domingo, 20 de outubro de 2019

ROMANCE: O PRIMEIRO BEIJO - FRAGMENTO - MACHADO DE ASSIS- COM GABARITO

Romance: O primeiro beijo – Fragmento
              
 Machado de Assis
        [...]

        Tinha dezessete anos; pungia-me um buçozinho que eu forcejava por trazer a bigode. Os olhos, vivos e resolutos, eram a minha feição verdadeiramente máscula. Como ostentasse certa arrogância, não se distinguia bem se era uma criança com fumos de homem, se um homem com ares de menino. Ao cabo, era um lindo garção, lindo e audaz, que entrava na vida de botas e esporas, chicote na mão e sangue nas veias, cavalgando um corcel nervoso, rijo, veloz, como o corcel das antigas baladas, que o romantismo foi buscar ao castelo medieval, para dar com eles nas ruas do nosso século. O pior é que o estafaram a tal ponto, que foi preciso deitá-lo à margem, onde o realismo o veio achar, comido de lazeira e vermes, e, por compaixão, o transportou para os seus livros.
        Sim, eu era esse garção bonito, airoso, abastado; e facilmente se imagina que mais de uma dama inclinou diante de mim a fronte pensativa, ou levantou para mim os olhos cobiçosos. De todas porém a que me cativou logo foi uma... uma... não sei se diga; este livro é casto, ao menos na intenção; na intenção é castíssimo. Mas vá lá; ou se há de dizer tudo ou nada. A que me cativou foi uma dama espanhola, Marcela, a «linda Marcela», como lhe chamavam os rapazes do tempo. E tinham razão os rapazes. Era filha de um hortelão das Astúrias; disse-mo ela mesma, num dia de sinceridade, porque a opinião aceita é que nascera de um letrado de Madri, vítima da invasão francesa, ferido, encarcerado, espingardeado, quando ela tinha apenas doze anos. Cosas de España. Quem quer que fosse, porém, o pai, letrado ou hortelão, a verdade é que Marcela não possuía a inocência rústica, e mal chegava a entender a moral do código. Era boa moça, lépida, sem escrúpulos, um pouco tolhida pela austeridade do tempo, que lhe não permitia arrastar pelas ruas os seus estouvamentos e berlindas; luxuosa, impaciente, amiga de dinheiro e de rapazes.
        [...].
                                           ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas.
18. ed. São Paulo, Ática, 1992. p. 39-0.
Fonte: Livro- Português – Série – Novo Ensino Médio – Vol. único. Ed. Ática – 2000- p. 238-9.

Entendendo o romance:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:
·        Garção: Rapaz.

·        Estafar: Cansar, fatigar.

·        Lazeira: Lepra.

·        Airoso: Esbelto, elegante.

·        Hortelão: Que trata de horta.

·        Rústica: Simples, campestre.

·        Lépida: Alegre, ágil.

·        Estouvamento: Imprudência, leviandade.

·        Berlinda: Pequeno coche de quatro rodas, suspenso entre dois varais.

02 – Por que se pode afirmar que a visão que o narrador tem da sua personalidade ais dezessete anos não é idealizada?
      Porque o narrador reconhece os seus defeitos de vaidoso e arrogante.

03 – Que observações o narrador faz sobre o romantismo?
      O narrador refere-se ao romantismo como algo desgastado.

04 – “De todas porém a que me cativou logo foi uma... uma... não sei se diga; este livro é casto, ao menos na intenção; na intenção é castíssimo. Mas vá lá; ou se há de dizer tudo ou nada.” Este período faz-nos esperar que tipo de descrição da personagem Marcela? Por quê?
      Uma descrição realista, porque o narrador deixa explícito que o que vai contar não tem nada de casto e que haverá de dizer tudo.

05 – Quais os traços marcantes da personalidade de Marcela?
      Mentia, era maliciosa, desconhecia a moralidade, era inescrupulosa, libertina, interessada em dinheiro e em rapazes.


domingo, 29 de setembro de 2019

POEMA: COMO EU TE AMO (FRAGMENTO) - GONÇALVES DIAS - COM GABARITO

Poema: COMO EU TE AMO (Fragmento)        

     Gonçalves Dias

Como se ama o silêncio, a luz, o aroma,
O orvalho numa flor, nos céus a estrela,
No largo mar a sombra de uma vela,
Que lá na extrema do horizonte assoma;

Como se ama o clarão da branca lua,
Da noite na mudez os sons da flauta,
As canções saudosíssimas do nauta,
Quando em mole vaivém a nau flutua,

Como se ama das aves o gemido,
Da noite as sombras e do dia as cores,
Um céu com luzes, um jardim com flores,
Um canto quase em lágrimas sumido;

Como se ama o crepúsculo da aurora,
A mansa viração que o bosque ondeia,
O sussurro da fonte que serpeia,
Uma imagem risonha e sedutora;

Como se ama o calor e a luz querida,
A harmonia, o frescor, os sons, os céus,
Silêncio, e cores, e perfume, e vida,
Os pais e a pátria e a virtude e a Deus:

Assim eu te amo, assim; mais do que podem
Dizer-to os lábios meus, - mais do que vale
Cantar a voz do trovador cansada:
O que é belo, o que é justo, santo e grande
Amo em ti. - Por tudo quanto sofro,
Por quanto já sofri, por quanto ainda
Me resta de sofrer, por tudo eu te amo.
[...]
                            DIAS, Gonçalves. “Como eu te amo”. In: Poesia completa e prosa escolhida. Rio de Janeiro. Aguilar, 1959. p. 128.
Fonte: Livro- Português – Série – Novo Ensino Médio – Vol. único. Ed. Ática – 2000- p. 192-3.

Entendendo a crônica:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:
·        Assomar: Parecer, surgir.

·        Nauta: Navegante, marinheiro.

·        Viração: Vento brando, brisa marítima.

·        Serpear: Mover-se como a serpente.

02 – O eu lírico utiliza comparações para expressar o seu sentimento amoroso. Que elementos, bem ao gosto do estilo romântico, predominam nessas comparações?
      Elementos da natureza.

03 – A religiosidade – outra característica da primeira fase do Romantismo – está presente no poema. Destaque o verso que exemplifica essa afirmação.
      Os pais e a pátria e a virtude e a Deus.

04 – Em que estrofe o nacionalismo romântico está presente através de uma comparação?
      Na 5ª estrofe: “Como se ama... os pais e a pátria...”.

05 – O Saudosismo – outra característica romântica – está claramente presente em que verso?
      No 3° verso da 2ª estrofe: “As canções saudosíssimas do nauta”.



POEMA: LIRA XXI - TOMÁS ANTONIO GONZAGA - COM GABARITO

Poema: LIRA XXI
         
     Tomás Antonio Gonzaga

Que diversas que são, Marília, as horas,
Que passo na masmorra imunda, e feia,
Dessas horas felizes, já passadas
                        na tua pátria aldeia!


Então eu me ajuntava com Glauceste;
E à sombra de alto Cedro na campina
Eu versos te compunha, e ele os compunha
                                            à sua cara Eulina.

Cada qual o seu canto aos Astros leva;
De exceder um ao outro qualquer trata;
O eco agora diz: “Marília terna”;
             e logo: “Eulina, ingrata”.

Deixam os mesmos Sátiros as grutas.
Um para nós ligeiro move os passos;
Ouve-nos de mais perto, e faz a flauta
                     c’os pés em mil pedaços.

Dirceu, clama um Pastor, ah! Bem merece
Da cândida Marilia a formosura.
E aonde, clama o outro, quer Eulina
                          achar maior ventura?

Nenhum Pastor cuidava do rebanho,
Enquanto em nós durava esta porfia.
E ela, ó minha Amada, só findava
             depois de acabar-se o dia.

            GONZAGA, Tomás Antônio. Marília de Dirceu. Rio de Janeiro, Ediouro, s.d. p. 82.
Fonte: Livro- Português – Série – Novo Ensino Médio – Vol. único. Ed. Ática – 2000- p.166-7.
Entendendo o poema:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:
·        Glauceste: Pseudônimo pastoril de Cláudio Manuel da Costa.

·        Sátiro: Semideus da mitologia Greco-latina habitantes das florestas; tinha chifres curtos, pés e pernas de bode.

·        Cândida: Inocente, pura.

·        Ventura: Sorte.

·        Porfia: Competição, disputa.

02 – Esta lira, que pertence à segunda parte de Marília de Dirceu, reflete o drama vivido pelo poeta quando prisioneiro. Que estrofe comprova essa afirmação? 
      A primeira estrofe.

03 – Segunda estrofe, Dirceu refere-se a Glauceste. Glauceste é o pseudônimo pastoril de que poeta? 
      Cláudio Manuel da Costa.

04 – Que tipo de competição havia entre Dirceu e Glauceste? 
      Disputavam para ver qual dos dois compunha os melhores versos em louvor a sua amada.

05 – Qual a reação dos Sátiros e dos Pastores ao ouvi-los? O que quis dizer o poeta com isso? 
      Os sátiros quebravam suas flautas; os pastores deixavam de cuidar dos rebanhos.

06 – Exemplifique, com versos de Dirceu, três características do Arcadismo.
      Adoção de nomes pastoris: “Então eu me ajuntava com Glauceste”; a presença da mitologia: “Deixam os mesmos Sátiros as grutas”; o campo como cenário: “E à sombra de alto Cedro na campina”.


CRÔNICA: AMOR MODERNO DISPENSA IDEALIZAÇÔES - KARIN DAUCH - COM GABARITO

Crônica: AMOR MODERNO DISPENSA IDEALIZAÇÕES
             Karin Dauch

        O amor romântico não vive só nas telas de cinema. A publicidade também prega o resgate do romantismo. A atmosfera da lareira com vinho, namorados se beijando na chuva, e até mesmo a paquera por telefone ditam o comportamento neo-romântico e ajudam a vender produtos.
        De acordo com o diretor de marketing da agência de propaganda DPZ, Marcelo Machado, a publicidade adapta o conceito de romantismo à modernidade. Para que uma ideia seja aceita pelo público, é necessário que a situação seja
pertinente ao seu estilo de vida.
        Machado explica que, se a mídia ignorar esse aspecto, vai facilmente despencar para o brega. "Impossível conceber, por exemplo, um comercial onde duas pessoas, de poder aquisitivo alto e residente em uma metrópole, ficam em casa escrevendo cartas de amor." Na sua opinião, a dose exata de romantismo é aquela que melhor corresponde à modernidade: de forma objetiva, sem cenários idealizados.
                                       DAUCH, Karin. O Estado de São Paulo, 15/05/96.
     Fonte: Livro- Português – Série – Novo Ensino Médio – Vol. único. Ed. Ática – 2000- p. 176-7.            
Entendendo a crônica:

01 – De acordo com o texto, qual o significado da palavra Pertinente?
      Relativo, referente, pertencente.

02 – O título da reportagem sugere que existem duas formas de amor. Quais são elas?
      O amor idealizado e o amor não idealizado.

03 – No primeiro parágrafo, a jornalista fala em comportamento neo-romântico. A ideia de um novo conceito de romantismo é repetida por Marcelo Machado através de que afirmação?
      “A publicidade adapta o conceito de romantismo à modernidade”.

04 – Qual a preocupação do diretor da agência de propaganda ao explorar o sentimento romântico dos consumidores? O que ele procura fazer para atingir o seu objetivo?
      A objetividade (X subjetividade) e a não idealização (X idealização).

05 – Sempre houve temperamento e sensibilidade romântica. No século XIX, chegou-se até mesmo a caracterizar um estilo de época: o Romantismo. De acordo com o texto, que características fundamentais servem para contrapor o romantismo moderno ao romantismo do século XIX?
      O que ele procura fazer para atingir o seu objetivo? Vender produtos. Para isso, procura adaptar a atmosfera romântica aos dias atuais.


CRÔNICA: SÚPLICA POR UMA ÁRVORE - CECÍLIA MEIRELES - COM GABARITO

Crônica: Súplica por uma árvore
               Cecília Meireles

    Um dia, um professor comovido falava-me de árvores. Se avô conhecera Andersen, esse pequeno deus que encantou para sempre a infância, todas as infâncias, com suas maravilhosas histórias. Mas, além de conhecer Andersen, o avô desse comovido professor legara a seus descendentes uma recordação extremamente terna: ao sentir que se aproximava o fim de sua vida, pediu que o transportassem aos lugares amados, onde brincara em menino, para abraçar e beijar as árvores daquele mundo antigo – mundo de sonho, pureza, poesia – povoado de crianças, ramos, flores, pássaros... O professor comovido transportava-se a esse tempo de ternura, pensava nesse avô tão sensível, e continuava a participar, com ele, dessa cordialidade geral, desse agradecido amor à Natureza que, em silêncio, nos rodeia com a sua proteção, mesmo obscura e enigmática.
        Lembrei-me de tudo isso ao contemplar uma árvore que não conheço, e cujo tronco há quinze dias se encontra ferido, lascado pelo choque de um táxi desgovernado. Segundo os técnicos, se não for socorrida, essa árvore deverá morrer dentro em breve: pois a pancada que a atingiu afetou-a na profundidade de sua vida.

                    Meireles, Cecília. “Suplica por uma árvore”. In: O que se diz e o que se entende. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980, p. 63.
Fonte: Livro- Português – Série – Novo Ensino Médio – Vol. único. Ed. Ática – 2000- p.156-7.

Entendendo a crônica:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Andersen: Hans Christian Andersen (1805 – 1875), dinamarquês, autor de contos de fadas.

·        Terna: Meiga, afetuosa.

·        Enigmática: Obscura, misteriosa.

02 – Embora fique melhor onde está, pois atrai o leitor, o primeiro parágrafo poderia vir depois do segundo, se obedecesse à lógica dos acontecimentos. Por quê?
      A lembrança do que está descrito no primeiro parágrafo é consequência do fato de a cronista ter encontrado uma árvore ferida.

03 – O que a paisagem campestre representa para o cronista?
      Um mundo de sonho, de pureza e poesia.

04 – Que objeto urbano contribui, no segundo parágrafo, para o contraste entre o campo e a cidade?
      O táxi.

05 – Que semelhanças há entre o avô, o professor e a cronista?
      Todos são sensíveis e manifestam amor à natureza.


terça-feira, 24 de setembro de 2019

POEMA: O JARDIM DOS ANIMAIS - RONALD CLAVER - COM GABARITO

Poema: O Jardim dos Animais
(Ronald Claver)

Em que céus voam, em que rios bebem,
em que florestas vivem:
o tié-sangue,
o sanhaço-de-fogo,
o guará,

o tachá,
a suçuaruna,
o jacaré-açu,
o jacaré-luneta,
de papo amarelo,
a sucuri,
a jiboia, o macaco-aranha,
a cutia,
a anta,
o caititu,
a queixada,
o jabuti da mata,
o veado-catingueiro,
o jabuti-piranga,
o inhambu-xororó,
o macuco,
o mutum-cavalo,
onde estão,
onde estão,
onde estão?

Os bichos que habitam minha cabeça convocam
as savanas,
as Américas,
as amazônias,
os pantanais,
oceanias,
europas,
ásias, áfricas, rios
para reivindicarem uma carta de alforria.

Abro portas e portões e vejo:
capivaras correndo em Mato Grosso,
ariranhas dançando nos pantanais,
tucanos voando no São Francisco
e o homem –
o mais sanguinário dos animais –
recolhendo suas balas de prata,
suas redes de medo,
seus fuzis de espanto,
suas armadilhas de incêndios.
E os depositando no museu do esquecimento.
CLAVER, Ronald. O jardim dos animais. São Paulo, FTD, 1988. p.27-8.
Fonte: Livro – Português – 5ª Série – Linguagem Nova – Faraco & Moura – Ed.Ática -  2002 – p. 178/179.
Entendendo o texto

01) Para avaliar um texto, é necessário saber sua composição. Abaixo, você verá o conceito de prosa, poesia, poema e cordel. Leia com calma e aponte qual o estilo do texto:
a) O texto é uma poesia, pois, poesia é uma das sete artes tradicionais, pela qual a linguagem humana é utilizada com fins estéticos, ou seja, ela retrata algo que tudo pode acontecer dependendo da imaginação do autor como a do leitor.
b) O texto é um poema, pois, poema é uma obra literária geralmente apresentada em versos e estrofes.
c) O texto é uma literatura de cordel, pois, cordel é um gênero literário popular escrito frequentemente na forma rimada, originado em relatos orais e depois impresso em folhetos.
d) O texto é uma prosa, pois, prosa é o nome que se dá à forma de um texto escrito em parágrafos.

02) O termo em destaque abaixo pode ser classificado como:
o homem – o mais sanguinário dos animais
a) adjetivo pátrio
b) adjetivo composto
c) adjetivo derivado
d) adjetivo primitivo
e) substantivo
03) Releia a primeira estrofe.
a) Que animais citados pelo autor você não conhece? Pesquise e anote abaixo.
Resposta pessoal.
 b) Na sua região, existem alguns dos animais citados? Quais?
Resposta pessoal.
04) Qual é o principal objetivo deste poema?
       O poema procura fundamentalmente despertar emoção. Pode informar também, mas não é seu objetivo principal.
05) Que armas e atitudes humanas você colocaria no museu do esquecimento?
Resposta pessoal.



CONTO: CONSPIRAÇÃO - MOACYR SCLIAR - COM QUESTÕES GABARITADAS

CONTO: CONSPIRAÇÃO
             
  Moacyr Scliar

     Sempre que faltava um professor, dona Marta o substituía. Lecionava canto; a disciplina era considerada de importância secundária e, além disso, suas aulas eram péssimas – mas, em compensação, ela estava sempre disponível. De manhã, de tarde, de noite. Morava no colégio, praticamente. Quando chegávamos pela manhã, já estava sentada na sala dos professores, sempre com aquele sorriso meio sofrido, meio idiota; e ficava na escola mesmo depois que saíam os últimos alunos do noturno. Esperava um irmão que vinha buscá-la; como ninguém nunca tinha visto esse irmão, circulava a história de que ela dormia no sótão do colégio. Que comia lá, era certo. Ao meio-dia ia para um banco, no pátio, tirava de sua sacola um sanduíche e ficava mastigando melancólica.
        Um dia não veio a professora de português. Trouxeram dona Marta. Entrou na sala de aula, no seu andar vacilante, cumprimentou-nos, pediu desculpas pela ausência da colega. E anunciou que não nos faria cantar: estava rouca (coisa difícil de comprovar; sua voz tinha normalmente um timbre enrouquecido. O que era motivo de deboche: Goela Enferrujada era o seu apelido. Que ela ignorava, ou fingia ignorar).
       - Vamos fazer uma coisa diferente – disse. Tentou fazer um ar misterioso, cúmplice: - Vamos fazer de conta que estamos na aula de português, certo? Quero que vocês escrevam uma composição. Sobre qualquer tema, à escolha de vocês. Depois escolherei cinco alunos, ao acaso, lerão suas composições e o melhor ganhará um prêmio.
       Fez uma pausa e acrescentou:
       - Aqui está.
       Tirou da bolsa um chocolate. Uma barra de chocolate ordinário, pequena. E aquela barra ela segurou no ar pelo menos um minuto, sorrindo, feliz.
       O nosso era um colégio de filhos de gente rica. Chocolate, bombons, balas, tínhamos todo dia, a qualquer hora. Chocolate? Ouvi risinhos de mofa. Mas nesse momento o diretor apareceu à porta e lançou um olhar severo. Pusemo-nos imediatamente a trabalhar.
       Eu tinha certeza de que não seria o escolhido para ler. Nunca era escolhido para nada, e nem queria. Isso, e mais o fato de que na época andava lendo muito livro de mistério, talvez explicasse o título\da minha composição, “Conspiração contra os cegos”. Nela eu descrevia um distante país governado por uma casta de cegos; ministros cegos, generais cegos, todos oprimindo cruelmente o povo. Que não podia se revoltar, e nem sequer conspirar: os ouvidos aguçadíssimos dos cegos captavam qualquer murmúrio de descontentamento. Mesmo assim líderes resolutos conseguiam organizar uma composição, baseada só na palavra escrita. Livros eram publicados contra os cegos, revistas, jornais. Toda articulação anticegos era feita por escrito. Finalmente a oligarquia era derrubada e um novo rei assumia. Seus primeiros atos: destruir as impressoras, fechar os jornais e declarar ilegal a alfabetização.
      Terminei a composição e fiquei quieto, aguardando. Os outros iam terminando também. Prontos?, perguntou ela. Todos responderam que sim. Menos eu. Fiquei quieto. E, contudo, foi para mim (muito azar!) que ela apontou o seu dedo vacilante.
       - Você... Como é o seu nome?
      - Oscar – respondi (mentira; meu nome é Francisco Pedro; alguns risinhos abafados se ouviram, mas eu fiquei firme).
       - Bonito nome – ela, sorridente. – Leia sua composição para nós, Oscar.
       Não havia como escapar. Dei uma olhada na folha de papel e, depois de uma pequena hesitação, anunciei:
      - Escrevi sobre um passeio no campo.
     Ela sorria, aprovadora. Contei então sobre um passeio no campo. Descrevi a paisagem: as árvores, o riacho, as vacas pastando sob um céu muito azul. Concluí dizendo que um passeio no campo nos ensinava a amar a natureza.
      Muito bonito, ela disse, quando terminei. E acrescentou, emocionada:
        - Eu gostaria de guardar a sua composição.
       Não vale a pena, eu disse. Mas eu quero, insistiu ela. Não vale a pena, repeti. Ela riu: ora, Oscar não seja modesto, me dê a sua composição.
       - A composição é minha – eu disse – e faço com ela o que quero. Esta aula era para ser de canto, não de português. A senhora não tem o direito de me exigir nada.
       - Vou pedir pela última vez – disse ela, e sua voz agora tremia – quero sua composição. Por favor.
       Peguei a folha de papel e rasguei-a em meio a um silêncio sepulcral.
      Não disse nada, mas todos podiam ver as lágrimas correndo-lhe pelo rosto. O que me surpreendeu: eu não sabia, naquela época, que os cegos podem chorar.
Moacyr Scliar. Contos reunidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
Fonte: Livro- Viva Português – 9º ano – Língua Portuguesa – Ed. Ática – 2011 – p. 43/44/45.

INTERPRETAÇÃO ESCRITA

1)   Apresente a faixa etária do narrador-personagem, sua relação com os estudos, seu comportamento moral e outros dados que você conseguir identificar durante a leitura.
O narrador-personagem é um garoto rico, provavelmente adolescente; participa das brincadeiras de sua classe; é criativo, mas rebelde; seu comportamento é irreverente, imaturo e voltado para si mesmo.

2)    No início do texto, de que forma dona Marta é apresentada pelo narrador?
Para o narrador, dona Marta era de sorriso meio sofrido, meio idiota, que dava uma matéria de importância secundária. Suas aulas eram péssimas e ela passava o dia todo na escola. Era alvo de chacota dos alunos.

3)   No texto fica claro que o narrador-personagem adotou, para o conto, a visão que ele tinha de dona Marta na época em que se deram os fatos relatados. As características do narrador-personagem nesse tempo explicam a falta de sensibilidade na caracterização de dona Marta? Justifique sua resposta.
O narrador-personagem, adotando a visão do adolescente, destaca em dona Marta aquilo que para ele é estranho e incômodo, aquilo que contraria seus padrões e os de todos os seus colegas. Daí a maneira fria e completamente desprovida de sensibilidade para apresentá-la.

4)   Por trás desse narrador-personagem que apresenta as personagens e os fatos, há um autor que adota uma estratégia narrativa para surpreender o leitor.
Copie a alternativa que explica essa estratégia:
a)   Enfatizar a caracterização das personagens, deixando clara a distância entre elas.
b)   Enfatizar o conflito, destacando a tensão criada pela discussão entre Francisco Pedro e dona Marta a respeito da entrega da composição.
c)   Caracterizar dona Marta, apresentar os comentários sobre ela feitos pelos alunos, descrever sua aula e revelar apenas no final sua deficiência.
d)   Destacar a agressividade do narrador-personagem, revelando que ele fazia uma composição tratando da deficiência da professora e se descontrola quando ela lhe pede a composição.

5)   Ao reler o texto, é possível localizar diversos dados que antecipam a informação sobre a deficiência visual de dona Marta. Faça um levantamento de alguns dados indicadores da deficiência da professora de canto.
Ela ficava no colégio até tarde esperando um irmão que a buscasse; no dia em que a professora de português faltou, ela foi levada à sala de aula; seu andar é vacilante; o dedo de dona Marta aponta vacilante.

6)   Releia os seis últimos parágrafos do texto e responda.
a)   Por que, provavelmente, dona Marta quis guardar a composição?
Provavelmente por ter se emocionado com a descrição da paisagem.

b)   Por que Francisco Pedro insiste em não entregar sua composição?
Porque alguém poderia ler a composição e perceber a brincadeira de mau gosto que fizera com a professora.

c)   Copie o clímax do conto.
“- Vou pedir pela última vez – disse ela, e sua voz agora tremia. – Quero sua composição. Por favor.
Peguei a folha de papel e rasguei-a, em meio a um silêncio sepulcral”.

7)   Pode-se afirmar que o desfecho do conto mostra uma transformação no narrador-personagem. Que transformação é essa?
Dona Marta chora com a situação, com o embate, e o narrador-personagem pela primeira vez se dá conta de que ela tem sentimentos. A frieza e o desprezo dão lugar a compaixão.

8)   Marque com um (x) a alternativa correta.
A transformação do narrador-personagem sugere que até aquele momento ele agia de maneira:
·        insegura.
·        irreverente.
·        individualista.
·        imatura.

9)   Qual a relação entre o título e o enredo do conto?
No enredo há duas conspirações: a da classe contra dona Marta e a “Conspiração contra os cegos”, composição do narrador-personagem.