sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

CRÔNICA: CORAÇÃO MATERNO - PAULO MENDES CAMPOS - COM GABARITO

Crônica: Coração Materno
            Paulo Mendes Campos
                           
        Duas horas da tarde. Ali no início do Morro da Viúva fizeram sinal: duas senhoras, ambas de cabelos brancos, preparavam-se para entrar no lotação, quando o motorista gritou: “Um lugar só”. A velhinha mais velha, já com o pé colocado no carro com imensa dificuldade, conseguiu retirar a perna comprometida, com dificuldade ainda maior, sob os protestos persuasivos da velha mais moça, que dizia:
        -- Vai, mamãe, vai a senhora, eu vou em outro.
        A mãe se desmanchando em timidez, medo e bondade, sorria:
        -- Não, minha filha, eu não posso te deixar aqui sozinha.
        -- Vai, mamãe.
        -- Não, minha filha.
        -- Pelo amor de Deus, mãe; o homem está esperando.
        -- Mas... minha filha?!
        Os passageiros aguardavam com a tolerante paciência de quem tem ou já teve mãe. O motorista fez força (e o conseguiu, parabéns) para refrear a sua fúria de Averno.
        -- Vai, mãezinha; aqui neste ponto é difícil arranjar dois lugares.
        -- Não posso te deixar sozinha, minha filha. Nunca!
        Diante do impasse, levantou-se, resoluto, um senhor sentado no banco da frente, oferecendo-se para ir em pé, as duas senhoras iriam sentadas. Ah, mas isso não, aparteou o motorista, era contra o regulamento, dava multa. O amável passageiro descompôs o regulamento do tráfego e os demais regulamentos: eram desumanos. Ao pé da calçada, o torneio sentimental de mãe e filha continuava:
        -- Vai, vai, mãe.
        -- Não posso ir sem você, minha filha.
        Quem viu a necessidade eventual de perder docemente a paciência foi a filha. Usando de energia adequada ao momento, segurou o braço da velhinha (mas velhinha mesmo, frágil, frágil), empurrou-a com o mínimo de força necessária, proferiu uma ordem imperiosa:
        -- Vai, mãe.
        E a velha mais moça se afastou em passadas compridas, impedindo a contramarcha da velha mais velha, que estava no limite extremo de sua timidez, e não teve outro jeito senão agarrar-se ao braço do motorista, entrar penosamente, sorrir pedindo perdão para todos os passageiros. Ajeitou-se no banco, esperou o barulho do motor e comentou para a vizinha (que a olhava, compreendendo tudo, as velhas, as mães, o cosmos):
        -- Coitadinha! Eu fico morrendo de pena de deixar ela aí, só, tão longe!
        Longe de onde? Das entranhas que criaram uma menina. Longe. Só.
        A viagem para o centro foi recomeçada, sem novidades, todos voltaram para dentro de si mesmos, esquecidos do episódio. A mãe, no entanto, furtiva (certa de que já causar bastantes transtornos naquele dia) inspecionava todos os lotações que ultrapassavam o nosso, aflita em sua quietude, buscando lobrigar a filha. Mas foi só quando o lotação entrou na Avenida, e parou diante de um sinal, que, enfim, a velha mais moça, a filha, apareceu em um lotação ao nosso lado. As duas se sorriram como depois de uma longa e apreensiva travessia. A velhinha chegou a fazer graça:
        -- Graças a Deus, minha filha! Você ainda chegou antes de mim.
        -- Eu não disse, mãe, que não tinha perigo?
        A filha desceu na esquina, chegou até perto da janela do nosso lotação, segurou a mão de sua mãe:
        -- Agora vai direitinha, viu?
        -- Você pode ir descansada, minha filha.
        O lotação arrancou de novo, gestos de adeus, a harmonia voltou ao rosto da nossa velhinha, que tranquilizou também a vizinha de banco:
        -- Ela vai trabalhar no Ministério; eu vou para casa, moro no Rio Comprido.
           CAMPOS, Paulo Mendes. In: Para gostar de ler. 8. ed. São Paulo,
Ática, 1987. v. 2, p. 50-2.
 Entendendo a crônica:

01 – O autor diz: “A mãe se desmanchando em timidez, medo e bondade, sorria”. Que atitude revela o sentimento da mãe em relação à filha? Observe bem os diálogos para responder.
      O fato de a velha mãe não querer separar-se da filha em nenhum momento.

02 – O medo da velha mãe tem razão de ser? Por que ela giu daquela maneira?
      Não, ele (o medo) não tem razão de ser. A atitude da velha mais velha se explica por um exagerado sentimento materno.

03 – O humor é um recurso do texto para tornar a situação menos “dramática” (sob o ponto de vista, claro, da velha mãe). Quem se utiliza do humor no texto? Exemplifique com uma frase.
      O autor-narrador do texto. Possível exemplo: “Os passageiros aguardavam com a tolerante paciência de quem tem ou já teve mãe”.

04 – O que demonstra a filha ao empurrar a mãe para dentro do lotação?
      Demonstra desejo de pôr um fim à situação constrangedora; demonstra, ainda, independência em relação à vontade da mãe.

05 – Como se mostra a velha mãe ao entrar no lotação? Por quê?
      Extremamente tímida. Porque, apesar da aflição em que se encontrava por ter de se separar da filha, conseguia perceber o transtorno que estava causando a motorista e passageiros.

06 – O que significa para você, o último diálogo das duas?
        “— Agora vai direitinha, viu?”
        “— Você pode ir descansada, minha filha.”
      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Quem se preocupa, agora, é a filha, que passa por “mãe” da mãe. E essa troca de “preocupações” significa acordo, harmonia, estabilidade no afeto de mãe e filha.

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