domingo, 29 de outubro de 2023

CONTO: PELE DE BICHO - IRMÃOS GRIMM - COM GABARITO

 Conto: Pele de bicho

            Irmãos Grimm

        Um conto de fadas dos Irmãos Grimm.

        Houve, uma vez, um rei cuja esposa tinha os cabelos iguais ao outro e era tão linda como não havia outra na terra.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgpLSSD-7vEm451UGKBJUKiush3sJiB0qriNCVjo8JxpKTdlf1EIMxDrEhkIXHpKGXOcCAJiCoYnwO8qog5AV7GmxBCqNDv4j5YoOBdtP01a6LXtLXtZdRPyv62OhyphenhyphenmVrwAC8Obp-RvNU9-0WngbQasuzEZ7P4kEA4ZHkw2dw_ZyueXo1__s5jEomDHv88/s1600/RAINHA.jpg


        Quis o céu que a nobre e bondosa rainha adoecesse sem que médico algum pudesse salvar-lhe a vida. Sentindo aproximar-se a última hora, chamou o esposo e recomendou:

        -- Depois de minha morte, se quiseres casar-te outra vez, não cases com mulher menos formosa do que eu; que tenha os cabelos dourados como os meus e seja muito mais prendada. Exijo tua promessa para morrer tranquila.

        O rei prometeu tudo o que ela quis. Pouco depois a rainha morreu, deixando-o louco de desespero e verdadeiramente inconsolável; sua dor era tão grande que não queria pensar em eventual casamento. Mas, decorrido algum tempo, os conselheiros reuniram-se e juntos foram pedir ao rei que tornasse a casar:

        -- O rei não pode reinar sozinho, é necessário que se case para que tenhamos a nossa rainha.

        O rei não queria aceitar a sugestão e alegou a promessa que fizera à esposa; então os dignitários da corte expediram mensageiros por todos os lados a fim de descobrir uma mulher que fosse tão linda e prendada como a rainha falecida.

        Mas ninguém conseguia encontrá-la em parte alguma; mesmo que a tivessem encontrado, nenhuma, por mais bela que fosse, tinha aqueles cabelos de ouro. Portanto, os mensageiros voltaram de mãos vazias.

        O rei tinha uma filha, que era o retrato vivo da mãe e de belos cabelos de ouro. Já estava moça e, certo dia, reparando melhor nela, o rei viu que era igualzinha à falecida esposa e apaixonou-se perdidamente por ela. Então declarou aos seus conselheiros:

        -- Quero casar com minha filha; ela é o retrato vivo de minha falecida esposa e, por outro lado, já me convenci de que jamais encontrarei alguém que se lhe assemelhe.

        Ouvindo isso, os conselheiros ficaram horrorizados e disseram:

        -- Deus proíbe que o pai case com a filha; do pecado não pode sair bem nenhum e também o reino sofrerá e será arrastado à ruína.

        A princesa quase desmaiou no ouvir o ignóbil desígnio do rei; lançou-se-lhe aos pés, esperando dissuadi-lo com seus rogos e lágrimas. Mas o rei estava firme no extravagante projeto e nada o podia abalar. Então a princesa disse-lhe:

        -- Antes de consentir no teu desejo, quero que me dês três vestidos: um de ouro como o sol, um de prata como a lua e um cintilante como as estreias; além disso, quero também um manto feito com peles de toda espécie de animais; cada animal de teu reino tem de fornecer um pedaço de pele.

        Assim dizendo, pensava: "É impossível realizar tal desejo, mas com isso desvio meu pai de seu horrível propósito."

        O rei, porém, não desanimou. Reuniu todas as moças mais hábeis do reino que tiveram de confeccionar os três vestidos: um de ouro como o sol, um de prata como a lua e um cintilante como as estrelas. Enquanto isso, os caçadores foram incumbidos de capturar todos os animais do reino e tirar um pedaço de pele de cada um, confeccionando-se assim um manto variegado.

        Finalmente, quando tudo ficou pronto, o rei mandou buscar o manto e exibiu-o à princesa, dizendo:

        -- Amanhã realizaremos as bodas.

        Ao ver que não lhe restava nenhuma esperança de comover o coração paterno, e mudar seus tristes pensamentos, a princesa resolveu fugir.

        Durante a noite, enquanto todos dormiam, ela preparou-se e apanhou três de seus objetos mais preciosos: um anel ricamente cinzelado, uma pequenina roca de ouro e um minúsculo fuso também de ouro. Meteu dentro de uma casca do noz os três vestidos, de sol, de lua e de estreias, envolveu-se no manto de peles de bicho e com fuligem pintou o rosto e as mãos. Depois recomendou-se piedosamente à proteção de Deus e saiu do palácio sem ser reconhecida.

        Andou a noite inteira e muito mais ainda, até que por fim chegou a uma floresta. Sentindo-se muito cansada, meteu-se na toca de uma árvore e adormeceu.

        Ao raiar do sol, ela ainda continuava dormindo a sono solto e assim foi até muito tarde. Justamente nesse dia, um rei, que era o proprietário da floresta, foi caçar; quando os cães chegaram àquela árvore, puseram-se a latir e a saltar de um lado e de outro. O rei disse aos seus caçadores:

        -- Ide ver que animal se esconde lá onde estão os cães.

        Os caçadores obedeceram e, após terem verificado o que havia, voltaram para junto do rei dizendo:

        -- Na cavidade daquela árvore há um estranho animal, como nunca vimos antes: sua pele é coberta de todas as espécies de pelo. Está lá deitado a dormir.

        -- Procurai capturá-lo vivo, amarrai-o bem ao meu carro para ser transportado conosco à cidade.

        Os caçadores foram e agarraram a jovem, que despertou aterrorizada e se pôs a gritar:

        -- Não me façais mal! Sou uma pobre criatura abandonada pelos pais; tende compaixão de mim, levai-me convosco!

        Os caçadores então disseram:

        -- Pele de bicho, tu serves bem para limpar a cozinha; vem conosco, teu serviço será varrer a cinza.

        Meteram-na no carro e regressaram ao castelo real. Lá, deram-lhe para habitação um tugúrio embaixo da escada, triste e escuro, onde nunca penetrava o mais tênue raio de sol.

        -- Pele de bicho, emaranhada e selvagem, passarás a dormir aqui.

        Com isso, mandaram que fosse para a cozinha, com o encargo de baldear água e lenha, acender o fogo, depenar os frangos, limpar a verdura, varrer a cinza, em suma, fazer o trabalho mais grosseiro e penoso.

        Assim, Pele de Bicho passou a viver de maneira mais obscura e miserável. Ah, linda princesa, o que te estará ainda reservado!

        Passou-se muito tempo e, certo dia, o castelo engalanou-se; iam realizar uma grande festa para a qual haviam convidado meio mundo. A pobre criatura, saudosa dos bons tempos passados, pediu ao cozinheiro-chefe:

        -- Posso subir até lá em cima? Ficarei do lado de fora a espiar um pouquinho.

        -- Está bem, – disse mestre-cuca, – mas, dentro de meia hora, deves estar aqui para varrer a cinza.

        Ela pegou na lanterninha, entrou no horrível tugúrio, despiu o manto de peles, lavou a fuligem que lhe cobria o rosto e as mãos e toda a sua esplendorosa beleza reapareceu. Então abriu a casca de noz e tirou dela o vestido cujo tecido parecia feito de raios de sol, vestiu-se e adornou-se; depois foi à festa e todos, ao vê-la, abriam alas, embasbacados ante tamanha beleza. Ninguém a conhecia, mas não duvidavam que fosse alguma princesa incógnita. O rei saiu ao seu encontro, estendeu-lhe a mão e só quis dançar com ela, pensando consigo mesmo: "Criatura tão linda, meus olhos ainda não viram."

        Terminada que foi a dança, ela inclinou-se num gesto de graça encantadora; quando o rei voltou a si da admiração, ela havia desaparecido não se sabe por onde. Chamaram os guardas do castelo e interrogaram-nos, mas todos responderam não ter visto ninguém.

        Ela correu rapidamente para o seu tugúrio e despiu a toda pressa o maravilhoso vestido, pintou o rosto e as mãos com fuligem e tornou a enfiar o manto de peles, voltando a ser a pobre Pele de Bicho. Quando entrou na cozinha para retomar seu trabalho, o cozinheiro disse-lhe:

        -- Deixa isso para amanhã; agora quero que prepares a sopa para o rei, pois também desejo dar uma espiadela lá em cima. Mas toma cuidado, não deixes cair nenhum fio de cabelo dentro, senão para o futuro nunca mais terás nada para comer.

        O cozinheiro saiu e Pele de Bicho preparou uma sopa de pão para o rei; esmerou-se por fazê-la a mais deliciosa possível e, quando ficou pronta, correu ao seu tugúrio e trouxe o anel de ouro, colocando-o na vasilha em que era servida a sopa.

        Findo o baile, o rei ordenou que lhe servissem a sopa. Comeu-a e gostou tanto que declarou nunca ter comido outra melhor.

        Quando, porém, chegou ao fundo do prato, viu o anel de ouro e não conseguiu compreender como viera parar aí. Mandou chamar o cozinheiro. Este, ao receber o recado, ficou preocupado e disse a Pele de Bicho:

        -- Deixaste, certamente, cair um cabelo dentro da sopa; se assim for, levarás o que mereces.

        Apresentou-se diante do rei, cheio de temor. O rei perguntou-lhe quem havia preparado a sopa. O cozinheiro, mais que depressa, respondeu:

        -- Fui eu, Majestade.

        Mas o rei retrucou:

        -- Não é verdade; a sopa estava diferente e muito melhor que de costume.

        O cozinheiro, então, foi obrigado a confessar:

        -- Realmente, Majestade, não fui eu, mas foi Pele de Bicho quem a fez.

        O rei ordenou:

        -- Vai chamar Pele de Bicho.

        Assim que ela compareceu perante o rei, este perguntou-lhe:

        -- Quem és tu?

        -- Sou uma pobre criatura que não tem mais pai nem mãe, – respondeu ela.

        -- E que fazes no meu castelo? – prosseguiu o rei.

        -- Eu não sirvo para coisa alguma, – disse ela, – a não ser para que me atirem os sapatos na cabeça.

        O rei tornou a perguntar:

        -- Quem te deu aquele lindo anel que estava dentro da sopa?

        -- Não sei de que anel se trata, – respondeu ela.

        Por conseguinte, o rei nada pôde descobrir e mandou-a de volta para a cozinha.

        Passado algum tempo, realizou-se no castelo uma outra festa e Pele de Bicho tornou a pedir ao cozinheiro que lhe permitisse dar uma espiada. Ele respondeu:

        -- Podes ir, mas deves voltar dentro de meia hora e fazer aquela sopa de pão que tanto agrada ao rei.

        Pele de Bicho correu ao seu tugúrio, limpou-se e lavou-se cuidadosamente, tirou da noz o lindo vestido prateado como o luar e vestiu-se, adornando-se como da outra vez. Depois subiu as escadarias com o andar esbelto e gracioso de verdadeira princesa.

        O rei saiu-lhe ao encontro, cheio de alegria por tornar a vê-la.

        Também dessa vez, não quis dançar com nenhuma outra dama, só com ela. Mas, assim que acabou a contradança, ela sumiu tão rapidamente, que o rei não conseguiu ver por onde saiu.

        Ela correu para o seu tugúrio e, em breve, voltou a ser o animal peludo de sempre, depois correu à cozinha a fim de preparar a sopa para o rei. Enquanto o cozinheiro estava lá em cima espiando a festa, ela foi buscar a pequenina roca de ouro e meteu-a dentro da vasilha da sopa.

        Mais tarde um pouco, levaram a sopa ao rei que, como da primeira vez, comeu-a com grande satisfação, mandando depois chamar o cozinheiro. Este teve novamente de confessar ter sido preparada por Pele de Bicho, a qual, mais uma vez chamada, teve que comparecer à presença do rei e responder às suas perguntas. Respondeu como da outra vez: que só servia para que lhe atirassem os sapatos na cabeça, e que ignorava completamente, tudo da roca de ouro encontrada na sopa.

        Tudo parecia esquecido e Pele de Bicho continuava os tristes afazeres na cozinha. Eis que, um belo dia, o rei organizou outra festa, talvez com saudade da bela desconhecida. E tudo se processou como das vezes anteriores. O cozinheiro, porém, disse:

        -- Pele de Bicho, tu deves ser uma bruxa; sempre encontras meio de pôr qualquer coisa na sopa, e te sai tão boa que agrada ao rei mais do que a feita por mim.

        A jovem implorou ao cozinheiro que a deixasse ir ver a festa; demorar-se-ia apenas o tempo estabelecido. O severo mestre-cuca não pôde recusar-lhe o que pedia, e ela correu ao seu tugúrio, lavou-se, penteou-se e envergou o vestido cintilante como as estrelas; depois dirigiu-se ao salão de festas. O rei, fascinado, também desta vez, só quis dançar com ela, achando que ainda estava mais bela.

        Enquanto dançavam, sem que ela o percebesse, enfiou-lhe um anel no dedo. Havia previamente ordenado que a contradança demorasse um pouco mais. Acabando de dançar, tentou prendê-la, segurando-lhe a mão, mas ela desvencilhou-se e fugiu tão rapidamente, que ele não pôde ver por onde saiu.

        Pele de Bicho correu para o seu tugúrio; mas como se havia demorado mais que o tempo previsto, não pôde despir o lindo vestido; então cobriu-o com o manto de peles; estava tão apressada que, ao tingir-se com a fuligem, esqueceu um dedo, que ficou branquinho. Correu para a cozinha, preparou a sopa do rei e antes que fosse servida, deitou dentro da vasilha o minúsculo fuso de ouro.

        O rei, ao encontrar o fuso, mandou chamar Pele de Bicho. Ela apresentou-se como sempre, mas não reparou no dedinho que ficara branco; o rei, porém, viu-o e viu também o anel que enfiara nele durante a dança. Então agarrou-lhe a mão e segurou-a firmemente; quando ela tentou desvencilhar-se para fugir, o horrível manto de peles abriu-se um pouco, mostrando uma nesga do vestido cintilante. O rei, com um gesto rápido, arrancou-lhe o manto e, no mesmo instante, rolaram como uma cascata seus cabelos de ouro e ela surgiu magnífica, em todo o esplendor, que já não podia mais ocultar.

        Então lavou a fuligem que lhe cobria o rosto e as mãos e apareceu tal qual era: a criatura mais linda que jamais se vira no mundo. O rei, comovido, disse-lhe:

        -- Serás a minha esposa muito amada; nunca mais nos separaremos.

        Ela aceitou e depois de alguns dias realizaram-se as núpcias. Eram ambos tão felizes que viveram tanto, tanto tempo, até à morte.

Irmãos Grimm.

Entendendo o conto:

01 – Quem era a rainha no início do conto?

      A rainha no início do conto era a esposa do rei, que tinha cabelos dourados e era extremamente bela.

02 – O que a rainha pediu ao rei antes de sua morte?

      A rainha pediu ao rei que, após sua morte, ele se casasse apenas com uma mulher que fosse tão formosa quanto ela, com cabelos dourados como os dela, e que fizesse essa promessa para que ela pudesse morrer em paz.

03 – Por que o rei relutou em se casar novamente após a morte da rainha?

      O rei relutou em se casar novamente porque queria cumprir a promessa feita à sua falecida esposa de encontrar uma mulher tão bela quanto ela, o que ele acreditava ser impossível.

04 – Como a princesa tentou evitar que seu pai cumprisse sua intenção de se casar com ela?

      A princesa pediu ao rei três vestidos (um de ouro, um de prata e um cintilante), bem como um manto feito de peles de animais de todo o reino, acreditando que esses pedidos seriam impossíveis de serem atendidos.

05 – Como o rei conseguiu atender aos pedidos da princesa?

      O rei reuniu as mulheres mais habilidosas do reino para confeccionar os vestidos, e os caçadores capturaram e coletaram peles de animais para fazer o manto.

06 – Como a princesa tentou fugir do rei quando ele expressou o desejo de se casar com ela?

      A princesa tentou fugir durante a noite, preparando-se e saindo do palácio sem ser reconhecida.

07 – O que aconteceu quando a princesa entrou na floresta após fugir do palácio?

      Na floresta, a princesa se refugiou em uma árvore oca e adormeceu.

08 – Como o rei a encontrou na floresta?

      O rei, que era proprietário da floresta, foi caçar e os cães latiram e saltaram ao redor da árvore onde a princesa estava escondida, levando o rei a descobri-la.

09 – Como a princesa foi tratada depois de ser capturada pelo rei?

      Ela foi tratada como "Pele de Bicho", forçada a viver em um tugúrio escuro e a realizar tarefas árduas na cozinha do castelo.

10 – Como a verdadeira identidade da princesa foi finalmente revelada?

      A verdadeira identidade da princesa foi revelada quando, durante uma festa no castelo, o rei a reconheceu como a misteriosa dama que dançou com ele. Ele a segurou pelo dedo, notando o anel que ele havia colocado nela durante a dança, e quando ela não conseguiu mais esconder sua verdadeira aparência, seu disfarce se desfez e sua beleza foi revelada.

 

 

CONTO: O TOURO E O HOMEM - LUÍS DA CÂMARA CASCUDO - COM GABARITO

Conto: O touro e o homem

           Luís da Câmara Cascudo

        Um touro, que vivia nas montanhas, nunca tinha visto o homem. Mas sempre ouvia dizer por todos os animais que era ele o animal mais valente do mundo. Tanto ouviu dizer isto que, um dia, se resolveu a ir procurar o homem para saber se tal dito era verdadeiro.

 Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgPA97t1gf7lboSGTA9AWL8dqAUkd5Zs0BW_4yFJqKtHcMXgYzvMVlIuD8oQSl_-Cc8F3g-_X772MUhePtIczPGZsPTBE3dcdJO9Q7g4fUZrpRT96U1BswS11s-f3foJyfSPLgBCRCWMWhP2B2gJEX99x7hDJLHIbQM_Lu030ouSKPkslpoIJBgdjHCNKM/s320/TOURO.jpeg


        Saiu das brenhas, e, ganhando uma estrada, seguiu por ela. Adiante encontrou um velho que caminhava apoiado a um bastão.

        Dirigindo-se a ele perguntou-lhe:

        — Você é o bicho homem?

        — Não! — respondeu-lhe o velho — já fui, mas não sou mais!

        O touro seguiu e adiante e encontrou uma velha:

        — Você é o bicho homem?

        — Não! — Sou a mãe do bicho homem!

        Adiante encontrou um menino:

        — Você é o bicho homem?

        — Não! — Ainda hei de ser; sou o filho do bicho homem.

        Adiante encontrou o bicho homem que vinha com um bacamarte no ombro.

        — Você é o bicho homem?

        — Está falando com ele!

        — Estou cansado de ouvir dizer que o bicho homem é o mais valente do mundo, e vim procurá-lo para saber se ele é mais do que eu!

        — Então, lá vai! — disse o homem armando o bacamarte, e disparando-lhe um tiro nas ventas.

        O touro desesperado de dor, meteu-se no mato e correu até sua casa, onde passou muito tempo se tratando do ferimento.

        Depois, estando ele numa reunião de animais, um lhe perguntou:

        — Então, camarada touro, encontrou o bicho homem?

        — Ah! meu amigo, só com um espirro que ele me deu na cara, olhe o estado em que fiquei!

Fonte: Contos Tradicionais do Brasil (folclore) de Luís da Câmara Cascudo, Rio de Janeiro, Ediouro:1967. pp 289-90.

Entendendo o conto:

01 – Por que o touro decidiu procurar o homem?

      O touro decidiu procurar o homem porque havia ouvido dizer que o homem era o animal mais valente do mundo e queria verificar se isso era verdade.

02 – Quem o touro encontrou primeiro em sua busca pelo homem?

      O touro encontrou primeiro um velho enquanto procurava o homem.

03 – Qual foi a reação do velho quando o touro perguntou se ele era o bicho homem?

      O velho respondeu que já tinha sido o bicho homem, mas não o era mais.

04 – Quem finalmente se revelou como o bicho homem na história?

      O homem que estava carregando um bacamarte no ombro se revelou como o bicho homem na história.

05 – Qual foi o resultado do encontro do touro com o bicho homem?

      O bicho homem disparou um tiro no touro, causando-lhe grande dor, e o touro fugiu desesperado para sua casa para se tratar do ferimento.

 

 

 

  

CONTO: O CARA DE PAU - LUÍS DA CÂMARA CASCUDO - COM GABARITO

 Conto: O Cara de Pau

           Luís da Câmara Cascudo

        Um rei tinha uma filha tão formosa que, ficando viúvo, quis casar-se com ela. A moça era afilhada de Nossa Senhora e ficou horrorizada com o pensamento do pai, mas esse ameaçou-a de morte se não o recebesse por marido. Não sabendo o que fazer, a moça rezou muito a Nossa Senhora pedindo seu auxílio e ouviu umas vozes dizendo:

        — Pede um vestido cor do campo com suas flores!

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgbQBsWxrgm-lEqViqdkFYBeat-VDX-no2zlsvwtsIHU7lVleWEx6UE3zeD_ZL_8HAFAdlM3zqW68pNJMiqn8Hoz1m649mN4nQKfG2uGoKoKqRQ6Y1Nsye-Kc29voMRiPegQA47BdjbYAo3oRBxAiA2GA_Bm1fFpUN71WLgc0VmaknKmNfkw6AdAIyec20/s320/campo.jpg


        A menina pediu o vestido e o pai mandou fazer e o trouxe feito, tão bonito que era uma maravilha. Outra vez foi a menina chorar e as vozes disseram:

        — Pede um vestido da cor do mar com todos os peixes.

        Feito o pedido, o rei juntou todos os artistas e conseguiu o vestido como era desejado. Novamente a menina correu aos pés de Nossa Senhora e as vozes ensinaram:

        — Pede um “vestido cor do céu com suas estrelas, o sol e a lua”.

        A menina pediu o vestido e o rei, querendo casar com ela, mandou que se fizesse sob pena de morte. O vestido ficou lindo e a princesa chorou muito lembrando-se de que seu pai havia de querer o cumprimento de sua promessa. As vozes voltaram a dizer-lhe:

        — Junta tudo quanto for teu e foge do palácio. Para que ninguém saiba quem és, nunca deverás rir nem achar graça em cousa alguma.

        A moça guardou os vestidos numa maleta e fugiu do palácio, indo pelas estradas o mais longe que lhe foi possível. Andou muito e chegou a uma cidade onde procurou trabalho para viver e só encontrou lugar no palácio do rei como ajudante na cozinha. Aceitou e ficou com as tarefas mais pesadas e humildes da casa. Como vivia sempre sisuda e não achava graça em cousa alguma, chamavam-na Cara de Pau.

        Uma vez o rei preparou festas para os amigos e as moças todas da cidade deviam comparecer aos bailes que durariam três dias consecutivos.

        Quando do primeiro baile, todos foram olhar a festa das salas, e Cara de Pau ficou na cozinha, lavando as panelas. Vendo-se sozinha, correu ao seu quarto e vestiu-se com o vestido da cor do campo com suas flores, e compareceu ao salão, causando admiração a todos. O príncipe veio falar-lhe, prestando muita atenção e convidou-a a dançar com ele várias vezes.

        Antes que o baile terminasse, Cara de Pau abandonou o salão e fugiu para seu quarto onde voltou a vestir as roupas remendadas de criada.

        As criadas e cozinheiras conversaram sobre a moça da noite anterior e Cara de Pau não dava mostras de entender o que diziam. Na noite segunda fez o mesmo e o vestido cor do mar com todos os seus peixes causou admiração ainda maior.

        O príncipe, desde que a viu entrar, não mais a deixou, conversando com ela e dançando, a perguntar seu nome, de onde era, etc. A moça respondia por meias palavras e o príncipe estava verdadeiramente apaixonado por ela. Com habilidade conseguiu fugir antes do baile acabar e tornou às roupas feias com que servia na cozinha.

        Na última noite Cara de Pau foi a rainha da festa, com seu vestido cor do céu, com suas estrelas, o sol e a lua, dançando bem e agradando a todas. O príncipe, enamorado, deu-lhe um anel, pedindo-lhe a mão em casamento. Cara de Pau disse que ia pensar, esperando que o príncipe provasse que a amava deveras. Ainda uma vez pôde fugir sem ser apanhada.

        O príncipe procurou Cara de Pau por todos os recantos e casas da cidade, mandando escrever para outros reinos e ninguém dava notícias. De paixão, adoeceu e não queria comer. Ia enfraquecendo e os pais ficaram tristes porque não havia médico que acertasse em curar o príncipe. A rainha pensou em mandar fazer iguarias por todas as criadas da casa, uma de cada vez, para ver se o filho comia alguma cousa. Fizeram todas as criadas bolos e rebuçados mas o rapaz ia provando e recusava servir-se. Cara de Pau ofereceu-se para fazer um bolo e a cozinheira ficou zangada com o atrevimento: Pois logo você, uma suja e porcaIhona, ir fazer bolos para o príncipe?

        A rainha velha, então, disse que Cara de Pau fizesse um bolo como as outras tinham feito. Cara de Pau fez o bolo com cuidado e meteu dentro da massa o anel que o príncipe lhe havia dado. Cozido o bolo e mandado para a mesa do príncipe este apenas o olhou, mas a rainha tanto pedia que ele provasse que o rapaz cortou uma fatia e levou-a à boca. Logo sentiu um duro, e verificando reconheceu o anel que dera à moça dos três bailes. Ficou logo melhor de saúde, perguntando quem fizera o bolo e que viesse imediatamente à sua presença. A rainha mandou chamar criada que fizera o doce e quando chegou Cara de Pau ao quarto, tirou o vestido sujo e apresentou-se com um dos vestidos da festa. O príncipe beijou-lhe a mão e apresentou-a a todos como sua noiva. Casaram-se e viveram muito felizes.

                      Fonte: Os melhores contos Populares de Portugal. Org. de Câmara Cascudo. Dois Mundos Editora.

Entendendo o conto:

01 – Qual era o desejo do rei em relação à sua filha no início do conto?

      O rei desejava casar-se com sua própria filha.

02 – Como a filha do rei conseguiu escapar dessa situação?

      Ela recebeu orientações de Nossa Senhora para pedir vestidos especiais e depois fugir do palácio.

03 – Por que a filha do rei recebeu o apelido "Cara de Pau"?

      Ela recebeu esse apelido por nunca rir ou demonstrar alegria em nada.

04 – O que aconteceu quando "Cara de Pau" compareceu ao primeiro baile usando o vestido da cor do campo?

      Ela chamou a atenção do príncipe e dançou com ele várias vezes.

05 – Como "Cara de Pau" conseguiu fugir do baile sem ser notada na primeira noite?

      Ela deixou o baile antes do final e voltou às roupas de criada.

06 – O que o príncipe deu a "Cara de Pau" durante o segundo baile?

      O príncipe deu um anel a "Cara de Pau" durante o segundo baile.

07 – O que o príncipe fez quando não conseguiu encontrar "Cara de Pau" após os bailes?

      Ele procurou por ela em toda a cidade e em outros reinos.

08 – O que Cara de Pau fez para curar o príncipe quando ele estava doente?

      Ela fez um bolo especial e colocou o anel que o príncipe lhe deu dentro do bolo.

09 – Qual foi a reação do príncipe quando reconheceu o anel no bolo feito por "Cara de Pau"?

      Ele ficou melhor de saúde e pediu para que a criada que fez o bolo fosse trazida até ele.

10 – Como o conto "O Cara de Pau" termina?

      O príncipe beija a mão de "Cara de Pau", a apresenta como sua noiva e eles se casam, vivendo felizes.

 

 

 

CONTO: A MÚSICA DOS CHIFRES OCOS E PERFURADOS - LUÍS DA CÂMARA CASCUDO - COM GABARITO

 Conto: A MÚSICA DOS CHIFRES OCOS E PERFURADOS.

           Luís da Câmara Cascudo

        Na capoeira de Mamanguape pasta uma notável população de veados. Vivem soltos e perseguidos pelos caçadores impenitentes. Muitos vão dar na praia enlouquecidos pela perseguição. Ficam bêbedos de cansaço e desespero. Nestas circunstâncias não é difícil ser abatido pelos pescadores, que gostam muito de carne. O peixe é prato de todos os dias. Vez por outra não faz mal uma variação de alimento. E assim a espécie dos galhudos vai rareando.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgbiHc9PTXqvuSF-9YB_x6ptSkUcArWwX85lmPHMvhmpMB3K4iOhKgPpq6WcTztArYeYz3L6G2LVoUQsa8dkm-JfgNJ9_mevz1p0M-klx3DM-YcHVx3-UOmzh4SmIIqKsBDZz0sFRsJnA4FBM3PerYC5KEsOqIqsE-0z4T0FZ7_B27lq59PIxLmq89kHSE/s320/MAMANGUAPE.jpg


        Entretanto, a maioria dos caçadores não lhe comem a carne e até a abandona em pleno mato. Tirado o couro, gostam é de chegar com o troféu, exibindo-o só pelo prazer de ostentá-lo, e mais nada. A caça verifica-se em certos dias. Não se faz assim de repente apenas pela alegria da aventura. Veado nem sem sempre pode ser pegado pelos cachorros e pelas balas da espingarda.

        O motivo da escolha cuidadosa da ocasião de persegui-lo vem de um fato bem notório que toda gente entendida no negócio proclama como absolutamente verdadeiro. Existem nas capoeiras alguns veados chefes de bando que costumam reunir o seu povo para um remoer mais demorado na tranquilidade. A convocação é feita por intermédio de uma harmonia de música que toca a todos os corações. Ninguém poderá ouvi-la sem ficar inteiramente dominado e vencido nos seus propósitos inferiores.

        A beleza tem disso: amolece as energias empregadas no sentido do mal. E como caçar não deixa de ser uma impiedade, fica adiada a perseguição, fica para outro dia, pois o caçador foi posto à margem, é supersticioso e não ama contrariar as forças da natureza quando elas se manifestam tão maravilhosamente.

        A demonstração de uma intensa melodia (notas estranhas e deliciosas já bem conhecidas do homem que corre as matas de arma ao ombro e sacola de balas a tiracolo) vem como sinal de advertência generosa. Quem transgredir a norma histórica terá de arcar com as consequências nem sempre agradáveis. As surpresas então se tornarão constantes e prejudiciais. E não há necessidade de enfrenta-las assim de caso pensado. O melhor é aguardar outra vez. Fica para amanhã. Fica para depois. Em qualquer tempo é tempo para o prazer da perseguição. Aquela música divina não é ouvida com frequência, é mesmo coisa um tanto rara nas sextas-feiras, nos sábados e nos domingos. Nos outros dias da semana, a caça não se faz de preferência por causa do trabalho de campo e outras obrigações de ganha-pão a que o homem ordinariamente se acha sujeito. Portanto, não convém ir de encontro às determinações dos deuses ocultos que dirigem os movimentos na floresta ou nos tabuleiros.

        Rebanhos enormes se reúnem em torno dos chamados “galhudos”. Estes no meio como que dirigindo a sessão. Em torno se encontra a veadaria deitada em remansoso descanso. Os mateiros mais afeitos se arrastam cautelosamente até lá com o fim de apreciar o concerto incomparável. Impõe-se muito cuidado para evitar o menor barulho. Qualquer atrito de folha seca é razão para que os ouvidos fiquem atentos. Ficam à escuta para uma arrancada louca de precipitação. Mas quando acontece tal curiosidade é porque prevaleceu o enfeitiçamento do caçador arrastado pelos encantos de uma música que tem qualquer coisa de sortilégio. Não tem preocupações de fazer mal. Chega mesmo a abandonar as armas para melhor facilitar a aproximação sutil nos seus movimentos de caçador.

        Os veados velhos mostram vinte e três chifres ocos e perfurados como flauta. O vento sopra com uma suavidade de nordeste. E faz arrancar dos chifres os sons mais sentidos de uma orquestra completa que toca para amenizar a vida perseguida-e mesmo infeliz de uma raça que entre os animais da região faz as vezes do judeu escorraçado pela inveja dos que não possuem predicados de inteligência e habilidade. A reunião prossegue pela noite adentro. Não é difícil apurar o ouvido e sentir na madrugada fria dos tabuleiros as melodias mais belas que o vento arranca dos vinte e três chifres ocos e perfurados como flauta.

        Depois vem a dispersão. Cada qual para o seu canto. E que trate de livrar-se da sanha criminosa dos seus perseguidores. O fim da semana é para se viver debaixo de toda cautela. Muito cuidado.
Ainda assim é quando o caçador consegue livremente exercer a sua diversão extravagante e injusta. Sai para matar sem levar na alma a menor sombra de preocupação com os imprevistos maus que lhe possam acontecer.

Relato popular recontado pelos professores Ademar Vidal e Luís da Câmara Cascudo.

Entendendo o conto:

01 – Qual é o cenário principal do conto?

      O cenário principal do conto é a capoeira de Mamanguape, onde vive uma população notável de veados.

02 – Qual é o dilema enfrentado pelos veados na capoeira de Mamanguape?

      Os veados são perseguidos pelos caçadores, o que os leva a viver constantemente em risco de serem abatidos.

03 – Qual é o motivo que leva os caçadores a escolher cuidadosamente a ocasião para perseguir os veados?

      Os caçadores esperam por uma melodia especial que é tocada pelos veados chefes de bando como sinal de convocação. Esta música os impede de caçar, pois é considerada divina e hipnotizante.

04 – Como os veados se reúnem em torno dos "galhudos" quando a música é tocada?

      Os veados se reúnem em grandes grupos em torno dos veados chefes de bando, que parecem dirigir a sessão enquanto o resto da veadaria descansa.

05 – O que acontece quando um caçador é enfeitiçado pela música dos veados?

      O caçador se deixa levar pelo encanto da música e, às vezes, até abandona suas armas para se aproximar furtivamente dos veados.

06 – Qual é a peculiaridade dos chifres dos veados velhos?

      Os chifres dos veados velhos têm vinte e três buracos ocos e perfurados, e quando o vento sopra, eles produzem sons que se assemelham a uma orquestra tocando melodias para acalmar a vida dos veados perseguidos.

07 – O que acontece depois da reunião dos veados em torno dos "galhudos"?

      Após a reunião, os veados se dispersam e cada um vai para o seu canto, tentando evitar a perseguição dos caçadores. O final de semana é um período de particular cautela.

 

CONTO: BEM SE PAGA COM O BEM - LUÍS DA CÂMARA CASCUDO - COM GABARITO

 Conto: BEM SE PAGA COM O BEM

           Luís da Câmara Cascudo

        A onça caiu numa armadilha preparada pelos caçadores e, por mais que tentasse escapar, ficou prisioneira. Resignara-se a morrer, quando viu passar um homem. Chamou-o e lhe pediu que a libertasse.

        -- Deus me livre! – disse o transeunte. – Se você ficar solta, vai me devorar.

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        A onça jurou que seria eternamente agradecida, e o homem desatou as cordas que seguravam a tampa do alçapão e ajudou a onça a deixar a cova. Logo que esta se encontrou livre, agarrou seu salvador por um braço dizendo:

        -- Agora você é meu jantar.

        Debalde o homem pediu e rogou. A onça, finalmente, decidiu:

        -- Vamos combinar uma coisa. Ouvirei a sentença de três animais. Se a maioria for favorável ao meu desejo, eu o como.

        O homem aceitou e saíram os dois. Encontraram um cavalo, velho, doente, abandonado. A onça narrou o caso. O cavalo disse:

        -- Quando eu era moço e forte, trabalhei e ajudei o homem a enriquecer. Qual foi o meu pagamento? Largaram-se aqui para morrer, sem um auxílio. O bem só se paga com o mal.

        Adiante depararam-se com um boi. Consultado, opinou pela razão da onça. Contou sua vida de serviços ao homem e, quando julgava que ia ser recompensado, soube que fora vendido para ser morto e retalhado pelo açougueiro. O bem só se paga com o mal.

        O homem, triste, acompanhava a onça que lambia o beiço, quando viram o macaco. Chamaram o macaco e pediram seu parecer. O macaco começou a rir. E saltava, fazendo caretas e rindo. A onça ia-se zangando:

        -- Por que tanta risada, camarada macaco?

        -- Não é fazendo pouco – explicou o macaco –, é que eu não acredito que o homem caísse na armadilha que ele mesmo preparou.

        -- Ele não caiu. Quem caiu fui eu – contava a onça.

        -- Foi você? Então como é que esse homem fraquinho pôde libertar um bicho tão grande e forte como a camarada onça?

        A onça, despeitada pelo macaco julgá-la mentirosa, foi até o alçapão e saltou para o fundo do fosso, gritando lá de baixo:

        -- Está vendo? Foi assim!

        Mais que depressa o macaco empurrou o engradado de varas pesadas que fazia de tampa e a onça tornou a ficar prisioneira.

        -- Camarada onça – sentenciou o macaco – o bem só se paga com o bem. E você fez o mal, receba o mal.

        E se foi embora com o homem, deixando a onça na armadilha.

          CASCUDO, Luís da Câmara. Contos Tradicionais do Brasil. São Paulo: Global Editora, 2003. p. 12 – 16.

Entendendo o conto:

01 – Qual foi a situação inicial da onça no conto?

      A onça caiu em uma armadilha preparada por caçadores e estava prisioneira.

02 – O que a onça pediu a um homem que a encontrou presa na armadilha?

      A onça pediu ao homem que a libertasse da armadilha.

03 – Qual foi a reação do homem ao pedido da onça?

      O homem inicialmente recusou a soltar a onça, com medo de ser devorado por ela.

04 – Como a onça convenceu o homem a libertá-la?

      A onça prometeu ser eternamente agradecida e concordou em ouvir a sentença de três animais antes de decidir o destino do homem.

05 – O que os três animais consultados pela onça disseram sobre o destino do homem?

      Tanto o cavalo quanto o boi disseram que o bem só se paga com o mal, defendendo a ideia de que o homem merecia ser devorado. No entanto, o macaco duvidou da história da onça e a enganou, resultando na reclusão da onça na armadilha.

06 – Qual foi a reviravolta final no conto?

      O macaco enganou a onça, fazendo-a voltar para a armadilha, e explicou que o bem só se paga com o bem. O homem foi embora com o macaco, deixando a onça prisioneira novamente.

07 – Qual é a lição moral ou mensagem que o conto transmite?

      O conto transmite a mensagem de que o bem deve ser retribuído com o bem, e que tentar enganar os outros pode resultar em consequências negativas. É uma história que enfatiza a importância da honestidade e da reciprocidade.

 

 

 

CONTO: A DESEJADA DAS GENTES - MACHADO DE ASSIS - COM GABARITO

 Conto: A Desejada das Gentes

            Machado de Assis

        — Ah! Conselheiro, aí começa a falar em verso.

        — Todos os homens devem ter uma lira no coração, — ou não sejam homens. Que a lira ressoe a toda a hora, nem por qualquer motivo, não o digo eu, mas de longe em longe, e por algumas reminiscências particulares... Sabe por que é que lhe pareço poeta, apesar das Ordenações do Reino e dos cabelos grisalhos? é porque vamos por esta Glória adiante, costeando aqui a Secretaria de Estrangeiros... Lá está o outeiro célebre... Adiante há uma casa.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhU5wvzVJbDV-Uf80sWlGtqZZXT8fiqnJy_Pmu4ya6_uUndB7H5cXwLX2pLJXoiZdyDoG7IREs0RNUtSmUa-U5JYCnMV6n4NUOGaufehyEsMqO40YUrveA7wbF8c4yhvKigkNjho28MrJF45YhNO1vVzbZOwQ9NCiEFEaT5CPmp5Vm-rY3IfqcC2KJXxbI/s1600/DESEJADA.jpg


        — Vamos andando.

        — Vamos... Divina Quintília! Todas essas caras que aí passam são outras, mas falam-me daquele tempo, como se fossem as mesmas de outrora; é a lira que ressoa, e a imaginação faz o resto. Divina Quintília!

        — Chamava-se Quintília? Conheci de vista, quando andava na Escola de Medicina, uma linda moça com esse nome. Diziam que era a mais bela da cidade.

        — Há de ser a mesma, porque tinha essa fama. Magra e alta?

        — Isso. Que fim levou?

        — Morreu em 1859. Vinte de abril. Nunca me há de esquecer esse dia. Vou contar-lhe um caso interessante para mim, e creio que também para o senhor. Olhe, a casa era aquela... Morava com um tio, chefe de esquadra reformado, tinha outra casa no Cosme Velho. Quando conheci Quintília... Que idade pensa que teria, quando a conheci?

        — Se foi em 1855...

        — Em 1855.

        — Devia ter vinte anos.

        — Tinha trinta.

        — Trinta?

        — Trinta anos. Não os parecia, nem era nenhuma inimiga que lhe dava essa idade. Ela própria a confessava e até com afetação. Ao contrário, uma de suas amigas afirmava que Quintília não passava dos vinte e sete; mas como ambas tinham nascido no mesmo dia, dizia isso para diminuir-se a si própria.

        — Mau, nada de ironias; olhe que a ironia não faz boa cama com a saudade.

        — Que é a saudade senão uma ironia do tempo e da fortuna? Veja lá; começo a ficar sentencioso. Trinta anos; mas em verdade, não os parecia. Lembra-se bem que era magra e alta; tinha os olhos como eu então dizia, que pareciam cortados da capa da última noite, mas apesar de noturnos, sem mistérios nem abismos. A voz era brandíssima, um tanto apaulistada, a boca larga, e os dentes, quando ela simplesmente falava, davam-lhe à boca um ar de riso. Ria também, e foram os risos dela, de parceria com os olhos, que me doeram muito durante certo tempo.

        — Mas se os olhos não tinham mistérios...

        — Tanto não os tinham que cheguei ao ponto de supor que eram as portas abertas do castelo, e o riso o clarim que chamava os cavaleiros. Já a conhecíamos, eu e o meu companheiro de escritório, o João Nóbrega, ambos principiantes na advocacia, e íntimos como ninguém mais; mas nunca nos lembrou namorá-la. Ela andava então no galarim; era bela, rica, elegante, e da primeira roda. Mas um dia, no antigo Teatro Provisório entre dois atos dos Puritanos, estando eu num corredor, ouvi um grupo de moços que falavam dela, como de uma fortaleza inexpugnável. Dois confessaram haver tentado alguma cousa, mas sem fruto; e todos pasmavam do celibato da moça que lhes parecia sem explicação. E chalaceavam: um dizia que era promessa até ver se engordava primeiro; outro que estava esperando a segunda mocidade do tio para casar com ele; outro que provavelmente encomendara algum anjo ao porteiro do céu; trivialidades que me aborreceram muito, e da parte dos que confessavam tê-la cortejado ou amado, achei que era uma grosseria sem nome. No que eles estavam todos de acordo é que ela era extraordinariamente bela; aí foram entusiastas e sinceros.

        — Oh! ainda me lembro!... era muito bonita.

        — No dia seguinte, ao chegar ao escritório, entre duas causas que não vinham, contei ao Nóbrega a conversação da véspera. Nóbrega riu-se do caso, refletiu, e depois de dar alguns passos, parou diante de mim, olhando, calado. — Aposto que a namoras? perguntei-lhe. — Não, disse ele; nem tu? Pois lembrou-me uma cousa: vamos tentar o assalto à fortaleza? Que perdemos com isso? Nada, ou ela nos põe na rua, e já podemos esperá-lo, ou aceita um de nós, e tanto melhor para o outro que verá o seu amigo feliz. — Estás falando sério? — Muito sério. — Nóbrega acrescentou que não era só a beleza dela que a fazia atraente. Note que ele tinha a presunção de ser espírito prático, mas era principalmente um sonhador que vivia lendo e construindo aparelhos sociais e políticos. Segundo ele, os tais rapazes do teatro evitavam falar dos bens da moça, que eram um dos feitiços dela, e uma das causas prováveis da desconsolação de uns e dos sarcasmos de todos. E dizia-me: — Escuta, nem divinizar o dinheiro, nem também bani-lo; não vamos crer que ele dá tudo, mas reconheçamos que dá alguma cousa e até muita cousa, — este relógio, por exemplo. Combatamos pela nossa Quintília, minha ou tua, mas provavelmente minha, porque sou mais bonito que tu.

        — Conselheiro, a confissão é grave, foi assim brincando...?

        — Foi assim brincando, cheirando ainda aos bancos da academia, que nos metemos em negócio de tanta ponderação, que podia acabar em nada, mas deu muito de si. Era um começo estouvado, quase um passatempo de crianças, sem a nota da sinceridade; mas o homem põe e a espécie dispõe. Conhecíamo-la, posto não tivéssemos encontros frequentes; uma vez que nos dispusemos a uma ação comum, entrou um elemento novo na nossa vida, e dentro de um mês estávamos brigados.

        — Brigados?

        — Ou quase. Não tínhamos contado com ela, que nos enfeitiçou a ambos, violentamente. Em algumas semanas já pouco falávamos de Quintília, e com indiferença; tratávamos de enganar um ao outro e dissimular o que sentíamos. Foi assim que as nossas relações se dissolveram, no fim de seis meses, sem ódio, nem luta, nem demonstração externa, porque ainda nos falávamos, onde o acaso nos reunia; mas já então tínhamos banca separada.

        — Começo a ver uma pontinha do drama...

        — Tragédia, diga tragédia; porque daí a pouco tempo, ou por desengano verbal que ela lhe desse, ou por desespero de vencer, Nóbrega deixou-me só em campo. Arranjou uma nomeação de juiz municipal lá para os sertões da Bahia, onde definhou e morreu antes de acabar o quatriênio. E juro-lhe que não foi o inculcado espírito prático de Nóbrega que o separou de mim; ele, que tanto falara das vantagens do dinheiro, morreu apaixonado como um simples Werther.

        — Menos a pistola.

        —Também o veneno mata; e o amor de Quintília podia dizer-se alguma cousa parecido com isso, foi o que o matou, e o que ainda hoje me dói... Mas, vejo pelo seu dito que o estou aborrecendo...

        — Pelo amor de Deus. Juro-lhe que não; foi uma graçola que me escapou. Vamos adiante, conselheiro; ficou só em campo.

        — Quintília não deixava ninguém estar só em campo, — não digo por ela, mas pelos outros. Muitos vinham ali tomar um cálix de esperanças, e iam cear a outra parte. Ela não favorecia a um mais que a outro, mas era lhana, graciosa e tinha essa espécie de olhos derramados que não foram feitos para homens ciumentos. Tive ciúmes amargos e, às vezes, terríveis. Todo argueiro me parecia um cavaleiro, e todo cavaleiro um diabo. Afinal acostumei-me a ver que eram passageiros de um dia. Outros me metiam mais medo, eram os que vinham dentro da luva das amigas. Creio que houve duas ou três negociações dessas, mas sem resultado. Quintília declarou que nada faria sem consultar o tio, e o tio aconselhou a recusa, — cousa que ela sabia de antemão. O bom velho não gostava nunca da visita de homens, com receio de que a sobrinha escolhesse algum e casasse. Estava tão acostumado a trazê-la ao pé de si, como uma muleta da velha alma aleijada, que temia perdê-la inteiramente.

        — Não seria essa a causa da isenção sistemática da moça?

        — Vai ver que não.

        — O que noto é que o senhor era mais teimoso que os outros...

        — ... Iludido, a princípio, porque no meio de tantas candidaturas malogradas, Quintília preferia-me a todos os outros homens, e conversava comigo mais largamente e mais intimamente, a tal ponto que chegou a correr que nos casávamos.

        — Mas conversavam de quê?

        — De tudo o que ela não conversava com os outros; e era de fazer pasmar que uma pessoa tão amiga de bailes e passeios, de valsar e rir, fosse comigo tão severa e grave, tão diferente do que costumava ou parecia ser.

        — A razão é clara: achava a sua conversação menos insossa que a dos outros homens.

        — Obrigado; era mais profunda a causa da diferença, e a diferença ia-se acentuando com os tempos. Quando a vida cá embaixo a aborrecia muito, ia para o Cosme Velho, e ali as nossas conversações eram mais frequentes e compridas. Não lhe posso dizer, nem o senhor compreenderia nada, o que foram as horas que ali passei, incorporando na minha vida toda a vida que jorrava dela. Muitas vezes quis dizer-lhe o que sentia, mas as palavras tinham medo e ficavam no coração. Escrevi cartas sobre cartas; todas me pareciam frias, difusas, ou inchadas de estilo. Demais, ela não dava ensejo a nada, tinha um ar de velha amiga. No princípio de 1857 adoeceu meu pai em Itaboraí; corri a vê-lo, achei-o moribundo. Este fato reteve-me fora da Corte uns quatro meses. Voltei pelos fins de maio. Quintília recebeu-me triste da minha tristeza, e vi claramente que o meu luto passara aos olhos dela...

        — Mas que era isso senão amor?

        — Assim o cri, e dispus a minha vida para desposá-la. Nisto, adoeceu o tio gravemente. Quintília não ficava só, se ele morresse, porque, além dos muitos parentes espalhados que tinha, morava com ela agora, na casa da Rua do Catete, uma prima, D. Ana, viúva; mas, é certo que a afeição principal ia-se embora e nessa transição da vida presente à vida ulterior podia eu alcançar o que desejava. A moléstia do tio foi breve; ajudada da velhice, levou-o em duas semanas. Digo-lhe aqui que a morte dele lembrou-me a de meu pai, e a dor que então senti foi quase a mesma. Quintília viu-me padecer, compreendeu o duplo motivo, e, segundo me disse depois, estimou a coincidência do golpe, uma vez que tínhamos de o receber sem falta e tão breve. A palavra pareceu-me um convite matrimonial; dois meses depois cuidei de pedi-la em casamento. D. Ana ficara morando com ela e estavam no Cosme Velho. Fui ali, achei-as juntas no terraço, que ficava perto da montanha. Eram quatro horas da tarde de um domingo. D. Ana, que nos presumia namorados, deixou-nos o campo livre.

        — Enfim!

        — No terraço, lugar solitário, e posso dizer agreste, proferi a primeira palavra. O meu plano era justamente precipitar tudo, com medo de que, cinco minutos de conversa me tirassem as forças. Ainda assim, não sabe o que me custou; custaria menos uma batalha, e juro-lhe que não nasci para guerras. Mas aquela mulher magrinha e delicada impunha-se-me, como nenhuma outra, antes e depois...

        — E então?

        — Quintília adivinhara, pelo transtorno do meu rosto, o que lhe ia pedir, e deixou-me falar para preparar a resposta. A resposta foi interrogativa e negativa. Casar para quê? Era melhor que ficássemos amigos como dantes. Respondi-lhe que a amizade era, em mim, desde muito, a simples sentinela do amor; não podendo mais contê-lo, deixou que ele saísse. Quintília sorriu da metáfora, o que me doeu, e sem razão; ela, vendo o efeito, fez-se outra vez séria e tratou de persuadir-me de que era melhor não casar. — Estou velha, disse ela; vou em trinta e três anos. — Mas se eu a amo assim mesmo, repliquei, e disse-lhe uma porção de cousas, que não poderia repetir agora. Quintília refletiu um instante; depois insistiu nas relações de amizade; disse que, posto que mais moço que ela, tinha a gravidade de um homem mais velho e inspirava-lhe confiança como nenhum outro. Desesperançado, dei algumas passadas, depois sentei-me outra vez e narrei-lhe tudo. Ao saber da minha briga com o amigo e companheiro da academia, e a separação em que ficamos, sentiu-se, não sei se diga, magoada ou irritada. Censurou-nos a ambos, não valia a pena que chegássemos a tal ponto. — A senhora diz isso porque não sente a mesma cousa. — Mas então é um delírio? — Creio que sim; o que lhe afianço é que ainda agora, se fosse necessário, separar-me-ia dele uma e cem vezes; e creio poder afirmar-lhe que ele faria a mesma cousa. Aqui olhou ela espantada para mim, como se olha para uma pessoa cujas faculdades parecem transtornadas; depois abanou a cabeça, e repetiu que fora um erro; não valia a pena. — Fiquemos amigos, disse-me, estendendo a mão. — É impossível; pede-me cousa superior às minhas forças, nunca poderei ver na senhora uma simples amiga; não desejo impor-lhe nada; dir-lhe-ei até que nem mais insisto, porque não aceitaria outra resposta agora. Trocamos ainda algumas palavras, e retirei-me... Veja a minha mão.

        — Treme-lhe ainda...

        — E não lhe contei tudo. Não lhe digo aqui os aborrecimentos que tive, nem a dor e o despeito que me ficaram. Estava arrependido, zangado, devia ter provocado aquele desengano desde as primeiras semanas, mas a culpa foi da esperança, que é uma planta daninha, que me comeu o lugar de outras plantas melhores. No fim de cinco dias saí para Itaboraí, onde me chamaram alguns interesses do inventário de meu pai. Quando voltei, três semanas depois, achei em casa uma carta de Quintília.

        — Oh!

        — Abri-a alvoroçadamente: datava de quatro dias. Era longa; aludia aos últimos sucessos, e dizia cousas meigas e graves. Quintília afirmava ter esperado por mim todos os dias, não cuidando que eu levasse o egoísmo até não voltar lá mais, por isso escrevia-me, pedindo que fizesse dos meus sentimentos pessoais e sem eco uma página de história acabada; que ficasse só o amigo, e lá fosse ver a sua amiga. E concluía com estas singulares palavras: "Quer uma garantia? Juro-lhe que não casarei nunca." Compreendi que um vínculo de simpatia moral nos ligava um ao outro; com a diferença que o que era em mim paixão específica, era nela uma simples eleição de caráter. Éramos dois sócios, que entravam no comércio da vida com diferente capital: eu, tudo o que possuía; ela, quase um óbolo. Respondi à carta dela nesse sentido; e declarei que era tal a minha obediência e o meu amor, que cedia, mas de má vontade, porque, depois do que se passara entre nós, ia sentir-me humilhado. Risquei a palavra ridículo, já escrita, para poder ir vê-la sem este vexame; bastava o outro.

        — Aposto que seguiu atrás da carta? É o que eu faria, porque essa moça, ou eu me engano ou estava morta por casar com o senhor.

        — Deixe a sua fisiologia usual; este caso é particularíssimo.

        — Deixe-me adivinhar o resto; o juramento era um anzol místico; depois, o senhor, que o recebera, podia desobrigá-la dele, uma vez que aproveitasse com a absolvição. Mas, enfim, correr à casa dele.

        — Não corri; fui dois dias depois. No intervalo, respondeu ela à minha carta com um bilhete carinhoso, que rematava com esta ideia: "não fale de humilhação, onde não houve público." Fui, voltei uma e mais vezes e restabeleceram-se as nossas relações. Não se falou em nada; ao princípio, custou-me muito parecer o que era dantes; depois, o demônio da esperança veio pousar outra vez no meu coração; e, sem nada exprimir, cuidei que um dia, um dia tarde, ela viesse a casar comigo. E foi essa esperança que me retificou aos meus próprios olhos, na situação em que me achava. Os boatos de nosso casamento correram mundo. Chegaram aos nossos ouvidos; eu negava formalmente e sério; ela dava de ombros e ria. Foi essa fase da nossa vida a mais serena para mim, salvo um incidente curto, um diplomata austríaco ou não sei que, rapagão, elegante, ruivo, olhos grandes e atrativos, e fidalgo ainda por cima. Quintília mostrou-se-lhe tão graciosa, que ele cuidou estar aceito, e tratou de ir adiante. Creio que algum gesto meu, inconsciente, ou então um pouco da percepção fina que o céu lhe dera, levou depressa o desengano à legação austríaca. Pouco depois ela adoeceu; e foi então que a nossa intimidade cresceu de vulto. Ela, enquanto se tratava, resolveu não sair, e isso mesmo lhe disseram os médicos. Lá passava eu muitas horas diariamente. Ou elas tocavam, ou jogávamos os três, ou então lia-se alguma cousa; a maior parte das vezes conversávamos somente. Foi então que a estudei muito; escutando as suas leituras vi que os livros puramente amorosos achava-os incompreensíveis, e, se as paixões aí eram violentas, largava-os com tédio. Não falava assim por ignorante; tinha notícia vaga das paixões, e assistira a algumas alheias.

        — De que moléstia padecia?

        — Da espinha. Os médicos diziam que a moléstia não era talvez recente, e ia tocando o ponto melindroso. Chegamos assim a 1859. Desde março desse ano a moléstia agravou-se muito; teve uma pequena parada, mas para os fins do mês chegou ao estado desesperador. Nunca vi depois criatura mais enérgica diante da iminente catástrofe; estava então de uma magreza transparente, quase fluida; ria, ou antes, sorria apenas, e vendo que eu escondia as minhas lágrimas, apertava-me as mãos agradecida. Um dia, estando só com o médico, perguntou-lhe a verdade; ele ia mentir, ela disse-lhe que era inútil, que estava perdida. — Perdida, não, murmurou o médico. — Jura que não estou perdida? — Ele hesitou, ela agradeceu-lhe. Uma vez certa que morria, ordenou o que prometera a si mesma.

        — Casou com o senhor, aposto?

        — Não me relembre essa triste cerimônia; ou antes, deixe-me relembrá-la, porque me traz algum alento do passado. Não aceitou recusas nem pedidos meus; casou comigo à beira da morte. Foi no dia 18 de abril de 1859. Passei os últimos dois dias, até 20 de abril ao pé da minha noiva moribunda, e abracei-a pela primeira vez feita cadáver.

        — Tudo isso é bem esquisito.

        — Não sei o que dirá a sua fisiologia. A minha, que é de profano, crê que aquela moça tinha ao casamento uma aversão puramente física. Casou meio defunta, às portas do nada. Chame-lhe monstro, se quer, mas acrescente divino.

Fonte: Contos Consagrados – Machado de Assis – Coleção Prestígio – Ediouro – s/d.

Entendendo o conto:

01 – Qual é o cenário em que a conversa entre os personagens ocorre no início do conto?

      A conversa entre os personagens começa enquanto eles estão caminhando pela Glória, próximo à Secretaria de Estrangeiros.

02 – Qual é a primeira impressão do narrador sobre Quintília?

      O narrador descreve Quintília como magra e alta, com olhos que ele compara a "cortados da capa da última noite", mas sem mistérios nem abismos.

03 – Qual foi a reação dos outros rapazes em relação a Quintília no Teatro Provisório?

      Os outros rapazes expressaram surpresa com o fato de Quintília não se casar e fizeram piadas sobre possíveis razões, como ela estar esperando engordar ou esperando a segunda mocidade de seu tio.

04 – Por que o narrador e seu amigo Nóbrega decidiram tentar conquistar Quintília?

      O narrador e Nóbrega decidiram tentar conquistar Quintília após ouvirem os rapazes no Teatro Provisório falando sobre como ela era uma "fortaleza inexpugnável" e como eles haviam falhado em conquistá-la.

05 – O que levou à separação do narrador e de Nóbrega na busca de conquistar Quintília?

      A separação entre o narrador e Nóbrega ocorreu porque ambos se apaixonaram por Quintília, o que causou uma briga e uma separação em suas relações.

06 – Como o narrador descreve as conversas que tinha com Quintília?

      O narrador descreve as conversas com Quintília como sendo diferentes das conversas que ela tinha com os outros homens. Elas eram mais íntimas, graves e frequentes, especialmente quando se encontravam no Cosme Velho.

07 – Qual foi a resposta de Quintília quando o narrador a pediu em casamento?

      Quando o narrador pediu Quintília em casamento, ela respondeu negativamente e sugeriu que eles continuassem como amigos. Ela alegou que estava envelhecendo e que era melhor que eles permanecessem amigos.

08 – Por que o narrador aceitou a proposta de Quintília de manter uma amizade e não insistiu no casamento?

      O narrador aceitou a proposta de Quintília de manter uma amizade e não insistiu no casamento devido à esperança de que, com o tempo, ela mudasse de ideia e concordasse em casar com ele.

09 – Qual evento finalmente levou Quintília a aceitar o casamento com o narrador?

      A grave doença de Quintília e a perspectiva de sua morte iminente a levaram a aceitar o casamento com o narrador. Eles se casaram pouco antes de sua morte, em 20 de abril de 1859.