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quinta-feira, 25 de abril de 2024

CRÔNICA: A PRAÇA - WALCYR CARRASCO - COM GABARITO

 Crônica: A Praça

           Walcyr Carrasco

 

No final da adolescência, meu sonho era ser ator. Até fiz pontas no teatro. O salário era baixo, mas eu cumpria o ritual de todos os candidatos a astro. Ia religiosamente ao restaurante Gigetto, onde famosos e aspirantes se cruzavam. (Por sinal, o Gigetto mantém até hoje a tradição.) Eu pertencia à turma do couvert. Espécime que, por falta de fundos, contentava-se em filar o couvert alheio. Puxava uma cadeira e me pendurava em mesas lotadas. Tomava no máximo um refrigerante. Surrupiava azeitonas e pedaços de pão com manteiga.

  Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgK9vzNmn6A0JDeImTnXC8KyuVJiioT2toh3nCO06kWIzcI_0EpTj2WuuCqIAep9o6ZldXYABEb8INaQocuLow25uNaLfWbm5eSxy28T4F3sjKPO929ZUySp9RtqIH7G4mZA5pfWfT6TBaTw-l8s6f6W4G71JnXuv2LDkMJrbVTrut21Edh7oAzOKkZ8v4/s320/praca-da-republica.jpg

Tipos como eu eram comuns. A ponto de, em certa época, o Piolin, outra meca de aspirantes a ator, exigir que pelo menos alguém na mesa pedisse um prato. Entrava no restaurante e espreitava mesa por mesa, até achar algum conhecido com emprego suficiente para encomendar um frango a passarinho. As horas passavam, com longas conversas sobre testes, espetáculos a ser montados etc. Onde estavam procurando um magricela loirinho e tão míope a ponto de ser capaz de cair do palco?

Havia um problema de horário. Invariavelmente, a chamada "classe teatral" ia ao restaurante depois dos espetáculos. Eu morava no bairro da Lapa, e o ônibus parava à meia-noite, para voltar a circular ao amanhecer. Eram bons tempos. Para mim, ao menos. Embora não certamente para meus pais, que viviam descabelados, olhando a cada quinze minutos pela janela. -— Não veio ainda — murmurava minha mãe. 

— Já está na hora dele tomar jeito! — rosnava meu pai.

Se não pintava nenhuma festa, só havia uma maneira de chegar em casa. Ficar conversando até o amanhecer. Eu e meus amigos, a pé como eu, caminhávamos pelas ruas, batendo papo. Um casal de amigos vivia em uma quitinete da rua Caio Prado. Era comum receberem meia dúzia de visitantes às duas da manhã. Acordavam e ficavam conversando até o sol raiar. Ou nos acomodávamos no chão, para esperar o fim da madrugada. Isso quando não éramos impedidos de entrar pelo porteiro do prédio, que fiscalizava o excesso de bagunça.

Mas, na maioria das noites, andávamos. Não bebíamos, como pode parecer. Só caminhávamos, falando sobre a vida, sonhos, arte, projetos. Ou sobre ávida alheia, porque ninguém é de ferro. Lembro especialmente de uma noite em que, junto com um amigo, Cândido, sentei em um banco da praça da República. Absolutamente vazia. A não ser por uns patos que viviam no laguinho. Cândido não era ator, mas adorava a noite. Vivia em uma pensão no raio que o parta. A família, do interior. Esperava a decisão de um inventário. Nunca mais o vi, e às vezes tento imaginar o que aconteceu com ele. Soube, há anos, que a tal fortuna saiu. Já é uma vantagem. Passamos a noite batendo papo naquele banco. Ele se lamentava. Acabara de romper com a namorada, trocado por um baiano que ela conhecera no carnaval em Salvador. Falamos longamente sobre a vida. Às vezes passava alguém, nos olhava. Ou até cumprimentava de longe, e continuava seu caminho. O dia amanheceu, e nem sentimos o tempo passar. Ainda fomos tomar uma média com pão e manteiga. Fui ao ponto, peguei o ônibus. Quase dormi no banco, mas cheguei em casa leve, após uma boa noite de conversa.

Hoje, por uma dessas coincidências da vida, moro em um apartamento que dá frente para a praça da República. Patinhos no lago, nem pensar. Não resistiriam mais de meia hora, até serem levados, depenados e assados. Quando quero atravessar a praça, evito passar por cima. Prefiro ir por baixo, pela estação do metrô, que é mais seguro. Outro dia estava com um vizinho, pronto para voltar à superfície pela escada rolante. Um rapaz aproximou-se, chocado.

— Fui cercado por seis pivetes. Queriam minha carteira, nem sei como estou aqui.

Meu vizinho recuou, com medo. Eu ainda conversei. O rapaz só queria desabafar, ainda tremia. O síndico do meu prédio participa de um grupo que tenta fazer tai chi na praça. Pouca gente vai, mas ele insiste a duras penas. Há sujeira. Há uma coisa pesada no ar. Nunca mais sentei em um banco, nem mesmo de dia.     

Juro, tenho saudade daquele tempo em que ficar conversando na praça podia ser uma coisa normal. Não só nela. Não conheço ninguém capaz de cometer a ousadia de sentar em uma praça, mesmo em um bairro, e passar a noite batendo papo. Parece que o centro, com tanto policiamento, ainda é o lugar mais seguro. Pois em muitos bairros assaltam-se até prédios inteiros. Havia menos linhas de ônibus. Menos projetos disso e daquilo. Mas o laguinho podia ter patos.

Sinto que perdi alguma coisa essencial. Hoje, tenho meu apartamento, carro. Não preciso esperar o horário do ônibus.

Mas, no fundo, sou proprietário de muito menos. Antes, eu era dono da cidade.           

Entendendo o texto

01.Qual era o sonho principal do autor na adolescência?

     a. Ser médico.

     b. Tornar-se um músico famoso.

     c. Ser um ator.

     d. Viajar pelo mundo.

02. Onde o autor e seus amigos costumavam se encontrar após os espetáculos teatrais?

    a. No restaurante Gigetto.

    b. Na estação de metrô.

    c. Na praia.

    d. No parque.

03. Como o autor descreve sua rotina noturna após os espetáculos teatrais?

    a. Voltando para casa de carro.

    b. Conversando nas ruas até o amanhecer.

    c. Assistindo filmes em casa.

    d. Indo para festas.

04. O que o autor costumava fazer para retornar para casa quando o ônibus já não estava mais em circulação?

    a. Pegava um táxi.

    b. Ficava conversando até o amanhecer.

    c. Caminhava com os amigos.

    d. Pedalava até em casa.

05. Qual era o sentimento dos pais do autor em relação aos seus hábitos noturnos?

     a. Preocupação.

     b. Indiferença.

     c. Alegria.

     d. Despreocupação.

06. O que o autor e seu amigo Cândido faziam nas noites em que se encontravam na praça da República?

     a. Jogavam futebol.

     b. Conversavam até o amanhecer.

     c. Corriam ao redor do lago.

     d. Observavam os patos.

07. Qual era o tema principal da conversa do autor e de Cândido durante a noite na praça?

     a. Arte e sonhos.

     b. Esportes e competições.

     c. Política e economia.

     d. Tecnologia e ciência.

08. Como o autor descreve sua relação atual com a praça da República?

      a. Evita atravessá-la.

      b. Frequenta-a diariamente.

      c. Participa de grupos de exercício lá.

      d. Alimenta os patos no lago.

09. O que o autor sente falta em relação aos tempos passados na praça da República?

     a. Os patos no lago.

     b. As longas conversas noturnas.

     c. A sensação de segurança.

     d. A variedade de ônibus disponíveis.

10. Qual é a principal reflexão do autor ao comparar seu presente com o passado vivido na cidade?

      a. Ele se sente mais realizado agora.

      b. Ele percebe que tinha mais liberdade e propriedade sobre a cidade no passado.

      c. Ele prefere a tranquilidade do seu apartamento atual.

      d. Ele valoriza mais as oportunidades que teve na juventude.

 

 

CRÔNICA: MUAMBAS DE LUXO - WALCYR CARRASCO - COM GABARITO

 Crônica: Muambas de Luxo

                Walcyr Carrasco

 

HÁ DUAS SEMANAS FIZ as malas e parti para os Estados Unidos. Férias! Ainda sou do tipo caipira, que quando vai pegar um avião anuncia aos quatro ventos. Nunca mais farei isso. Mal contei, começaram as encomendas:

— Você me compra creme de barbear? — pediu um.

— Aqui existem tantas marcas...

— O que eu gosto é americano. Nas lojas, cobram 7 reais.

  Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg-tEsKkRkvqNOBAMPkyPYiWifPeA0z-1U1bhOYQtnlPnkhOccsOe9dWGueDOd_deI3RzF5XNjIozvi2SW91woM0PQviSqW84AYqEOnNSv33V_QjH8HlO4l8cAC2kR9IzMV465SSFsrkbtt8pdfXL8h7SMu5efo4NAyIbwQowmu5_a1KU95W0UjU2c-qsY/s1600/MUAMBAS.jpg



         No free shop, só 4!      .        .

Nos dias seguintes recebi uma enxurrada de telefonemas:

— Eu uso um perfume que é caríssimo no Brasil.

— Uma vez eu ganhei um relógio com um cachorrinho que late ao despertar. Da Disney. Arruma um para o meu sobrinho?

É um constrangimento. As pessoas se comportam como se estivessem no interior da selva amazônica, ávidas por gotas de civilização. Há pedidos completamente estapafúrdios. Meses atrás, um ator de voz afinada pediu a um amigo meu que ia a Nova York: "Não poderia trazer partituras musicais para um show?". O turista passou duas tardes correndo a cidade e achou algumas. Ao entregá-las, ouviu um rosnado:

— Só essas? Se tivesse procurado com vontade teria encontrado mais.

O show nunca foi montado. A amizade esfriou. Muitas vezes tentei

recusar, explicando:

— Vou a trabalho, nem sei se terei tempo...

A pessoa sempre insiste. Age como se fosse desfeita. Entre . o pedido e a entrega existem várias armadilhas capazes de acabar com uma amizade. Como a questão do preço. Certa vez um rapaz insistiu para que eu trouxesse um gravadorzinho. Comprei na primeira loja. Ainda me lembro do sorriso do chinês do balcão. Ao chegar, entendi o porquê de tanta alegria.

— Aqui no Brasil é muito mais barato!

— Você ainda queria que eu pechinchasse? -— admirei-me.

Ele me olhou torto, como se eu estivesse tirando algum por fora. Algumas situações ficam muito desagradáveis. Um advogado, conhecido meu, esqueceu-se de procurar um xampu. Ao voltar, comprou num shopping e o entregou à colega de escritório como se fosse trazido do exterior. Cobrou metade do que pagou. Só para não ficar chato. Foi pior: agora vai viajar de novo e a moça lhe deu uma lista enorme, para aproveitar o preço.

Pavoroso é o amigo que encomenda pôster. Não adianta bater o pé, dizer que não cabe em mala nenhuma, que serei obrigado à trazer na mão.

— E leve, qual o problema de carregar? — ouço de volta.

Nem sei como reagir diante da observação. Carregar tralha é horrível até em viagens curtas de ônibus, como de São Paulo a Santos. Quanto mais em aeroportos, onde se deve chegar duas horas antes, esperar para embarcar etc, etc. Será que ninguém pensa que em vez de fazer compras eu quero aproveitar a viagem? Bem, minha mãe dizia que pimenta nos olhos dos outros é refresco.

A frase mais terrível certamente é:

— Você traz que depois a gente acerta.

Por causa dela, cheguei a dar calote. Há alguns anos uma produtora teatral me pediu para encontrar um diretor em Nova York e pegar um texto com ele. Pagaria as despesas, explicou. Esperei no hotel, o homem não chegava. Eu tinha um compromisso, saí correndo. Voltei, encontrei o texto e um bilhete com a conta. Era um livro caríssimo, fora dos catálogos. Telefono para ele, não encontro. Ele liga de volta, deixa recado. Acabei partindo sem pagar. Foi a sorte. A produtora pegou o livro, sorriu, agradeceu, disfarçou e nem perguntou quanto custara. Ou seja: eu também não iria receber.

Finalmente aprendi. Ao desembarcar em Cumbica, fui ao free shop tratar das encomendas. Fiquei uma hora escolhendo licores, chocolates, latinhas de patê, telefones sem fio. Cheguei aos perfumes. De todos, só não havia o meu. Senti-me injustiçado. Estava lá, camelando com as compras, e para mim nada? Podem me chamar de egoísta. Abandonei o carrinho.

Os amigos fazem de tudo para transformar o turista em ás do contrabando. Decidi: encomendas, não mais. Sei de gente que ficará de nariz torcido. Assumo: odeio peregrinar pelas lojas, carregar malas, esfalfar-me nos aeroportos. Para muambeiro de luxo, nunca tive vocação.

Entendendo o texto

01. Qual é o tema principal abordado na crônica "Muambas de Luxo" de Walcyr Carrasco?

a. Comportamento dos turistas em viagem.

b. A experiência de compras em free shops.

c. Dicas de viagem para os Estados Unidos.

d. Histórias engraçadas de malas extraviadas.

   02. Qual é o sentimento do autor em relação às encomendas feitas por amigos e conhecidos durante sua viagem?

          a. Alegria por ajudar.

          b. Indiferença.

          c. Frustração e irritação.

          d. Entusiasmo por fazer compras.

   03. Por que o autor descreve seus amigos como transformando-o em um "ás do contrabando"?

         a. Porque gostam de envolvê-lo em atividades ilegais.

         b. Porque o incentivam a trazer produtos de forma clandestina.

         c. Porque esperam que ele traga produtos de forma vantajosa durante suas viagens.

         d. Porque querem colecionar itens exóticos trazidos por ele.

   04. O que o autor menciona como um dos pontos negativos das encomendas que recebe durante suas viagens?

         a. O peso extra na bagagem.

         b. A falta de interesse dos amigos.

         c. O desinteresse das lojas em atender seus pedidos.

         d. A dificuldade de escolher os produtos certos.

 05. Qual foi a reação do autor ao descobrir que o gravador comprado no exterior era mais barato no Brasil?

         a. Ele ficou contente por ter conseguido um bom negócio.

       b. Ele se surpreendeu com a reação de seu amigo.

      c. Ele se sentiu mal por não ter pechinchado o preço.

      d. Ele achou engraçada a situação.

    06. O que aconteceu com o show que o autor ajudou a providenciar partituras musicais?

      a. O show foi um grande sucesso.

      b. O show foi cancelado.

      c. O autor não menciona o resultado do show.

      d. O autor não chegou a assistir ao show.

   07. Por que o autor decidiu não mais aceitar encomendas durante suas viagens?

      a. Porque seus amigos não apreciavam seus esforços.

      b. Porque ele não gosta de fazer compras.

      c. Porque a experiência se tornou desagradável e estressante.

      d. Porque ele prefere viajar sem bagagem.

  08.Qual foi a situação que levou o autor a dar um "calote" involuntário durante uma viagem?

      a. Ele esqueceu de pagar uma conta de hotel.

      b. Ele não conseguiu encontrar um diretor de teatro em Nova York.

      c. Ele foi enganado ao comprar um produto caro no exterior.

      d. Ele não recebeu o pagamento pelo livro que entregou.

  09. O que fez o autor abandonar suas compras no free shop ao final da crônica?

      a. Ele percebeu que estava gastando demais.

      b. Ele não encontrou o perfume que queria.

      c. Ele decidiu não mais comprar presentes para seus amigos.

      d. Ele sentiu-se injustiçado ao perceber que seus amigos não valorizavam seus esforços.

10. Qual é a conclusão principal que o autor tira ao final da crônica "Muambas de Luxo"?

       a. Ele decide viajar mais frequentemente para os Estados Unidos.

       b. Ele percebe que não gosta de fazer compras para os outros durante suas viagens.

       c. Ele conclui que seus amigos não são gratos por suas ajudas.

       d. Ele decide se mudar para o exterior permanentemente.

 

 

 

 

domingo, 25 de fevereiro de 2024

CRÔNICA: CABEÇAS-DE-VENTO - WALCYR CARRASCO - COM GABARITO

  Crônica: Cabeças-de-Vento

                                       Walcyr Carrasco

 UM DOS MAIORES SUSTOS de minha vida aconteceu exclusivamente por culpa minha. Trabalhava em um escritório em uma pequena travessa do bairro dos Jardins. Recebi um amigo, conversamos. Saímos de noitinha. Chuviscava; Corremos até o carro. Tentei abrir, não conseguia. Um carro entrou na rua em disparada. Brecou rangendo os pneus. Quatro rapazes mal-encarados saíram às pressas, deixando as portas abertas. Não tive dúvidas: íamos ser assaltados. O escritório fechado. Rua vazia. Gelei. Um dos sujeitos parou a dois metros. Os outros formaram um arco atrás dele.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh_HWp7PnJUgllfb6hSDlwcWtlLFQBMLpMuTI-UIjHJu30VkWLaM8AEhvOW19EsIqXKHvtYBMPKuLQQNT69-seC6qcgOQVWzWYEFD_3z2k3oPpZ_2XCilUfEjmTJjYFwWJmB_PXV6g7kRcBNEo57RCTKUkBJF2Kjwi0M3-E4DhJ7Flz6Z-Mqqaqgng5AhY/s320/CABE%C3%87A.jpg


— Boa noite — rosnou.

— Boa noite — gemi de volta.

         — Largue o carro — gritou ele.      

Tremi. Era mesmo um bando de ladrões. Eu e meu amigo imóveis de medo.

— Vamos, largue o carro! — insistiu o mal-encarado.

— Mas... é meu -— consegui dizer, quase em lágrimas, abraçando o capo. — E seu coisa nenhuma. É meu.

Ergueu o punho, ameaçador. Já ia responder quando olhei para o lado. Lá estava meu carro, estacionado a poucos metros. Quem estava tentando levar o automóvel alheio era eu! Constrangidíssimo, tentei explicar:

— Ih! Acho que me enganei. O meu é aquele lá.   

 Quem poderia acreditar? O meu era azul, o dele marrom. Pior: de modelos completamente diferentes. Meu amigo babava com o vexame. Fugimos às pressas, antes de levarmos uma surra. Certamente o sujeito e a turma vão contar a vida toda como certa vez afugentaram dois perigosos ladrões com a boca na botija.

Carros são um prato ótimo para distraídos. Dia desses um amigo entrou na garagem do prédio, que tem dois pavimentos. Horrorizado, descobriu que seu carro estava todo enlameado.

— Alguém deve ter usado escondido! Só pode ser o garagista!

Cheio de raiva, pegou uma mangueira. Lavou. Arrumou pano velho para enxugar. Quando chegou na frente, notou parte da pintura descascada.

   — Ainda por cima devem ter raspado na parede. E muita safadeza. 

Já estava prestes a chamar o síndico. De repente descobriu que tinha lavado o carro de outra pessoa. Pior, de um modelo diferente do seu! Simplesmente errara o pavimento da garagem, caminhara até onde julgara ser sua vaga e o resto ficou por conta da distração. Tenho uma amiga experta em distrações culinárias. Convida para um churrasco e esquece de comprar a carne. Certa vez preparou um jantar para dez pessoas. Só eu fui. Ficou arrasada. Lá pelas tantas, ligou para um convidado.

— Por que você não veio no meu jantar?

— O quê? Você não avisou!

Tinha esquecido de convidar. Tenho um amigo tão distraído que, em certo dia de chuva, ficou de dar carona a uma companheira na saída do trabalho.

Ofereceu.

— Vou até o estacionamento, tiro o carro e pego você na porta.

A amiga sorriu, agradecida. São raros os cavalheiros hoje em dia. Pois bem:

o "cavalheiro" chapinhou até o estacionamento. Pegou o carro e saiu. A moça aguardava na porta. Ele passou por ela distraidamente, deu tchauzinho e foi embora. A coitada pensou que fosse brincadeira. Quarenta minutos depois percebeu que havia algo errado. Foi obrigada a sair na chuva, no escuro, até um ponto de ônibus Só no dia seguinte, quando estava prestes a levar uns tapas, ele percebeu o engano. — Ih... eu esqueci que você estava me esperando! Se dirijo, às vezes viro na rua errada, sem pensar. Principalmente quando estou acostumado com um caminho e esqueço que vou para outro lugar. Levanto para dar um telefonema urgente, paro para tomar um café e quando lembro passou o horário comercial. Meu amigo Cláudio, um distraído contumaz, jura que é genético. Certa vez, nos bons tempos do centro da cidade, seu avô e sua avó foram assistir a uma ópera no Teatro Municipal. Ela, com casaco de peles e joias, elegante como era de praxe. O casal saiu caminhando. A rua Xavier de Toledo estava em obras, cheia de tapumes e buracos bem fundos. A avó caiu dentro de um deles. O marido nem percebeu. Distraído, foi para casa, sentou-se para ler o jornal. Horas depois a mulher apareceu. Suja de barro até os cabelos. O casaco de pele destruído. Ele espantou-se: — Onde é que você estava?

Hoje em dia daria divórcio. Na época, ela contentou-se em rugir. De tudo, uma lição se aprende. Quando se fala em distraídos, sem dúvida a tragédia anda ao lado da comédia.

Entendendo o texto

01. Qual foi o motivo do susto vivenciado pelo protagonista na crônica?

a) Ele foi perseguido por ladrões.

b) Ele se enganou pensando que ia ser assaltado.

c) Ele perdeu seu carro.

d) Ele viu um acidente de carro.

    02. O que o protagonista abraçou quando os supostos ladrões ordenaram que largasse?

         a) Um poste

         b) Seu amigo

         c) Uma árvore

         d) O capô de um carro

   03. Por que o amigo do protagonista ficou horrorizado ao encontrar seu carro na garagem do prédio?

         a) Estava todo enlameado.

         b) Estava amassado.

         c) Estava com os pneus furados.

         d) Estava bloqueando a saída.

  04. O que o amigo do protagonista descobriu quando chegou na frente do carro que estava lavando?

        a) A pintura estava descascada.

        b) O pneu estava murcho.

        c) O motor estava falhando.

        d) O carro não era o seu.

  05. Qual foi a distração culinária da amiga do protagonista mencionada na crônica?

       a) Esqueceu de comprar carne para o churrasco.

       b) Preparou um jantar para dez pessoas e só o protagonista apareceu.

       c) Não avisou os convidados sobre o jantar.

       d) Esqueceu de acender o fogão.

  06. O que o amigo distraído do protagonista esqueceu de fazer quando prometeu dar carona para a companheira de trabalho?

       a) Tirar o carro do estacionamento.

       b) Encontrar a companheira na porta do trabalho.

       c) Voltar para buscá-la após estacionar o carro.

       d) Ligar para avisar que estava a caminho.

  07. Qual é a principal causa das distrações do protagonista quando dirige?

        a) Ele costuma se distrair com o celular.

        b) Ele tem problemas de visão.

        c) Ele se perde facilmente.

        d) Ele está sempre atrasado.

   08. O que aconteceu com a avó do amigo distraído do protagonista durante uma ida ao Teatro Municipal?

       a) Ela perdeu seu casaco de pele.

       b) Ela ficou presa em um buraco na rua.

       c) Ela foi atropelada.

       d) Ela se perdeu no caminho.

  09. Qual foi a reação do marido da avó do amigo distraído quando ela voltou para casa suja de barro?

       a) Ele ficou muito preocupado.

       b) Ele riu da situação.

       c) Ele não percebeu.

       d) Ele pediu o divórcio.

  10. Qual é a lição que se aprende com as histórias de distrações na crônica?

       a) Distrações podem resultar em tragédias.

       b) Distrações são sempre engraçadas.

       c) É importante prestar atenção aos detalhes.

       d) É inevitável cometer erros por distração.

 

CRÔNICA: O CASAMENTO - WALCYR CARRASCO - COM GABARITO

 Crônica: O Casamento

                 Walcyr Carrasco

 

ENTRO NA SACRISTIA embalsamado em um terno preto. O botão está perigosamente apertado sobre minha barriga. Tremo à ideia de que possa estourar como uma rolha de champanhe quando eu estiver sobre o altar. Serei padrinho de casamento de meu amigo Rodrigo. Sou o primeiro a chegar. Precavido, corro para o toalete. 

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhaO_0qfbVCg2LTqCb0C8QDP8c_dkPCqmdu-o25oaEMefGxphRKMGns8RX90rdRFXAWRA1-rGHq_11GHvFyWNN9KAFg76d3fx61tkQR8Zu4hQ69_q0Cz2mS6acWyXydKM4lQRCfbox5c1Lg7EoyscrWXGJqMn-J8F0HDBtwK9_-dVeWFoqRi3lKREeF0SM/s320/TERNO.jpg


Ando fazendo uma dieta sem sal: Diurética. Ai, que medo! Busco o masculino. Só encontro o feminino. Tranco-me lá dentro, já que ninguém está vendo. Quando saio, há uma fila de mulheres na porta. Disfarço. Os outros padrinhos chegam. Todos estão de camisa branca. Menos eu, que vim de azul. Sinto-me horrível. O noivo também chega. Abraça a todos, visivelmente emocionado. Meu amigo Murilo comenta.

— Está pingando sangue do seu queixo.

Verdade! Havia me cortado ao fazer a barba. Um grupo de madrinhas apressa-se a resolver meu problema.

— Bote o lenço! — Tire o lenço!.

— Jogue água fria!       

É duro transformar-se no centro das atenções enquanto todo mundo espera! Finalmente, estanca por si mesmo. Respiro aliviado.

Uma senhora nos chama. Deveremos entrar em cortejo, em uma ordem,

definida. Dá instruções.

— Padrinhos do noivo devem subir para o lado direito do altar!          

— Ahn?

Minha dama resolve:

— A gente segue o casal da frente. Se ele errar, erramos juntos!

         O noivo confidencia:    .

— Estou nervoso. Você não está?

      — Quem vai casar é você — respondo. — E por que eu estaria?

Não sei por quê, todos riem. Acho que de nervosismo. A mãe do noivo pede um momento. Está chorando tanto que deve refazer a maquiagem. Todos aguardam.

Saímos em cortejo. Na porta da igreja a tal senhora dá um empurrãozinho no meu cotovelo. Entro. Oh! Toda a igreja, de pé, me observa. Penso em sorrir. Mas também não posso ficar arreganhando os dentes. Tento fazer uma expressão de beatitude. Que horror! Eu e minha dama somos mais largos que o corredor! Tento manter a dignidade enquanto caminho batendo o nariz nos arranjos de flores. Subimos ao altar. Erro meu lugar, é claro. Minha amiga, Rosana, a madrinha da frente, me puxa para o local adequado. Ainda bem que não derrubei um castiçal, incendiando os vestidos das madrinhas. Mas quase.

O noivo, trêmulo. Ouve-se a marcha nupcial. Ouve-se a marcha nupcial. Ouve-se a marcha nupcial. Ouve-se.... sim, a marcha nupcial continua sendo ouvida e nada de a noiva entrar. Deve estar dando os últimos retoques na porta da igreja. Finalmente, as portas se abrem. E uma das noivas mais belas que já vi. Nervosíssima! É entregue ao noivo. Começa a cerimônia. Sermão. Minhas pernas latejam. O padrinho do outro lado está olhando exatamente atrás de mim. Olhar fixo. Será que o teto está prestes a despencar na minha cabeça? Quase viro o pescoço. Consigo me conter. Tenho uma certa dificuldade em parecer um senhor sério e bem-comportado. Entra uma menininha com as alianças. Chorando! O noivo corre para pegá-la. Entrega-a à mãe, também presente no altar.

Ouço os "sins". As alianças são trocadas. O padre canta, em Um belo momento. Os noivos choram. A cerimônia termina. Cada um deles vem nos cumprimentar. Sinto uma emoção inesperada. Quando o noivo me abraça, me chamando de amigo, o meu aperto é forte também. Vejo o quanto estão emocionados. As lágrimas escorrem. Percebo, então, como esse ritual tão antigo nos toca, e como os votos adquirem maior valor. Lá do fundo do meu coração brota o desejo sincero de que sejam muito, muito felizes!    

Entendendo o texto

01. O protagonista da crônica está se preparando para ser padrinho de casamento de quem?

a) Seu irmão.

b) Seu amigo Rodrigo.

c) Seu primo.

d) Seu colega de trabalho.

   02. Por que o protagonista está preocupado com o botão de seu terno?

         a) Porque está muito apertado e pode estourar.

         b) Porque está muito frouxo e pode cair.

         c) Porque está manchado.

         d) Porque está rasgado.

    03. Qual é o problema que o protagonista encontra ao procurar o banheiro masculino?

          a) Está trancado.

          b) Está sujo.

           c) Não consegue encontrar o banheiro masculino.

           d) Só encontra o banheiro feminino.

    04. O que acontece com o protagonista enquanto ele está no altar?

           a) Ele derruba um castiçal.

           b) Ele se perde no corredor.

           c) Ele bate o nariz nos arranjos de flores.

           d) Ele esquece as alianças.

   05. Por que a cerimônia de casamento é interrompida brevemente?

          a) Porque a noiva está atrasada.

          b) Porque o noivo está chorando muito.

          c) Porque o teto da igreja está prestes a cair.

          d) Porque o padre se enganou nas palavras.

   06. O que o protagonista sente quando o noivo o chama de amigo e o abraça?

          a) Desconforto.

          b) Alegria.

          c) Nervosismo.

          d) Tristeza.

  07. Quem é responsável por conduzir o protagonista até o local adequado no altar?

          a) O noivo.

          b) A mãe do noivo.

          c) A dama de honra.

          d) O padre.

  08. Qual é o sentimento predominante do protagonista no final da cerimônia?

          a) Frustração.

          b) Tédio.

          c) Emoção.

          d) Desconforto.

  09. O que o protagonista faz para tentar parecer bem-comportado durante a cerimônia?

          a) Sorri exageradamente.

          b) Mantém uma expressão de beatitude.

          c) Faz piadas.

          d) Ignora o que está acontecendo.

 10. O que o protagonista sente quando percebe a emoção dos noivos durante a cerimônia?

          a) Indiferença.

          b) Inveja.

          c) Empatia.

         d) Raiva.