Conto: O EDIFÍCIO
Murilo Rubião
Chegará o dia em que os teus pardieiros
se transformarão em edifícios; naquele dia ficarás fora da lei. (Miquéias, VII,
11).
"Mais de cem anos foram
necessários para se terminar as fundações do edifício que, segundo o manifesto
de incorporação, teria ilimitado número de andares. As especificações técnicas,
cálculos e plantas, eram perfeitas, não obstante o ceticismo com que o
catedrático da Faculdade de Engenharia encarava o assunto. Obrigado a se
manifestar sobre a matéria, por alunos insatisfeitos com o tom reticencioso do
mestre, resvalava para a malícia afirmando tratar-se de "vagas
experiências de outra escola de concretagem". Batida a última estaca e
concluídos os alicerces, o Conselho Superior da Fundação, a que incumbia a
direção geral do empreendimento, dispensou os técnicos e operários, para, em
seguida, recrutar nova equipe de profissionais e artífices.
A LENDA
Ao engenheiro responsável,
recém-contratado, nada falaram das finalidades do prédio. Finalidades, aliás,
que pouco interessavam a João Gaspar, orgulhoso como se encontrava de, no
início da carreira, dirigir a construção do maior arranha-céu de que se tinha
notícia. Ouviu atentamente as instruções dos conselheiros, cujas barbas
brancas, terminadas em ponta, lhes emprestavam aspecto de severa pertinácia.
Davam-lhe ampla liberdade, condicionando-a apenas a duas ou três normas, que
deveriam ser corretamente observadas. A sua missão não seria somente exercer
funções de natureza técnica. Envolvia toda a complexidade de um organismo
singular. Os menores detalhes do funcionamento da empresa construtora estariam
a seu cargo, cabendo-lhe proporcionar salários compensadores e constante
assistência ao operariado. Competia-lhe, ainda, evitar quaisquer motivos de
desarmonia entre os empregados. Essa diretriz, conforme lhe acentuaram,
destinava-se a cumprir importante determinação dos falecidos idealizadores do
projeto e anular a lenda corrente de que sobreviveria irremovível confusão no
meio dos obreiros ao se atingir o octingentésimo andar do edifício e, consequentemente,
o malogro definitivo do empreendimento. No decorrer das minuciosas explicações
dos dirigentes da Fundação, o jovem engenheiro conservou-se tranquilo,
demonstrando absoluta confiança em si, e nenhum receio quanto ao êxito das
obras. Houve, todavia, uma hora em que se perturbou ligeiramente, gaguejando
uma frase ambígua. Já terminara a entrevista e ele recolhia os papéis
espalhados pela mesa, quando um dos velhos o advertiu:
— Nesta construção não há lugar para os
pretensiosos. Não pense em terminá-la, João Gaspar. Você morrerá bem antes
disso. Nós que aqui estamos constituímos o terceiro Conselho da entidade e,
como os anteriores, jamais alimentamos a vaidade de sermos o último.
A ADVERTÊNCIA
A mesma orientação que recebera dos
seus superiores, o engenheiro a transmitiu aos subordinados imediatos. Nem
sequer omitiu a advertência que o encabulara. E vendo que suas palavras tinham
impressionado bem mais a seus ouvintes do que a ele as do ancião, sentiu-se
plenamente satisfeito.
A COMISSÃO
João Gaspar era meticuloso e detestava
improvisações. Antes de encher-se a primeira forma de concreto, instituiu uma
comissão de controle para fiscalizar o pessoal, organizar tabelas de salários e
elaborar um boletim destinado a registrar as ocorrências do dia. Essa medida
valeu maior rendimento de trabalho e evitou, por diversas vezes, dissensões
entre os assalariados. A fim de estimular a camaradagem entre os que lidavam na
construção, desenvolviam-se aos domingos alegres programas sociais. Devido a
esse e outros fatores, tudo corria tranquilamente, encaminhando-se a obra para
as etapas previstas. De cinquenta em cinquenta andares, João Gaspar oferecia
uma festa aos empregados. Fazia um discurso. Envelhecia.
O BAILE
Inquietante expectativa marcou a
aproximação do 800° pavimento. Redobraram-se os cuidados, triplicou-se o número
de membros da Comissão de Controle, cuja atividade se tornara incessante, superando
dificuldades, aplainando divergências. Deliberadamente, adiou-se o baile que se
realizava ao termo de cada cinquenta pisos concluídos. Afinal, dissiparam-se as
preocupações. Haviam chegado sem embaraços ao octingentésimo andar. O
acontecimento foi comemorado com uma festa maior que as precedentes. Pela
madrugada, porém, o álcool ingerido em demasia e um incidente de pequena
importância provocaram um conflito de incrível violência. Homens e mulheres,
indiscriminadamente, se atracaram com ferocidade, transformando o salão num
amontoado de destroços. Enquanto cadeiras e garrafas cortavam o ar, o
engenheiro, aflito, lutava para acalmar os ânimos. Não conseguiu. Um objeto
pesado atingiu-o na cabeça, pondo fim a seus esforços conciliatórios. Quando
voltou a si, o corpo ensanguentado e dolorido pelas pancadas e pontapés que
recebera após a queda, sentiu-se vítima de terrível cilada. De modo inesperado,
cumprira-se a antiga predição.
O EQUÍVOCO
Depois do incidente, João Gaspar
trancou-se em casa, recusando-se a receber os seus mais íntimos colaboradores,
para não ouvir deles palavras de consolo. Já que se fazia impossível continuar
as obras, desejava, ao menos, descobrir o erro em que incorrera. Acreditava ter
obedecido fielmente às instruções do Conselho. Se fracassara, a culpa deveria
ser atribuída à omissão de algum detalhe desconhecido da profecia. A
insistência dos auxiliares venceu sua teimosia e concordou em atendê-los.
Queriam saber por que desanimara, não mais comparecera ao edifício. Ficara
ressentido pela briga?
— Que adiantaria a minha presença? Não
lhes satisfez a minha humilhação?
— Como? — indagaram.
— Aquilo fora uma simples bebedeira.
— Estavam todos envergonhados com o que
acontecera e lhe pediam desculpas.
— E ninguém abandonou o trabalho? Ante
a resposta negativa, ele se abraçou aos companheiros:
— Daqui para frente nenhum obstáculo
interromperá nossos planos! (Os olhos permaneciam umedecidos, mas os lábios
ostentavam um sorriso de altivez.)
O RELATÓRIO
Em ambiente calmo, todos se empenhando
nas suas tarefas, mais noventa e seis andares foram acrescidos ao prédio. As
coisas seguiam perfeitas, a média de trabalho dos assalariados era excelente.
Empolgado por um delirante contentamento, o engenheiro distribuía
gratificações, desfazia-se em gentilezas com o pessoal, vagava pelas escadas,
debruçava-se nas janelas, dava pulos, enrolava nas mãos as barbas
embranquecidas. Para prolongar o sabor do triunfo, que o cansaço começava
solapar, ocorreu-lhe redigir um circunstanciado relatório aos diretores da
Fundação, contando os pormenores da vitória. Demonstraria também a
impossibilidade de surgir, no futuro, outras profecias que pudessem embaraçar o
prosseguimento das obras. Ultimado o memorial, ele se dirigiu à sede do
Conselho, lugar em que estivera poucas vezes e em época bem remota. Em vez dos
cumprimentos que julgava merecer, uma surpresa o aguardava: haviam morrido os
últimos conselheiros e, de acordo com as normas estabelecidas após a
desmoralização da lenda, não se preencheram as vagas abertas. Ainda duvidando
do que ouvira, o engenheiro indagou ao arquivista — único auxiliar remanescente
do enorme corpo de funcionários da entidade — se lhe tinham deixado recomendações
especiais para a continuação do prédio. De nada sabia, nem mesmo por que estava
ali, sem patrões e serviços a executar. Ansiosos por descobrir documentos que
os orientassem, atiraram-se à faina de revolver armários e arquivos. Nada
conseguiram. Só encontraram especificações técnicas e uma frase que, amiúde,
aparecia à margem de livros, relatórios e plantas: "É preciso evitar-se a
confusão. Ela virá ao cabo do octingentésimo pavimento".
A DÚVIDA
Esvaíra-se a euforia de João Gaspar. Vago
e melancólico, retornou ao edifício. Da última laje, as mãos apoiadas na
cintura, teve um momento de mesquinha grandeza, julgando-se senhor absoluto do
monumento que estava a seus pés. Quem mais poderia ser, desde que o Conselho se
extinguira?! Fugaz foi o seu desmedido orgulho. Ao regressar a casa, onde
sempre faltara a diligência de uns dedos femininos, as dúvidas o perseguiam.
Por que legavam a um mero profissional tamanho encargo? Quais os objetivos dos
que tinham idealizado tão absurdo arranha-céu? As perguntas iam e vinham,
enquanto o edifício se elevava e menores se faziam as probabilidades de se
tornar claro o que nascera misterioso. Sorrateiro, o desânimo substituiu nele o
primitivo entusiasmo pela obra. Queixava-se aos amigos do tédio que lhe provocava
o infindável movimento de argamassa, pedra britada, fôrmas de madeira, além da
angústia que sentia, vendo o monótono subir e descer de elevadores. Quando a
ansiedade ameaçou levá-lo ao colapso, convocou os trabalhadores para uma
reunião. Explicou-lhes, com enfática riqueza de detalhes, que a dissolução do
Conselho obrigava-o a paralisar a construção do edifício.
— Falta-nos, agora, um plano diretor.
Sem este não vejo razões para se construir um prédio interminável — concluiu.
Os operários ouviram tudo com
respeitoso silêncio e, em nome deles, respondeu firme e duro um especialista em
concretagem:
— Acatamos o senhor como chefe, mas as
ordens que recebemos partiram de autoridades superiores e não foram revogadas.
O DESESPERO
João Gaspar, inutilmente, apelaria para
a compreensão dos servidores. Usava recursos convincentes, numa linguagem
branda, porque seus propósitos eram pacíficos. Igualmente corteses, os
empregados repeliam a ideia de abandonar o trabalho. — Ouçam-me — pedia ele,
impaciente com a obstinação dos subordinados. — É inexequível um monstro de
ilimitados pavimentos!
Murilo Rubião
Entendendo o conto:
01 – Com base na leitura e
análise do conto “O Edifício”, classifique as afirmações seguintes de
verdadeiras ou falsas:
a)
(F) O Edifício havia sido planejado para 800
andares, mas os operários, por conta própria, continuaram a erguê-lo
indefinidamente.
b)
(V) Só para concluir as fundações do edifício,
demoraram mais de cem anos.
c)
(V) Havia a lenda de que adviria completa confusão
entre os obreiros ao se atingir o octingentésimo andar do edifício e, em função
disso, o malogro definitivo de empreendimento.
d)
(F) O conto é narrado na primeira pessoa; o
narrador é João Gaspar.
e)
(V) De cinquenta em cinquenta andares, João Gaspar
oferecia uma festa aos empregados. Fazia um discurso. Envelhecia.
02 – Com base na leitura e
análise do conto “O Edifício”, classifique as afirmações seguintes de
verdadeiras ou falsas:
a)
(F) A predição de que, ao atingir o octingentésimo
andar, a construção do edifício paralisar-se-ia cumpriu-se.
b)
(V) Na festa comemorativa do octingentésimo andar,
houve briga incontrolável entre os obreiros do edifício.
c)
(F) Depois da morte dos conselheiros, a construção
do edifício foi paralisado.
d)
(F) João Gaspar trabalhou na construção do edifício
desde as fundações.
e)
(V) João Gaspar envelheceu enquanto erguia os
andares do edifício.
03 – Com base na leitura e
análise do conto “O Edifício”, classifique as afirmações seguintes de
verdadeiras ou falsas:
a)
(V) Mesmo demitindo todo o pessoal, a construção do
edifício não foi interrompida.
b)
(F) O conto termina com o desabamento do edifício.
c)
(F) O conto termina com a morte de João Gaspar.
d)
(V) A construção do edifício contaminou até
operários das cidades vizinhas.
e)
(V) Mesmo sem remuneração pelos serviços prestados,
os operários continuaram a erguer o estranho edifício.
04 – Antes de assumir a
construção do edifício, João Gaspar:
a)
( )
Tinha esposa e filhos.
b)
( )
Estivera algum tempo em um manicômio.
c)
( )
Já era um construtor experiente.
d)
(X) Não empreendera nenhuma obra
tão grande e tão complexa.
Obra fantástica
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