sexta-feira, 27 de julho de 2018

CONTO: VAI - IVAN ÂNGELO - COM GABARITO

CONTO: VAI    
              Ivan Ângelo

        Quer ir? Vai. Eu não vou segurar. Uma coisa que não dá certo é segurar uma pessoa contra a vontade, apelar pro lado emocional. De um jeito ou de outro isso vira contra a gente mais tarde: não fui porque você não deixou, ou: não fui porque você chorou. Sabe, existem umas harmonias em que é boa a gente não mexer. Estraga a música. Tem a hora dos violinos e tem a hora dos tambores.
   Eu compreendo, compreendo perfeitamente. Olha, e até admito: você muda pra melhor. Fora de brincadeira, acho mesmo. Eu sei das minhas limitações, pensei muito nisso quando estava tentando te entender. É, é um defeito meu, considerar as pessoas em primeiro lugar. Concordo. Mas não tem mais jeito, eu sou assim. Paciência.
        Sabe por que eu digo que você muda pra melhor? Ele faz tanta coisa melhor do que eu! Verdade. Tanta coisa que eu não aprendi por falta de tempo, de oportunidade – ora, pra que ficar me justificando? Não aprendi por falta de jeito, de talento, essa é a verdade. Eu sei ver as qualidades de uma pessoa, mesmo quando é um homem que vai roubar minha namorada. Roubar não: ganhar.
        Compara. Ele dança muito bem, até chama a atenção. Campeão de natação, anda de bicicleta como um acrobata de circo, é bom de moto, sabe atirar, é fera no volante, caça e acha, monta a cavalo, mete o braço, pesca, veleja, mergulha... Não tem companhia melhor.
        Eu danço mal, você sabe. Não consegui ultrapassar aquela fronteira larga entre a timidez e a ousadia, entre a discrição e o exibicionismo, que separa o mau e o bom bailarinos. Nunca fui muito além daquela fase em que uma amiga compadecida precisava sussurrar no meu ouvido: dois pra lá, dois pra cá.
        Atravessar uma piscina eu atravesso, uma vez, duas talvez, mas três? Menino de cidade, e modesto, não tive córrego nem piscina. É com olhos invejosos que eu o vejo na água, afiado como se tivesse escamas.
        Moto? Meu Deus, quem sou eu. Pra ser bom nisso é preciso ter aquele ar de quem vai passar roncando na frente ou por cima de todo mundo – esse ar ele tem.
        Montar? É preciso ter essa certeza, que ele tem, de que cavalo foi feito pra ser domado, arreado, freado e montado. Eu não tenho. Não tá em mim. Eu ia montar como se pedisse desculpas ao cavalo pelo incômodo, e isso não dá, não pode ser um bom cavaleiro.
        O jeito como ele dirige um carro é humilhante. Já viajei com ele, encolhido e maravilhado. Você conhece o jeitão, essa coisa de velocidade. Não vou ter nunca aquela noção de tempo, a decisão, o domínio que ele tem. Cada um na sua. Eu troquei a volúpia de chegar rapidinho pelo prazer de estar a caminho. No amor também.
        Caçar... Dar um tiro num bicho... Ele tem isso, a certeza de que o homem é o senhor do universo, tudo tá aí pra ele. Quem me dera. Quando penso naquela pelota quente de aço entrando no corpo do bicho, rasgando carne, quebrando ossos... Não, não tenho coragem.
        Ai é que eu estou perdido mesmo, no capítulo da coragem. Ele faz e acontece, já vi. Mas eu? Quantas vezes já levei desaforo pra casa. Levei e levo. Se um cachorro late para mim na rua, vou lá e mordo ele? Eu não. Mudo de calçada.
        Outra coisa: ele é mais engraçado do que eu. Fala mais alto, ri mais à vontade, às vezes chama até um pouco a atenção mas ...é da idade. Lembra aquela vez que ele levou um urubu e soltou na igreja no casamento do Carlinhos? E aquela vez que ele sujou de cocô de cachorro as maçanetas dos carros estacionados na porta da boate Lembra que sucesso? Os jornais falaram por dias naquilo. Não consigo ser engraçado assim. Não tá em mim. Por isso que eu não tenho mágoa. Ele é muito mais divertido. E mais bonito também.
        Vai.
        Olha, não quero dizer que o que eu vou falar agora tenha importância para você, que possa ter influído na sua decisão, mas ele tem mais dinheiro também, você sabe. Ele tem até, sabe? Aquele ar corajoso dos ricos, aquela confiança de entrar nos lugares. Eu não. Muito cristal me intimida. Os meus lugares são uns escondidos onde o garçom é amigo, o dono me confessa segredos, o cozinheiro acena lá do quadradinho e me reserva o melhor naco. É mais caloroso, mas não compensa o brilho, de jeito nenhum.
        Ele é moderno, decidido. Num restaurante não te oferece primeiro a cadeira, não observa se você tá servida, não oferece mais vinho. Combina, não é? Com um tipo de feminismo. A mulher que se sente, peça o que quiser, sirva-se, chame o garçom quando precisar. Também não procura saber se você tá satisfeita. Eu sei que é assim que se usa agora. Até no amor. Já eu sou meio antigo, ultrapassado, gosto de umas cortesias.
        Também não vou dizer que ele é melhor do que eu em tudo. Isso não. Eu sei, por exemplo, uns poemas de cor. Li alguns livros, sei fazer papagaios de papel, posso cozinhar uns dois ou três pratos com categoria, tenho certa paciência pra ouvir, sei uma ótima massagem pra dor nas costas, mastigo de boca fechada, levo jeito com crianças, conheço umas orquídeas, tenho facilidade pra descobrir onde colocar umas carícias, minhas camisas são lindas, sei umas coisas de cinema, não bato em mulher.
        E não sou rancoroso. Leva a chave para o caso de querer voltar.

                                                                           Ivan Ângelo.
Entendendo o texto:
01 – O texto se configura como um diálogo entre duas pessoas, embora só tenhamos acesso à fala do narrador.
a) Com quem o narrador fala, ou seja, quem é seu interlocutor?
      Com ele mesmo.

b) Sobre quem ele fala na maior parte do tempo?
      Fala da diferença entre ele e um amigo.   
 
02 – No 1° parágrafo, o narrador compara à musica o relacionamento que tem com a mulher. A que corresponderia, no relacionamento, a harmonia musical a que o narrador faz referência?
      Uma vez que o amor acaba, o melhor é deixar ir.

03 – No 2° parágrafo o narrador afirma ter compreendido a namorada e reconhece também que um de seus defeitos é pensar primeiro nos outros. Na sua opinião, esse hábito do narrador é, de fato, um defeito? Por quê?
      Resposta pessoal do aluno.   

04 – A partir do 3° parágrafo, o narrador justifica sua opinião de que ela está fazendo uma boa escolha.
a) Qual é a justificativa que ele apresenta inicialmente?
      Ele faz tanta coisa melhor do que eu!

b) Qual é a justificativa verdadeira, apresentada depois?
      Não aprendi por falta de jeito, de talento, essa é a verdade.

c) Que traços de seu caráter são evidenciados pela confissão que faz ao dar a verdadeira justi­ficativa?
      O reconhecimento do seu jeito de ser.

d) A frase ‘‘Roubar não: ganhar” comprova qual das duas justificativas? Por quê?
      Talento. Porque ele não teve a capacidade de cativar o namoro.

05 – No 4° parágrafo, o narrador cita várias qualidades de seu rival. Do 5° ao 10° parágrafos, comenta como ele próprio se sai nessas atividades em que o adversário se destaca.
a) Observe: o antagonista é bom ou exímio em:
Dança: Ele dança muito bem, até chama a atenção.
Natação: Campeão de natação.
Ciclismo: Anda como um acrobata de circo.
Motociclismo: Passa roncando na frente ou por cima de todo mundo.
Automobilismo: O jeito como ele dirige um carro é humilhante.
Vela: muito bom.
Mergulho: excelente.
Agora conclua: de que tipo são as atividades em que ele se destaca?
      Atividades esportivas.

b) Como o narrador se sai nesse tipo de atividades? Ele também se destaca ou tem um desempenho comum?
      Ele tem um desempenho comum.

06 – O narrador ainda cita mais algumas qualidades de seu rival: a coragem, o dinheiro, a beleza, a modernidade e o senso de humor. Essas qualidades, somadas às anteriores, são socialmente bem?
      Sim.    
 
07 – Observe as situações de humor comentadas no 1° parágrafo.
a) Se você fosse vítima dessas brincadeiras, você gostaria?
      Resposta pessoal do aluno.

b) Na sua opinião, essas situações demonstram senso de humor ou falta de respeito por parte do rival?
      Resposta pessoal do aluno. 
   
08 – Depois de discorrer sobre as qualidades do adversário por doze parágrafos (do 4° ao 15°), o narrador reúne todas as suas qualidades num único parágrafo, o penúltimo.
a) Que traço de sua personalidade esse fato revela?
      Que ele é uma pessoa culta, dedicado e atencioso.

b) Observe as qualidades do narrador, mencionadas nesse parágrafo:
Sabe poemas de cor; gosta de livros e cinema
Tem habilidades manuais (faz massagem e papagaios de papel)
Sabe cozinhar
É paciente para ouvir o outro
Tem bom-gosto para roupas
É educado e carinhoso
Conhece flores
Se dá bem com as crianças.

Com base nessas qualidades, caracterize o narrador como pessoa.
      Uma pessoa simples e dedicado.            
c) Compare essas qualidades do narrador às de seu rival. Quais são mais valorizadas socialmente, para você?
      Resposta pessoal do aluno.

09– O narrador e seu rival têm características bastantes diferentes.
a) Qual dos dois lhe parece ser mais humano e próximo do indivíduo comum? Cite algumas características que comprove a resposta.
 O narrador: -- Gostar de livros e cinema.
                    -- É paciente para ouvir os outros.
                    -- É educado e carinhoso.
                    -- Se dá bem com as crianças.
b) Qual dos dois se aproxima mais do tipo “ideal” de homem, “fabricado” pela TV, pelo cinema e pela propaganda? Comprove sua resposta com algumas características dessa personagem.
      O rival:  -- Rico.
                   -- Moderno.
                   -- Decidido.
                   -- Egoísta.

10 – Apesar de apresentar um tom bem-humorado, o texto faz críticas sociais.
a) Numa situação de separação amorosa, é normal haver brigas e ofensas entre o casal e, principalmente, críticas destrutivas ao rival que prejudica o relacionamento. Surpreendentemente, nesse texto isso não se verifica. Que efeito esse fato provoca?
      Mostra que com inteligência e sabedoria se vive bem melhor.
b) De forma sutil, o texto vai mostrando ao leitor que alguns valores humanos, mais interiores e profundos, são esquecidos socialmente. E, ao mesmo tempo, lança críticas a certos valores socialmente bem-aceitos. Quais são esses valores criticados?
      * As brincadeiras de mau gosto.
      * A arrogância.
      * O egoísmo.
      * A falta de humildade.     

11 – Ao descrever as “qualidades” de seu rival, o narrador sutilmente inverte a situação e acaba transformando essas qualidades em defeitos.
Embora não explícita, qual é a verdadeira intencionalidade do texto do narrador?
      Fazer a relação das diferenças entre os dois.
a) Que frase, da parte final do texto, comprova sua resposta anterior?
      “E não sou rancoroso.”
b) Considerando a verdadeira intencionalidade do texto, qual deveria ser o seu título?
      Resposta pessoal do aluno

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