quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

CONTO: DESENREDO - JOÃO GUIMARÃES ROSA - COM GABARITO

Conto: Desenredo
            
                João Guimarães Rosa

        Do narrador a seus ouvintes:
        — Jó Joaquim, cliente, era quieto, respeitado, bom como o cheiro de cerveja. Tinha o para não ser célebre. Com elas quem pode, porém? Foi Adão dormir, e Eva nascer. Chamando-se Livíria, Rivília ou Irlívia, a que, nesta observação, a Jó Joaquim apareceu.
        Antes bonita, olhos de viva mosca, morena mel e pão. Aliás, casada. Sorriram-se, viram-se. Era infinitamente maio e Jó Joaquim pegou o amor. Enfim, entenderam-se. Voando o mais em ímpeto de nau tangida a vela e vento. Mas muito tendo tudo de ser secreto, claro, coberto de sete capas.
        Porque o marido se fazia notório, na valentia com ciúme; e as aldeias são a alheia vigilância. Então ao rigor geral os dois se sujeitaram, conforme o clandestino amor em sua forma local, conforme o mundo é mundo. Todo abismo é navegável a barquinhos de papel.
        Não se via quando e como se viam. Jó Joaquim, além disso, existindo só retraído, minuciosamente. Esperar é reconhecer-se incompleto. Dependiam eles de enorme milagre. O inebriado engano.
        Até que — deu-se o desmastreio. O trágico não vem a conta-gotas. Apanhara o marido a mulher: com outro, um terceiro... Sem mais cá nem mais lá, mediante revólver, assustou-a e matou-o. Diz-se, também, que de leve a ferira, leviano modo.
        Jó Joaquim, derrubadamente surpreso, no absurdo desistia de crer, e foi para o decúbito dorsal, por dores, frios, calores, quiçá lágrimas, devolvido ao barro, entre o inefável e o infando. Imaginara-a jamais a ter o pé em três estribos; chegou a maldizer de seus próprios e gratos abusufrutos. Reteve-se de vê-la. Proibia-se de ser pseudopersonagem, em lance de tão vermelha e preta amplitude.
        Ela — longe — sempre ou ao máximo mais formosa, já sarada e sã. Ele exercitava-se a aguentar-se, nas defeituosas emoções.
        Enquanto, ora, as coisas amaduravam. Todo fim é impossível? Azarado fugitivo, e como à Providência praz, o marido faleceu, afogado ou de tifo. O tempo é engenhoso.
        Soube-o logo Jó Joaquim, em seu franciscanato, dolorido mas já medicado. Vai, pois, com a amada se encontrou — ela sutil como uma colher de chá, grude de engodos, o firme fascínio. Nela acreditou, num abrir e não fechar de ouvidos. Daí, de repente, casaram-se. Alegres, sim, para feliz escândalo popular, por que forma fosse.
        Mas.
        Sempre vem imprevisível o abominoso? Ou: os tempos se seguem e parafraseiam-se. Deu-se a entrada dos demônios.
        Da vez, Jó Joaquim foi quem a deparou, em péssima hora: traído e traidora. De amor não a matou, que não era para truz de tigre ou leão. Expulsou-a apenas, apostrofando-se, como inédito poeta e homem. E viajou fugida a mulher, a desconhecido destino.
        Tudo aplaudiu e reprovou o povo, repartido. Pelo fato, Jó Joaquim sentiu-se histórico, quase criminoso, reincidente. Triste, pois que tão calado. Suas lágrimas corriam atrás dela, como formiguinhas brancas. Mas, no frágio da barca, de novo respeitado, quieto. Vá-se a camisa, que não o dela dentro. Era o seu um amor meditado, a prova de remorsos. Dedicou-se a endireitar-se.
        Mais.
        No decorrer e comenos, Jó Joaquim entrou sensível a aplicar-se, a progressivo, jeitoso afã. A bonança nada tem a ver com a tempestade. Crível? Sábio sempre foi Ulisses, que começou por se fazer de louco. Desejava ele, Jó Joaquim, a felicidade — ideia inata. Entregou-se a remir, redimir a mulher, à conta inteira. Incrível? É de notar que o ar vem do ar. De sofrer e amar, a gente não se desafaz. Ele queria apenas os arquétipos, platonizava. Ela era um aroma. Nunca tivera ela amantes! Não um. Não dois. Disse-se e dizia isso Jó Joaquim. Reportava a lenda a embustes, falsas lérias escabrosas. Cumpria-lhe descaluniá-la, obrigava-se por tudo. Trouxe à boca-de-cena do mundo, de caso raso, o que fora tão claro como água suja. Demonstrando-o, amatemático, contrário ao público pensamento e à lógica, desde que Aristóteles a fundou. O que não era tão fácil como refritar almôndegas. Sem malícia, com paciência, sem insistência, principalmente.
        O ponto está em que o soube, de tal arte: por antipesquisas, acronologia miúda, conversinhas escudadas, remendados testemunhos. Jó Joaquim, genial, operava o passado — plástico e contraditório rascunho. Criava nova, transformada realidade, mais alta. Mais certa?
        Celebrava-a, ufanático, tendo-a por justa e averiguada, com convicção manifesta. Haja o absoluto amar — e qualquer causa se irrefuta.
        Pois, produziu efeito. Surtiu bem. Sumiram-se os pontos das reticências, o tempo secou o assunto. Total o transato desmanchava-se, a anterior evidência e seu nevoeiro. O real e válido, na árvore, é a reta que vai para cima. Todos já acreditavam. Jó Joaquim primeiro que todos.
        Mesmo a mulher, até, por fim. Chegou-lhe lá a notícia, onde se achava, em ignota, defendida, perfeita distância. Soube-se nua e pura. Veio sem culpa. Voltou, com dengos e fofos de bandeira ao vento.
        Três vezes passa perto da gente a felicidade. Jó Joaquim e Vilíria retomaram-se, e conviveram, convolados, o verdadeiro e melhor de sua útil vida.
        E pôs-se a fábula em ata.

Rosa, João Guimarães. Tutameia (Terceiras estórias). 9.ed.
Rio de Janeiro: J. Olympio, 1967, p. 38-40.

Entendendo a conto:

01 – Observe que o conto contém muitas palavras e expressões ligadas à navegação e ao Direito.
a)   Copie, no seu caderno, as palavras que podem estar relacionadas a esses dois campos.
·        Navegação: “Ulysses”; “nau tangida a vela e vento”; “todo abismo é navegável a barquinhos de papel”; “desmastreio”; “frágio da barca”.

·        Direito: “Criminoso, reincidente”; “abusufrutos”; “decúbito dorsal”; “testemunho”; “evidência”; “justa e averiguada”; “em ata”.

b)   Por que a escolha desses campos semânticos é importante para a temática tratada?
Navegar é percorrer, tocar para a frente. Provavelmente, a redação esteja no fato de que as noções do que seja “direito” se relativizam no “navegar” da vida e do tempo.

02 – Leia o que Guimarães Rosa escreveu sobre a linguagem:
        “Meus romances e ciclos de romances são na realidade contos nos quais se unem a ficção poética e a realidade. Sei que daí pode facilmente nascer um filho ilegítimo, mas justamente o autor deve ter um aparelho de controle: sua cabeça. Escrevo, e creio que este é o meu aparelho de controle: o idioma português, tal como usamos no Brasil: entretanto, no fundo, enquanto vou escrevendo, extraio de muitos outros idiomas. Disso resultam meus livros, escritos em um idioma próprio, meu, e pode-se deduzir daí que não me submeto à tirania da gramática e dos dicionários dos outros. A gramática e a chamada filosofia, ciência linguística, foram inventadas pelos inimigos da poesia.”
                               In: Guimarães Rosa. São Paulo: Abril educação, 1982, p. 102.

a)   Observe que o conto é composto, também, por originais criações linguísticas, como “abusufruto”; “franciscanato”; “frágio” e “ufanático”. Que palavras as originaram?
·        Abusufruto: abuso + usufruto (direito de usufruir de algo);

·        Franciscanato: relativo aos franciscanos, no contexto, é uma alusão à vida de frade do personagem;

·        Frágio: redução de naufrágio (observar que também sugere a fragilidade do personagem);

·        Ufanático: ufano (que se orgulha de algo) + fanático.

b)   Que efeitos produzem no texto?
Conferem melodia à sintaxe, condensam significados.

03 – Provérbios e máximas (frases que sintetizam uma verdade, uma ideia) foram explorados por Guimarães Rosa em vários de seus contos. Modificados, suprimidos, parafraseados e parodiados, os provérbios populares constituem uma pausa para um comentário do narrador e, além disso, conferem ritmo e melodia poéticos à prosa. Observe: “Esperar é reconhecer-se incompleto”; “O trágico não vem a conta-gotas”.
a)   Que outros exemplos podem ser citados?
“Todo abismo é navegável a barquinhos de papel”; “O tempo é engenhoso”; “de sofrer e amar, a gente não se desafaz”.

b)   Qual é o provérbio original da seguinte reconstrução “A bonança nada tem a ver com a tempestade”?
Depois da tempestade, vem a bonança.

04 – Os nomes escolhidos, no conto “Desenredo”, não foram escolhidos ao acaso.
a)   A que outro personagem remete o nome Jó? Qual é a principal característica desse personagem?
Ao Jó bíblico, conhecido por sua paciência.

b)   A mulher de “Desenredo” é citada através de quatro nomes diferentes: Livíria, Rivília, Irlívia e, por fim, Vilíria. Que relação pode ser estabelecida entre os muitos nomes dados a ela e às suas atitudes?
Os relacionamentos da personagem eram inconstantes: quatro amantes foram citados, quatro foram os nomes dados a ela.

05 – Observe que o conto poderia dar-se por encerrado duas vezes: na primeira, quando o primeiro marido morre e Jó, então, casa-se com ela. Na segunda, quando Jó, já casado, descobre a traição da mulher, expulsa-a e, com o tempo, a conformar-se.
a)   Que palavras marcam, em cada caso, a continuidade da narrativa?
As palavras “mas” e “mais”.

b)   Considere que a história guarda marcas da oralidade, ou seja, é narrada como se fosse um “causo”, uma história real, quase uma fofoca. Como o narrador garante a atenção da história?
As palavras “mas” e “mais” aparecem isoladas em um parágrafo, como se o narrador, fizesse uma pausa, antes de continuar a narrar a história. Assim, cria expectativa na plateia (e no leitor), garantindo sua atenção.

06 – Desenredo é o ato de desfazer o enredo, desembaraçar a trama. Que relação há entre a atitude de Jó Joaquim e o título do texto?
      Jó Joaquim “desenreda”, desmancha a história de traição da mulher amada e recria o passado, refaz a história.

Um comentário:

  1. Interessante análise. Lido de primeira, a narrativa nos parece enigmática. Eis um conto para ser lido e relido para enfim ser entendido.

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