Texto: Erro de português
não existe!
Flávio Lobo
“O brasileiro são
o seu português, o português do Brasil, enquanto os portugueses
sabem o português deles. Nenhum dos dois é mais certo ou mais errado,
mais feio ou mais bonito: são apenas diferentes um do outro.”
Nesse trecho de seu livro Preconceito
linguístico: o que é, como se faz, Marcos Bagno ataca a crença segundo a
qual “brasileiro não sabe português e só em Portugal se fala bem português”.
Esse “mito” seria um dos pilares do que ele chama de “mitologia do preconceito
linguístico” – um conjunto de crenças equivocadas, responsável pela má
qualidade e ineficiência do ensino do português nas escolas e pela dificuldade
que muitos brasileiros têm no trato com a língua materna.
Para Bagno, o “erro de português”
que amedronta, intimida e humilha tanta gente, simplesmente não existe.
Haveria, na verdade, diferentes gramáticas para diferentes variedades do
português. Cada uma delas perfeitamente válida em seu contexto. Todas
merecedoras de respeito.
Autor de livros para crianças,
jovens e adultos, incluindo ficção e obras sobre língua e literatura, Bagno,
que tem 37 anos, também é tradutor. Formado em Letras, com mestrado em Linguística,
hoje faz doutorado em língua portuguesa na USP. Desde a graduação, ele se interessou
pela sociolinguística – disciplina que estuda as relações entre língua e
sociedade – e pela revisão dos conceitos de “norma culta”, “norma padrão”, do
que é certo e errado na língua. Estudos e revisões que, segundo ele, não têm
sido acompanhados por muitos dos que se apresentam como especialistas no debate
sobre o ensino e a situação da língua portuguesa no Brasil.
De acordo com Bagno, existe uma
“briga” entre dois grupos no campo das questões linguísticas e gramaticais. Um
é composto por linguistas, verdadeiros especialistas no assunto. O outro seria
o dos “puristas”, defensores de uma tradição gramatical dogmática e
anticientífica.
Mídia
– O surpreendente, diz ele, é que, ao mesmo tempo em que o MEC estaria
ouvindo os linguistas e acompanhando as pesquisas acadêmicas – num processo de
modernização evidenciado nos novos Parâmetros Curriculares Nacionais –, os
meios de comunicação estariam desempenhando um papel mais conservador. Quase
todos os programas de rádio e TV, colunas de jornais e revistas, manuais de
redação, CD-ROMs e até sites na Internet dedicados a questões da
língua estariam tentando preservar normas ultrapassadas por meio do que ele
denomina “comandos paragramaticais”.
“As pessoas que falam e escrevem sobre
a língua na mídia em geral são jornalistas, advogados ou professores de
português que não estão ligados à pesquisa, não participam do debate acadêmico,
não estão em dia com as novas tendências da Linguística – são os que eu chamo
de gramatiqueiros”, critica Bagno. Para ele, esses “pseudo-especialistas”, ao
tentar fazer as pessoas decorarem regras que ninguém mais usa, estariam
vendendo “fósseis gramaticais”, fazendo da suposta dificuldade da língua
portuguesa um produto de boa saída comercial.
Outro “mito” tratado no
livro Preconceito linguístico: o que é, como se faz é a ideia,
bastante difundida, de que a língua portuguesa é difícil. Bagno afirma que a
dificuldade de se lidar com a língua é resultado de um ensino marcado pela
obsessão normativa, terminológica, classificatória, excessivamente apegado à
nomenclatura. Um ensino que parece ter como objetivo a formação de professores
de português e não a de usuários competentes da língua. E que ainda por cima só
poderia formar maus professores, já que estaria baseado numa gramática
ultrapassada, que não daria conta da realidade atual da língua portuguesa
no Brasil.
Ele acredita que se, em vez disso,
os professores se concentrassem no que é realmente importante e interessante na
língua, se ajudassem os alunos a desenvolver sua capacidade de expressão e
reflexão, não haveria tanta gente – depois de anos e anos de estudo – em pânico
diante do desafio de escrever uma pequena redação no vestibular.
As críticas que faz à gramática
tradicional não devem ser confundidas com um “vale tudo” linguístico, explica
Bagno. “No campo da língua, na verdade, tudo vale alguma coisa”, assegura o
escritor. Mas esse valor dependeria do contexto, de “quem diz o quê, a quem,
como, quando, onde, por que e visando que efeito”.
Quanto ao ensino nas escolas, diz ele,
a norma culta deve mesmo ser o principal objeto de estudo. O problema estaria
na definição da norma culta a ser ensinada. A “norma culta idealizada”, que só
existiria nas gramáticas, deveria ser deixada de lado para dar lugar à norma
culta real – identificável na fala e na escrita atual da população culta do
país.
As diferenças entre a norma culta das
gramáticas tradicionais e a norma culta real, de acordo com Bagno, não são tão grandes.
Elas parecem mais frequentes e profundas, segundo ele, por causa do esforço
feito pelos “gramatiqueiros” para preservar seus “dinossauros linguísticos”.
“Bastaria eles tirarem as teias de aranha da cabeça para verem que a língua
portuguesa não se desintegraria caso eles a deixassem livre para seguir seu
curso”, ironiza.
Interpretação
– Falando das regras que vão contra a evolução natural da língua
portuguesa no Brasil, Bagno cita casos como o do verbo assistir: “O professor
pode repetir mil vezes que assistir é transitivo indireto, que o aluno sai da
aula e diz que vai assistir o filme em vez de
assistir ao filme. Muitos jornalistas, por exemplo, que se esforçam
para escrever e falar ‘certo’ dizem que um milhão de pessoas assistiram ao filme,
mas logo se traem ao dizer que o filme foi assistido por um milhão de
pessoas – sendo que um verbo transitivo indireto não admitiria essa forma
passiva.”
Outro exemplo seria o
famoso se de vendem-se casas. Para Bagno, os brasileiros
interpretam esse se não como uma partícula apassivadora, mas como
índice de indeterminação do sujeito. Uma interpretação, assegura ele,
perfeitamente razoável e legítima. “Eu mesmo, em meus livros, só
escrevo vende-se casas, ensina-se matérias e não deixo os revisores
‘corrigirem’”.
Desuso – Ele também não vê como
erro, mesmo para quem pretende se expressar na norma culta, formas como vi
ele em vez de o vi e a substituição dos pronomes seu e sua por
dele e dela sempre que se referem a ele ou ela. “O brasileiro só usa seu e sua,
com naturalidade, para dizer que algo pertence a você.”
Outras formas, há muito em desuso, como
o pronome vós, na visão de Bagno deveriam entrar na sala de aula apenas
como uma curiosidade da história da língua, mencionadas como algo que os estudantes
vão encontrar em textos antigos. “Não deveriam mais ser cobrados como parte do
conhecimento ativo, prático, dinâmico da língua.”
Para que a língua seja ensinada de
forma dinâmica, prazerosa e eficaz, precisaria ser entendida pelos professores como
algo vivo em constante processo de evolução – e não de corrupção. Os
professores de português precisariam ter uma postura similar à de um professor
de biologia ou física, “que sabe perfeitamente que muito do que ele está
ensinando hoje pode ser reformulado ou mesmo negado amanhã”,
defende Bagno.
Também é necessário, segundo ele,
que o trabalho de identificação e descrição da norma culta brasileira atual,
que está sendo feito por meio das pesquisas universitárias, sirva como base
para a elaboração de gramáticas dirigidas ao ensino escolar e aos falantes da
língua em geral. “É um trabalho que eu mesmo quero começar a fazer quando
terminar o doutorado”, planeja.
Bagno considera indispensável o
incentivo ao uso da norma culta, especialmente nas manifestações linguísticas
de maior importância e alcance sociocultural e nas que visem a comunicação
entre as diferentes regiões do país. Mas, como escreveu no livro Preconceito
linguístico, “esse incentivo não precisa vir acompanhado do desdém, do menosprezo,
da ridicularização das outras inúmeras normas linguísticas que existem dentro
do universo brasileiro da língua portuguesa.”
Flávio Lobo. Erro de
português não existe. Revista EDUCAÇÃO, segmento,
São Paulo, p. 26 –
28, julho de 1999.
Entendendo o texto:
01 – Observe que esse texto,
apesar de constituir um artigo, também poderia ter sido escrito em forma de
perguntas e respostas, já que foi todo construído a partir das ideias de uma personalidade:
Marcos Bagno. Em qual dos parágrafos o entrevistado foi apresentado? Qual é a
importância das declarações dele para o tema que se está abordando?
No terceiro parágrafo. Ele é autor de
livros, tem formação em letras, mestrado em linguística e faz doutorado em
língua portuguesa, por tudo isso, é possível afirmar que suas declarações são
de uma “autoridade” no assunto.
02 – No quarto parágrafo,
comenta-se sobre divergências que existem entre dois grupos distintos: o dos
“linguistas” e o dos “puristas”. É possível “encaixar” o entrevistado Pasquale
no último grupo? Por quê?
Sim. Os puristas,
explica-se depois, tem amplo espaço na mídia, defendem uma tradição gramatical
e a ideia do “erro de português”.
03 – Por que a tradição
gramatical foi chamada de dogmática e anticientífica?
Dogmática, porque é
autoritária, determina o que é “certo” e o que é “errado” na língua. Anticientífica, porque não
acompanha as pesquisas acadêmicas, não se renova, não entende a língua como
algo vivo em constante processo de transformação.
04 – Por que, segundo Bagno,
as pessoas que estão discorrendo sobre “erros de português” em revistas,
jornais, no rádio e na televisão, não possuem autoridade para falar sobre a
língua?
Porque, segundo
ele, essas pessoas são pseudo-especialistas, ou seja, falsos especialistas. Essas
pessoas não estão ligadas à pesquisa e não participam de debates acadêmicos
sobre o assunto. Em geral, são advogados, jornalistas e até professores de
português desatualizados.
05 – “A língua portuguesa é
difícil”. Essa é uma ideia do senso comum bastante arraigada no meio escolar.
Segundo Bagno, qual é a procedência desse “mito”, ou seja, dessa crença sem
fundamento?
Essa ideia está
diretamente ligada ao ensino de língua portuguesa no Brasil, marcado pela
“obsessão normativa, terminológica, classificatória, excessivamente apegado à
nomenclatura”.
06 – O ensino de língua
portuguesa, centrado nas normas gramaticais, é considerado ultrapassado. O que
deve, então, ser ensinado nas aulas de Língua Portuguesa?
O que realmente é
importante e interessante na língua, aquilo que ajudasse os alunos a
desenvolver sua capacidade de reflexão e expressão. A norma culta a ser
ensinada, segundo ele, deve ser aquela “identificável na fala e na escrita
atual da população culta do país”.
07 – Releia o comentário
feito por Marcos Bagno: “Bastaria eles tirarem as teias de aranha da cabeça
para verem que a língua portuguesa não se desintegraria caso eles a deixassem
livre para seguir seu curso”:
a)
A quem se refere a palavra “eles”?
Aos “gramatiqueiros”, puristas da língua.
b)
O que significa “tirar as teias de aranha da
cabeça”?
Renovar-se, estar atento às novas tendências da linguística.
08 – Bagno também comenta o
esforço que fazem alguns “gramatiqueiros” para preservar seus “dinossauros
linguísticos”. Que “dinossauros” seriam esses?
Normas
ultrapassadas de gramática que não dão conta da atual língua portuguesa no
Brasil.
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