CONTO: VAI
Ivan Ângelo
Quer ir? Vai. Eu não vou segurar. Uma coisa que não dá certo é segurar uma pessoa contra a vontade, apelar pro lado emocional. De um jeito ou de outro isso vira contra a gente mais tarde: não fui porque você não deixou, ou: não fui porque você chorou. Sabe, existem umas harmonias em que é boa a gente não mexer. Estraga a música. Tem a hora dos violinos e tem a hora dos tambores.
Eu compreendo, compreendo
perfeitamente. Olha, e até admito: você muda pra melhor. Fora de brincadeira,
acho mesmo. Eu sei das minhas limitações, pensei muito nisso quando estava
tentando te entender. É, é um defeito meu, considerar as pessoas em primeiro
lugar. Concordo. Mas não tem mais jeito, eu sou assim. Paciência.
Sabe por que eu digo que você muda pra
melhor? Ele faz tanta coisa melhor do que eu! Verdade. Tanta coisa que eu não
aprendi por falta de tempo, de oportunidade – ora, pra que ficar me
justificando? Não aprendi por falta de jeito, de talento, essa é a verdade. Eu
sei ver as qualidades de uma pessoa, mesmo quando é um homem que vai roubar
minha namorada. Roubar não: ganhar.
Compara. Ele dança muito bem, até chama
a atenção. Campeão de natação, anda de bicicleta como um acrobata de circo, é
bom de moto, sabe atirar, é fera no volante, caça e acha, monta a cavalo, mete
o braço, pesca, veleja, mergulha... Não tem companhia melhor.
Eu danço mal, você sabe. Não consegui
ultrapassar aquela fronteira larga entre a timidez e a ousadia, entre a
discrição e o exibicionismo, que separa o mau e o bom bailarinos. Nunca fui
muito além daquela fase em que uma amiga compadecida precisava sussurrar no meu
ouvido: dois pra lá, dois pra cá.
Atravessar uma piscina eu atravesso,
uma vez, duas talvez, mas três? Menino de cidade, e modesto, não tive córrego
nem piscina. É com olhos invejosos que eu o vejo na água, afiado como se
tivesse escamas.
Moto? Meu Deus, quem sou eu. Pra ser
bom nisso é preciso ter aquele ar de quem vai passar roncando na frente ou por
cima de todo mundo – esse ar ele tem.
Montar? É preciso ter essa certeza, que
ele tem, de que cavalo foi feito pra ser domado, arreado, freado e montado. Eu
não tenho. Não tá em mim. Eu ia montar como se pedisse desculpas ao cavalo pelo
incômodo, e isso não dá, não pode ser um bom cavaleiro.
O jeito como ele dirige um carro é
humilhante. Já viajei com ele, encolhido e maravilhado. Você conhece o jeitão,
essa coisa de velocidade. Não vou ter nunca aquela noção de tempo, a decisão, o
domínio que ele tem. Cada um na sua. Eu troquei a volúpia de chegar rapidinho
pelo prazer de estar a caminho. No amor também.
Caçar... Dar um tiro num bicho... Ele
tem isso, a certeza de que o homem é o senhor do universo, tudo tá aí pra ele.
Quem me dera. Quando penso naquela pelota quente de aço entrando no corpo do
bicho, rasgando carne, quebrando ossos... Não, não tenho coragem.
Ai é que eu estou perdido mesmo, no
capítulo da coragem. Ele faz e acontece, já vi. Mas eu? Quantas vezes já levei
desaforo pra casa. Levei e levo. Se um cachorro late para mim na rua, vou lá e
mordo ele? Eu não. Mudo de calçada.
Outra coisa: ele é mais engraçado do
que eu. Fala mais alto, ri mais à vontade, às vezes chama até um pouco a
atenção mas ...é da idade. Lembra aquela vez que ele levou um urubu e soltou na
igreja no casamento do Carlinhos? E aquela vez que ele sujou de cocô de
cachorro as maçanetas dos carros estacionados na porta da boate Lembra que
sucesso? Os jornais falaram por dias naquilo. Não consigo ser engraçado assim.
Não tá em mim. Por isso que eu não tenho mágoa. Ele é muito mais divertido. E
mais bonito também.
Vai.
Olha, não quero dizer que o que eu vou
falar agora tenha importância para você, que possa ter influído na sua decisão,
mas ele tem mais dinheiro também, você sabe. Ele tem até, sabe? Aquele ar
corajoso dos ricos, aquela confiança de entrar nos lugares. Eu não. Muito
cristal me intimida. Os meus lugares são uns escondidos onde o garçom é amigo,
o dono me confessa segredos, o cozinheiro acena lá do quadradinho e me reserva
o melhor naco. É mais caloroso, mas não compensa o brilho, de jeito nenhum.
Ele é moderno, decidido. Num
restaurante não te oferece primeiro a cadeira, não observa se você tá servida,
não oferece mais vinho. Combina, não é? Com um tipo de feminismo. A mulher que
se sente, peça o que quiser, sirva-se, chame o garçom quando precisar. Também
não procura saber se você tá satisfeita. Eu sei que é assim que se usa agora.
Até no amor. Já eu sou meio antigo, ultrapassado, gosto de umas cortesias.
Também não vou dizer que ele é melhor
do que eu em tudo. Isso não. Eu sei, por exemplo, uns poemas de cor. Li alguns
livros, sei fazer papagaios de papel, posso cozinhar uns dois ou três pratos
com categoria, tenho certa paciência pra ouvir, sei uma ótima massagem pra dor
nas costas, mastigo de boca fechada, levo jeito com crianças, conheço umas
orquídeas, tenho facilidade pra descobrir onde colocar umas carícias, minhas
camisas são lindas, sei umas coisas de cinema, não bato em mulher.
E não sou rancoroso. Leva a chave para
o caso de querer voltar.
Ivan Ângelo.
Entendendo o texto:
01
– O texto se configura como um diálogo entre duas pessoas, embora só tenhamos
acesso à fala do narrador.
a) Com quem o narrador fala, ou seja, quem é seu
interlocutor?
Com ele mesmo.
b) Sobre quem ele fala na maior parte do tempo?
Fala da diferença
entre ele e um amigo.
02 – No 1° parágrafo, o
narrador compara à musica o relacionamento que tem com a mulher. A que corresponderia,
no relacionamento, a harmonia musical a que o narrador faz referência?
Uma vez que o
amor acaba, o melhor é deixar ir.
03 – No 2° parágrafo o
narrador afirma ter compreendido a namorada e reconhece também que um de seus
defeitos é pensar primeiro nos outros. Na sua opinião, esse hábito do narrador
é, de fato, um defeito? Por quê?
Resposta pessoal
do aluno.
04 – A partir do
3° parágrafo, o narrador justifica sua opinião de que ela está fazendo uma
boa escolha.
a) Qual é a justificativa que ele apresenta inicialmente?
Ele faz tanta coisa melhor do que eu!
b) Qual é a justificativa verdadeira, apresentada depois?
Não aprendi por
falta de jeito, de talento, essa é a verdade.
c) Que traços de seu caráter
são evidenciados pela confissão que faz ao dar a verdadeira justificativa?
O reconhecimento
do seu jeito de ser.
d) A frase ‘‘Roubar não:
ganhar” comprova qual das duas justificativas? Por quê?
Talento. Porque
ele não teve a capacidade de cativar o namoro.
05 – No 4° parágrafo, o
narrador cita várias qualidades de seu rival. Do 5° ao
10° parágrafos, comenta como ele próprio se sai nessas atividades em que o
adversário se destaca.
a) Observe: o antagonista é bom ou exímio em:
Dança: Ele dança muito bem, até
chama a atenção.
Natação: Campeão de natação.
Ciclismo: Anda como um acrobata
de circo.
Motociclismo: Passa roncando na frente ou por cima de todo mundo.
Automobilismo: O jeito como ele
dirige um carro é humilhante.
Vela: muito bom.
Mergulho: excelente.
Agora conclua: de que tipo
são as atividades em que ele se destaca?
Atividades
esportivas.
b) Como o narrador se sai
nesse tipo de atividades? Ele também se destaca ou tem um desempenho comum?
Ele tem um
desempenho comum.
06 – O narrador ainda cita
mais algumas qualidades de seu rival: a coragem, o dinheiro, a beleza, a
modernidade e o senso de humor. Essas qualidades, somadas às anteriores, são
socialmente bem?
Sim.
07 – Observe as situações de humor comentadas no
1° parágrafo.
a) Se você fosse vítima dessas brincadeiras, você
gostaria?
Resposta pessoal
do aluno.
b) Na sua opinião, essas
situações demonstram senso de humor ou falta de respeito por parte do rival?
Resposta pessoal
do aluno.
08 – Depois de discorrer
sobre as qualidades do adversário por doze parágrafos (do 4° ao 15°), o
narrador reúne todas as suas qualidades num único parágrafo, o penúltimo.
a) Que traço de sua personalidade esse fato revela?
Que ele é uma
pessoa culta, dedicado e atencioso.
b) Observe as qualidades do
narrador, mencionadas nesse parágrafo:
Sabe poemas de cor; gosta de livros e cinema
Tem habilidades manuais (faz massagem e papagaios de
papel)
Sabe cozinhar
É paciente para ouvir o outro
Tem bom-gosto para roupas
É educado e carinhoso
Conhece flores
Se dá bem com as crianças.
Com base nessas qualidades, caracterize o narrador como
pessoa.
Uma pessoa simples
e dedicado.
c) Compare essas qualidades
do narrador às de seu rival. Quais são mais valorizadas socialmente, para você?
Resposta pessoal
do aluno.
09– O narrador e seu rival têm características bastantes
diferentes.
a) Qual dos dois lhe parece
ser mais humano e próximo do indivíduo comum? Cite algumas características que
comprove a resposta.
O narrador: -- Gostar
de livros e cinema.
-- É
paciente para ouvir os outros.
-- É
educado e carinhoso.
-- Se dá
bem com as crianças.
b) Qual dos dois se aproxima
mais do tipo “ideal” de homem, “fabricado” pela TV, pelo cinema e pela
propaganda? Comprove sua resposta com algumas características dessa personagem.
O rival: -- Rico.
-- Moderno.
-- Decidido.
-- Egoísta.
10 – Apesar de apresentar um
tom bem-humorado, o texto faz críticas sociais.
a) Numa situação de
separação amorosa, é normal haver brigas e ofensas entre o casal e,
principalmente, críticas destrutivas ao rival que prejudica o relacionamento.
Surpreendentemente, nesse texto isso não se verifica. Que efeito esse fato
provoca?
Mostra que com
inteligência e sabedoria se vive bem melhor.
b) De forma sutil, o texto
vai mostrando ao leitor que alguns valores humanos, mais interiores e profundos,
são esquecidos socialmente. E, ao mesmo tempo, lança críticas a certos valores
socialmente bem-aceitos. Quais são esses valores criticados?
* As brincadeiras
de mau gosto.
* A arrogância.
* O egoísmo.
* A falta de humildade.
Embora não explícita, qual é a verdadeira
intencionalidade do texto do narrador?
Fazer a relação das diferenças entre os dois.
a) Que frase, da parte final
do texto, comprova sua resposta anterior?
“E não sou rancoroso.”
b) Considerando a verdadeira
intencionalidade do texto, qual deveria ser o seu título?
Resposta pessoal do aluno
Legal
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