Crônica: Que língua, a nossa!
Fernando Sabino
Já faz algum tempo, dei com um texto de
um sociólogo brasileiro muito prestigiado na época, que começava assim:
"Os problemas que obstaculam o
desenvolvimento do Brasil ...".
Consultei o dicionário: o verbo
obstacular simplesmente não existia. Em compensação, descobri que existia
obstaculizar, no sentido de criar obstáculos, impedir, dificultar. Por que não
falar nos problemas que impedem, dificultam o desenvolvimento do Brasil? Mania
de complicar as coisas. Resultado: o nosso sociólogo acabou cassado.
Estávamos ainda nos primórdios do
tecnolês. Hoje em dia a coisa chegou a tal ponto que deixou para trás aquela pessimista
observação de George Orwell sobre a linguagem técnica do nosso tempo. O escritor
inglês ousou imaginar como seria escrito atualmente um trecho bíblico - e tomou
como exemplo esta passagem do Eclesiastes:
"Voltei-me para outra coisa, e vi
que debaixo do sol não é o prêmio para os que melhor correm, nem a guerra para
os que são mais fortes, nem o pão para os que são mais sábios, nem as riquezas
para os que são mais hábeis, nem o crédito para os melhores artistas - mas que
depende do tempo e das circunstâncias" (IX - 11).
Agora a mesma coisa, na linguagem do
nosso tempo:
"Uma objetiva consideração dos
fenômenos contemporâneos leva-nos à conclusão de que o sucesso ou fracasso nas
atividades competitivas não encerra possibilidade de ser comensurável pela
capacidade inata, senão que um considerável elemento de imprevisível deve
invariavelmente ser levado em conta".
Pois muito bem: de lá para cá as coisas
pioraram muito. George Orwell, se ainda fosse vivo, poderia imaginar hoje a
mesma ideia expressa mais ou menos assim:
Ao equacionarmos o posicionamento das formulações
de uma unidade comunitária, inseridas no contexto de suas propostas de
relacionamento social, somos levados, pela conotação irreversível de sua
sistemática, a conlucir que a operacionalização das atividades individuais, uma
vez deflagrada, gera um remanejamento pouco gratificante de suas virtualidades
intrínsecas, pois a adequação de suas fantasias à realidade circunstante não
corresponde à expectativa inicialmente enfatizada, senão na medida de sua
reciclagem em face de fatores não-comensuráveis.
Só mesmo repetindo aquela exclamação de
Jânio Quadros, depois de uma frase em que me dizia "a inteligência, Deus
no-la deu..." - e subitamente interrompida, jamais terminada:
No-la deu. Que língua, a nossa!
SABINO, Fernando. As
melhores crônicas de Fernando Sabino.
Rio de Janeiro, Record, 1986. p.63-4.
Entendendo
a crônica:
01 – No título "Que
língua, a nossa!" temos uma frase:
a) interrogativa.
b) negativa.
c) exclamativa.
d) afirmativa.
e) asseverativa.
a) "Resultado: o nosso sociólogo acabou cassado."
b) "O verbo obstacular
simplesmente não existia."
c) "Consultei o dicionário: o verbo
obstacular simplesmente não existia."
d) "... de lá para cá
as coisas pioraram muito."
e) "Pois muito bem."
03 – Na expressão "a
inteligência Deus no-la deu...", o pronome "la" faz referência a:
a) Deus.
b) frase.
c) língua.
d) Inteligência.
e) exclamação.
04 – Na expressão
"Estávamos nos primórdios do tecnolês", o termo grifado é um(a):
a) arcaísmo.
b) neologismo.
c) ênclise.
d) atributo.
e) intertextualidade.
Essa mania
prejudica os elementos fáticos da comunicação.
06 – Explique a construção “No-la deu...”.
Deu-a a nós, ou
seja, deu a inteligência a nós.
07 – Compare as três
diferentes redações de um mesmo trecho que o texto nos oferece. A seguir,
responda:
a)
Em qual delas há um maior número de palavras
longas?
Na última.
b)
Em qual delas as frases são mais complexas?
Na última.
c)
Qual delas é mais fácil de ser lida e
entendida?
A primeira.
d)
Qual delas é mais difícil de ser lida e
entendida?
A última.
08 – Qual das três redações
analisadas na questão anterior é mais eficiente, considerando-se o que
estudamos sobre a função fática da linguagem?
A primeira.
09 – O que é, no seu
entender, o tecnolês? Você conhece exemplos de textos em que se emprega esse
“idioma”?
O aluno deve
referir-se a textos de índole técnica, cada vez mais frequentes na pena e na
boca de nossos economistas.
As respostas das questões 3 e 6 estão divergentes. Em uma o pronome "la" refere-se à língua e em outra o pronome refere-se à inteligência. Qual é o correto?
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