpresos, nós, os moradores da rua, que tínhamos a árvore como verdadeiro símbolo, começamos a nos lembrar de uma vizinha de meia-idade que todas as manhãs estava ao pé da árvore com um regador. Cheios de suspeitas, fomos até ela, indagamos, e ela respondeu com calma, os olhos brilhando, agressivos e irritados:

-- Matei mesmo aquela maldita árvore.

-- Por quê?

-- Porque na época da flor ela sujava minha calçada, eu vivia varrendo essas flores desgraçadas.

www.santos.sp.gov.br

Entendendo o texto

1)Por que, no começo do texto, o narrador afirma que "Estranha é a cabeça das pessoas.".

Porque o narrador já conhecia a história sobre a árvore.


2) Observe a frase: "Na época da floração, ela enchia a calçada de cores." (2º parágrafo).
a) Qual é a época da floração?

     A época de floração é a designação dada ao período do ano, ou à estação do ano, que é geralmente a primavera, em que desabrocham as flores de determinada espécie ou grupo de espécies de plantas, estando então a planta em flor.


b) O que significa a expressão "enchia a calçada de flores"?

     As flores caiam na calçada, sujando-a.

3) Observe a frase: [...] esquecíamos o cinza que nos envolvia [...]" (2º parágrafo). Que cinza era esse ao qual o autor se referia?

O cinza que vinha do asfalto, do concreto, do cimento, os elementos característicos da cidade grande. 


4) Por que a árvore parou de florescer?

    Porque a vizinha estava envenenando a árvore aos poucos.

5) Releia atentamente a seguinte frase e responda às questões:
"Surpresos, nós, os moradores da rua, que tínhamos na árvore um verdadeiro símbolo, começamos a nos lembrar de uma vizinha de meia-idade que todas as manhãs estava ao pé da árvore com um regador." (2º parágrafo).
a) Qual é a primeira impressão que temos ao ler que a vizinha regava a árvore todos os dias?

Que ela cuidava da árvore, molhando-a diariamente.

b) Essa impressão se confirma no final do texto? Por quê?

Não. No final o leitor se choca com a resposta que a senhora dá, quando diz que matei mesmo aquela maldita árvore.

6) Por qual motivo a árvore foi morta?

Porque durante o período de floração, sujava a calçada.

7) Identifique, no texto, os elementos da narrativa abaixo:
a) Narrador:
Narrador-personagem.
b) Espaço: Numa rua na cidade de São Paulo.
c) Enredo: Uma árvore que enchia a rua de vida, mas que, de repente, parou de florescer.
d) Clímax: Os vizinhos foram atrás de uma senhora suspeita de envenenar a árvore.
e) Desfecho: A senhora matou a árvore por motivo fútil.

 

 

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

CONTO: O MISTÉRIO DO PROFESSOR DE QUÍMICA - IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO - COM GABARITO

 Conto: O mistério do professor de Química

               Ignácio de Loyola Brandão

    Certo dia, Machadinho aproximou-se de minha carteira.

        -- O menino entrou para o científico por quê? Olhei suas notas de Matemática e Física. Você é uma nulidade. Pretende ser engenheiro, arquiteto, médico?

        -- Nada disso. Nem sei o que pretendo ser.

        -- Mas vejo que o menino escreve em jornal. Escreve direito, faz umas críticas de cinema.

        -- Faço. Talvez eu queira ser diretor de cinema.

        -- E por que não se matriculou no clássico?

        -- Como é mais fácil, não tinha mais vaga e eu não podia parar de estudar.

        -- Não pensa escrever livros? Leva jeito.

        -- Levo? Pode ser, pode ser, gosto de inventar.

        -- Então, vamos fazer um acordo? De hoje em diante, o menino senta na última carteira. Fica lendo, escrevendo, fazendo o que quiser. Só não bagunce. No dia das provas, resolvo o problema para você e fica garantida a nota 4, suficiente para passar. Agora, tenha notas altas em Português, Línguas, Histórias, para ajudar a média geral.

        E assim foi. Não me preocupei mais com a Química. Ficava lendo e, muitas vezes, ele dava uma prova e ia para o fundo, ficávamos a conversar generalidades, ele me ensinava sobre o teatro de Gil Vicente, comentava as manias de Camões, contava sobre Fernando Pessoa, de quem ninguém ainda falava, relatava um conto pouco lido de Machado de Assis, despertava-me para as narrativas de Érico Veríssimo. Era uma conversa rica, estimulante, farta, copiosa. Ter aulas de Português com Machadinho devia ser divertido. Quase no final, ele resolvia o meu problema de Química, para desespero da turma que ia fazer Engenharia. Outras vezes chegava à carteira com a minha crítica de cinema, sentava-se ao lado e cascava o pau na concordância, nos regimes dos verbos, no mau uso de pronomes. “A quem interessa falar dos planos e grandes planos?”, indagava. “O grande público não tem a mínima ideia do que seja um close-up. Sabe o que interessa ao espectador de cinema? A emoção, meu filho! Cinema sem emoção é uma chatice. Literatura sem emoção é morta. Vida sem emoção não vale a pene ser vivida.”

        Será que era emoção o que ele encontrava atrás da porta do laboratório? Aquele professor de fala vibrante, voz metálica, riso irônico que metia medo e frases desconcertantes era uma figura original, desafiadora, numa cidade interiorana onde tudo era cinza, fechado, estranho. Aquele era um homem que tinha lido muito, ia ao cinema, conhecia artistas, diretores e roteiristas, comentava teatro e poesia, sabia Química e Português. Um sujeito especial. E guardava um segredo na vida. Mas qual? Como penetrar, se ele não fornecia brechas?

        Exame oral no último ano. Salão nobre. As paredes rodeadas por quadros-negros. Muitas classes faziam exame ao mesmo tempo. Havia excitação no ar, uns assistindo ao exame dos outros. O ritual era invariável. Sorteava-se o ponto retirando-o de uma garrafinha de bambu. A cada ponto correspondia uma matéria. Apanhei a garrafa com tranquilidade. Não sabia nada, para que me angustiar? Machadinho olhou o meu número, deu um sorriso sarcástico, despachou-me para um quadro-negro bem em frente a uma classe só de mulheres. Ali estavam as meninas mais bonitas de todas as turmas. Ele me ditou o problema. Tinha que resolver uma equação complicadérrima. Fiquei perplexo por instantes. E a ajuda? Machadinho se afastou, dizendo: “Quando o menino resolver, vá para a mesa terminar o exame”. Olhei para trás. Todas as meninas me olhavam. Pertencendo a uma classe ainda não tão adiantada, observavam abismadas o que eu iria fazer com aquela fórmula, para mim mais impenetrável do que para elas. Simplesmente contemplava os números e as letras, desviava o olhar para as meninas. Podia acontecer de tudo, menos fazer um papelão, sofrer um vexame. Resolveria a equação. Tinha decidido que resolveria. Comecei os meus cálculos. Fui acrescentando números, letras, raízes quadradas, X sobre Y, descobri até um pi, e fui enchendo o quadro-negro com uma barafunda das mais incompreensíveis. Cada vez que olhava para as meninas, percebia o olhar de espanto. Somente um gênio poderia saber tais coisas. Ela me olhavam sôfregas. Em todos os meus anos de científico, aquele era o da minha consagração. Seria visto, dali para a frente, como um gênio. Súbito, dei por terminada a operação, atirei o giz com desprezo e altivez para a caixinha e, triunfante, passei pela frente das alunas, em direção à mesa.

        -- O menino merece 10.

        Fiquei abismado. Teria acertado?

        -- 10. Fiz direito. Não fiz? O senhor não confiava em mim?

        -- Aquilo que você fez é a maior vigarice do mundo.

        -- Vigarice? E vai me dar 10?

        -- Pelo talento. O menino devia ser ator de cinema. Não existe ali um único dado que não seja de uma insanidade a toda prova. Mas percebi, ah se percebi. Não podia fazer feio diante de moças tão bonitas. Elas adoraram, pode ter certeza. Hoje você foi o herói delas. Este dia vai ficar na memória de cada uma. Mesmo que você não seja nada, um dia, será lembrado. Por elas e por mim. Vou dar uma boa nota pela criatividade, audácia, inventividade. E pelos recursos rápidos. Só te aconselho a não fazer pela vida afora o que fez hoje.

        Acho que nunca mais repeti a façanha falsificadora do quadro-negro e da fórmula química. Só sei que, outro dia, voltei à cidade e encontrei Machadinho. Deve estar com 90 anos. Ou mais. Ainda tem o mesmo ar que me deixa intrigado.

        -- Tenho acompanhado o menino. Vai bem. Escreve livros. Li alguns. Tem emoção. Isso você não esqueceu – a emoção. Como eu não esqueci aquele exame no salão nobre.

        Conversamos por algumas horas, diante de cálices de vinho do Porto. Então me levantei, queria me despedir e queria perguntar. Fiquei indeciso.

        -- Tem uma coisa que eu queria saber.

        -- Pergunte.

        -- Não sei se devo. Uma curiosidade que me acompanhou pela vida.

        -- Vá lá! Diga. Pergunte o que quiser!

        -- Quero saber, professor, passados quarenta anos, o que o senhor fazia com a loira assistente, os dois encerrados no laboratório.

        E ele, sorrindo, como se de repente todo aquele tempo tivesse retornado e nos envolvido.

        -- Nada, nada mesmo. Apenas ficava provocando vocês. Eu e ela.

        Tremendo gozador, sabia que éramos uns provincianos mexeriqueiros e curiosos. Ficavam ali os dois a bater papo, ler jornais, e fumar e a conversar, sabendo que na sala havia expectativas e pensamentos os mais desencontrados, escabrosos, malucos. Os dois sabiam que eram o assunto privado de cada um. E provocavam. Levei quarenta anos para descobrir que não havia mistério no laboratório.

  Meu professor inesquecível. São Paulo, Editora Gente, 1997. Org. Fanny Abramovich.

      Fonte: Português – Linguagem & Participação, 8ª Série – MESQUITA, Roberto Melo / Martos, Cloder Rivas – 2ª edição – 1999 – Ed. Saraiva, p. 149-153.

Fonte da imagem: https://www.google.com/url?sa=i&url=http%3A%2F%2Fwww.pintarcolorir.com.br%2Fdesenhos-para-colorir-dia-do-professor%2F&psig=AOvVaw2TXXixqqpvSnOH91iGNayZ&ust=1607733388737000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCMic9KnZxO0CFQAAAAAdAAAAABAD


Entendendo a crônica:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Sucinto: que usa poucas palavras, conciso.

·        Roleta-russa: jogo com revólver que contém apenas uma bala.

·        Apreço: estima, consideração.

·        Urdido: tramado, tecido.

·        Onipresente: presente em todos os lugares.

·        Esquartejador: aquele que corta em pedaços.

·        Obsceno: imoral.

·        Evento: acontecimento.

·        Monopolizadas: possuídas, exploradas com exclusividade.

·        Hipótese: ideia ou explicação não provada.

02 – Como se sente o narrador em relação ao Brasil?

      Ele ainda está em processo de adaptação.

03 – Qual o fato que deu origem à crônica?

      A demissão de um ministro dos transportes flagrado ao fugir covardemente da responsabilidade por um atropelamento.

04 – Por que o narrador escolhe o tema “trânsito nas grandes cidades brasileiras”?

      Porque o tema demonstra nossa falta de civilidade e pouco apreço pela vida.

05 – Como dirigem, segundo o texto, os motoristas brasileiros?

      Dirigem contra todos os outros motoristas.

06 – Qual a consequência principal do estilo brasileiro de dirigir?

      O elevado número de acidentes.

07 – Como você interpreta esta afirmação: “Cada cruzamento é uma roleta-russa”?

      Resposta pessoal do aluno.

08 – Como se sente o narrador em relação ao trânsito brasileiro?

      Sente-se mal, critica a irresponsabilidade e a impunidade que vê em toda a parte.

09 – O texto contém várias críticas aos motoristas brasileiros. Você concorda ou discorda delas? Por quê?

      Resposta pessoal do aluno.