domingo, 13 de janeiro de 2019

ARTIGO DE OPINIÃO: ERRO DE PORTUGUÊS NÃO EXISTE! FLÁVIO LOBO - COM GABARITO

Texto: Erro de português não existe!
      

      Escritor e linguista denuncia o preconceito linguístico e considera absurdo dizer que os brasileiros não sabem português
                                                                                        Flávio Lobo

    “O brasileiro são o seu português, o português do Brasil, enquanto os portugueses sabem o português deles. Nenhum dos dois é mais certo ou mais errado, mais feio ou mais bonito: são apenas diferentes um do outro.”
        Nesse trecho de seu livro Preconceito linguístico: o que é, como se faz, Marcos Bagno ataca a crença segundo a qual “brasileiro não sabe português e só em Portugal se fala bem português”. Esse “mito” seria um dos pilares do que ele chama de “mitologia do preconceito linguístico” – um conjunto de crenças equivocadas, responsável pela má qualidade e ineficiência do ensino do português nas escolas e pela dificuldade que muitos brasileiros têm no trato com a língua materna.
        Para Bagno, o “erro de português” que amedronta, intimida e humilha tanta gente, simplesmente não existe. Haveria, na verdade, diferentes gramáticas para diferentes variedades do português. Cada uma delas perfeitamente válida em seu contexto. Todas merecedoras de respeito.
        Autor de livros para crianças, jovens e adultos, incluindo ficção e obras sobre língua e literatura, Bagno, que tem 37 anos, também é tradutor. Formado em Letras, com mestrado em Linguística, hoje faz doutorado em língua portuguesa na USP. Desde a graduação, ele se interessou pela sociolinguística – disciplina que estuda as relações entre língua e sociedade – e pela revisão dos conceitos de “norma culta”, “norma padrão”, do que é certo e errado na língua. Estudos e revisões que, segundo ele, não têm sido acompanhados por muitos dos que se apresentam como especialistas no debate sobre o ensino e a situação da língua portuguesa no Brasil.
        De acordo com Bagno, existe uma “briga” entre dois grupos no campo das questões linguísticas e gramaticais. Um é composto por linguistas, verdadeiros especialistas no assunto. O outro seria o dos “puristas”, defensores de uma tradição gramatical dogmática e anticientífica.
        Mídia – O surpreendente, diz ele, é que, ao mesmo tempo em que o MEC estaria ouvindo os linguistas e acompanhando as pesquisas acadêmicas – num processo de modernização evidenciado nos novos Parâmetros Curriculares Nacionais –, os meios de comunicação estariam desempenhando um papel mais conservador. Quase todos os programas de rádio e TV, colunas de jornais e revistas, manuais de redação, CD-ROMs e até sites na Internet dedicados a questões da língua estariam tentando preservar normas ultrapassadas por meio do que ele denomina “comandos paragramaticais”.
        “As pessoas que falam e escrevem sobre a língua na mídia em geral são jornalistas, advogados ou professores de português que não estão ligados à pesquisa, não participam do debate acadêmico, não estão em dia com as novas tendências da Linguística – são os que eu chamo de gramatiqueiros”, critica Bagno. Para ele, esses “pseudo-especialistas”, ao tentar fazer as pessoas decorarem regras que ninguém mais usa, estariam vendendo “fósseis gramaticais”, fazendo da suposta dificuldade da língua portuguesa um produto de boa saída comercial.
        Outro “mito” tratado no livro Preconceito linguístico: o que é, como se faz é a ideia, bastante difundida, de que a língua portuguesa é difícil. Bagno afirma que a dificuldade de se lidar com a língua é resultado de um ensino marcado pela obsessão normativa, terminológica, classificatória, excessivamente apegado à nomenclatura. Um ensino que parece ter como objetivo a formação de professores de português e não a de usuários competentes da língua. E que ainda por cima só poderia formar maus professores, já que estaria baseado numa gramática ultrapassada, que não daria conta da realidade atual da língua portuguesa no Brasil.
        Ele acredita que se, em vez disso, os professores se concentrassem no que é realmente importante e interessante na língua, se ajudassem os alunos a desenvolver sua capacidade de expressão e reflexão, não haveria tanta gente – depois de anos e anos de estudo – em pânico diante do desafio de escrever uma pequena redação no vestibular.
        As críticas que faz à gramática tradicional não devem ser confundidas com um “vale tudo” linguístico, explica Bagno. “No campo da língua, na verdade, tudo vale alguma coisa”, assegura o escritor. Mas esse valor dependeria do contexto, de “quem diz o quê, a quem, como, quando, onde, por que e visando que efeito”.
        Quanto ao ensino nas escolas, diz ele, a norma culta deve mesmo ser o principal objeto de estudo. O problema estaria na definição da norma culta a ser ensinada. A “norma culta idealizada”, que só existiria nas gramáticas, deveria ser deixada de lado para dar lugar à norma culta real – identificável na fala e na escrita atual da população culta do país.
        As diferenças entre a norma culta das gramáticas tradicionais e a norma culta real, de acordo com Bagno, não são tão grandes. Elas parecem mais frequentes e profundas, segundo ele, por causa do esforço feito pelos “gramatiqueiros” para preservar seus “dinossauros linguísticos”. “Bastaria eles tirarem as teias de aranha da cabeça para verem que a língua portuguesa não se desintegraria caso eles a deixassem livre para seguir seu curso”, ironiza.
        Interpretação – Falando das regras que vão contra a evolução natural da língua portuguesa no Brasil, Bagno cita casos como o do verbo assistir: “O professor pode repetir mil vezes que assistir é transitivo indireto, que o aluno sai da aula e diz que vai assistir o filme em vez de assistir ao filme. Muitos jornalistas, por exemplo, que se esforçam para escrever e falar ‘certo’ dizem que um milhão de pessoas assistiram ao filme, mas logo se traem ao dizer que o filme foi assistido por um milhão de pessoas – sendo que um verbo transitivo indireto não admitiria essa forma passiva.”
        Outro exemplo seria o famoso se de vendem-se casas. Para Bagno, os brasileiros interpretam esse se não como uma partícula apassivadora, mas como índice de indeterminação do sujeito. Uma interpretação, assegura ele, perfeitamente razoável e legítima. “Eu mesmo, em meus livros, só escrevo vende-se casas, ensina-se matérias e não deixo os revisores ‘corrigirem’”.
        Desuso – Ele também não vê como erro, mesmo para quem pretende se expressar na norma culta, formas como vi ele em vez de o vi e a substituição dos pronomes seu e sua por dele e dela sempre que se referem a ele ou ela.  “O brasileiro só usa seu e sua, com naturalidade, para dizer que algo pertence a você.”
        Outras formas, há muito em desuso, como o pronome vós, na visão de Bagno deveriam entrar na sala de aula apenas como uma curiosidade da história da língua, mencionadas como algo que os estudantes vão encontrar em textos antigos. “Não deveriam mais ser cobrados como parte do conhecimento ativo, prático, dinâmico da língua.”
        Para que a língua seja ensinada de forma dinâmica, prazerosa e eficaz, precisaria ser entendida pelos professores como algo vivo em constante processo de evolução – e não de corrupção. Os professores de português precisariam ter uma postura similar à de um professor de biologia ou física, “que sabe perfeitamente que muito do que ele está ensinando hoje pode ser reformulado ou mesmo negado amanhã”, defende Bagno.
        Também é necessário, segundo ele, que o trabalho de identificação e descrição da norma culta brasileira atual, que está sendo feito por meio das pesquisas universitárias, sirva como base para a elaboração de gramáticas dirigidas ao ensino escolar e aos falantes da língua em geral. “É um trabalho que eu mesmo quero começar a fazer quando terminar o doutorado”, planeja.
        Bagno considera indispensável o incentivo ao uso da norma culta, especialmente nas manifestações linguísticas de maior importância e alcance sociocultural e nas que visem a comunicação entre as diferentes regiões do país. Mas, como escreveu no livro Preconceito linguístico, “esse incentivo não precisa vir acompanhado do desdém, do menosprezo, da ridicularização das outras inúmeras normas linguísticas que existem dentro do universo brasileiro da língua portuguesa.”

Flávio Lobo. Erro de português não existe. Revista EDUCAÇÃO, segmento,
São Paulo, p. 26 – 28, julho de 1999.
Entendendo o texto:
01 – Observe que esse texto, apesar de constituir um artigo, também poderia ter sido escrito em forma de perguntas e respostas, já que foi todo construído a partir das ideias de uma personalidade: Marcos Bagno. Em qual dos parágrafos o entrevistado foi apresentado? Qual é a importância das declarações dele para o tema que se está abordando?
      No terceiro parágrafo. Ele é autor de livros, tem formação em letras, mestrado em linguística e faz doutorado em língua portuguesa, por tudo isso, é possível afirmar que suas declarações são de uma “autoridade” no assunto.

02 – No quarto parágrafo, comenta-se sobre divergências que existem entre dois grupos distintos: o dos “linguistas” e o dos “puristas”. É possível “encaixar” o entrevistado Pasquale no último grupo? Por quê?
      Sim. Os puristas, explica-se depois, tem amplo espaço na mídia, defendem uma tradição gramatical e a ideia do “erro de português”.

03 – Por que a tradição gramatical foi chamada de dogmática e anticientífica?
      Dogmática, porque é autoritária, determina o que é “certo” e o que é “errado” na língua. Anticientífica, porque não acompanha as pesquisas acadêmicas, não se renova, não entende a língua como algo vivo em constante processo de transformação.

04 – Por que, segundo Bagno, as pessoas que estão discorrendo sobre “erros de português” em revistas, jornais, no rádio e na televisão, não possuem autoridade para falar sobre a língua?
      Porque, segundo ele, essas pessoas são pseudo-especialistas, ou seja, falsos especialistas. Essas pessoas não estão ligadas à pesquisa e não participam de debates acadêmicos sobre o assunto. Em geral, são advogados, jornalistas e até professores de português desatualizados.

05 – “A língua portuguesa é difícil”. Essa é uma ideia do senso comum bastante arraigada no meio escolar. Segundo Bagno, qual é a procedência desse “mito”, ou seja, dessa crença sem fundamento?
      Essa ideia está diretamente ligada ao ensino de língua portuguesa no Brasil, marcado pela “obsessão normativa, terminológica, classificatória, excessivamente apegado à nomenclatura”.

06 – O ensino de língua portuguesa, centrado nas normas gramaticais, é considerado ultrapassado. O que deve, então, ser ensinado nas aulas de Língua Portuguesa?
      O que realmente é importante e interessante na língua, aquilo que ajudasse os alunos a desenvolver sua capacidade de reflexão e expressão. A norma culta a ser ensinada, segundo ele, deve ser aquela “identificável na fala e na escrita atual da população culta do país”.

07 – Releia o comentário feito por Marcos Bagno: “Bastaria eles tirarem as teias de aranha da cabeça para verem que a língua portuguesa não se desintegraria caso eles a deixassem livre para seguir seu curso”:
a)   A quem se refere a palavra “eles”?
Aos “gramatiqueiros”, puristas da língua.

b)   O que significa “tirar as teias de aranha da cabeça”?
Renovar-se, estar atento às novas tendências da linguística.

08 – Bagno também comenta o esforço que fazem alguns “gramatiqueiros” para preservar seus “dinossauros linguísticos”. Que “dinossauros” seriam esses?
      Normas ultrapassadas de gramática que não dão conta da atual língua portuguesa no Brasil.


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