REPORTAGEM: FALAR E ESCREVER, EIS A
QUESTÃO
João Gabriel de Lima
Roberto Carlos, Romário, Sílvio Santos,
Vera Fischer, Carla Perez. Os famosos no Brasil em geral jogam futebol, atuam
na televisão ou cantam música popular. O professor paulista Pasquale Cipro
Neto, de 46 anos, tornou-se um nome nacional de uma forma bem diferente:
ensinando português. Há duas semanas ele estreou um quadro no Fantástico, da
Rede Globo. Já na estreia, E Agora, Professor? (Esse é o nome do quadro)
recebeu uma enxurrada de e-mails de telespectadores – cerca de 300 –, que queriam
tirar dúvidas sobre o uso do idioma. Pasquale é um fenômeno de mídia. Além de
levantar a audiência na TV, ele ajuda a vender publicações. Quando produziu um
encarte com exercícios de português para O Globo, provocou um aumento de 40% na
circulação dominical do jornal carioca. Republicada mais tarde na revista
Época, pertencente à mesma empresa, a série fez com que a vendagem em bancas do
semanário quase dobrasse. Pasquale também é um sucesso no rádio, em livros, em
palestras e em CD-ROM. Ele não é o único que ficou conhecido nacionalmente por
ensinar os brasileiros a falar e escrever melhor. Dono de uma escola de
expressão oral, o economista Reinaldo Polito também faz um sucesso impressionante.
Tem 1600 alunos por ano, já vendeu mais de 570000 livros e suas palestras estão cotadas
em 9500 reais.
Seria errado concluir, a partir desses
dois exemplos, que a língua portuguesa é uma paixão dos brasileiros, assim como
o futebol, a televisão e a música. A verdade é que as pessoas finalmente
perceberam que precisam dominar a norma culta do idioma. Principalmente na vida
profissional. Nunca, no mundo corporativo, houve tantas reuniões e
apresentações. Quem não consegue articular pensamentos com clareza e correção tem
um grande entrave à ascensão na carreira. A invenção do e-mail contribuiu para
este quadro, ao incrementar também a comunicação por escrito dentro das
empresas. Na Nestlé, por exemplo, o número de mensagens eletrônicas trocadas
entre os funcionários dobra a cada ano. Foram 2 milhões em 1999, 4 milhões em
2000 e, até o fim de 2001, esse número deve chegar a 8 milhões. É óbvio que é
péssimo para a imagem de alguém enviar a seu chefe um e-mail confuso ou com
erros de português. “O domínio da língua culta é importantíssimo para qualquer
profissional, tanto que, na hora de admitir novos funcionários, costumamos
fazer um teste de expressão escrita”, informa Carlos Faccina, diretor de
recursos humanos da Nestlé. José Paulo Moreira de Oliveira, especialista em
português, ligado à empresa de consultoria MVC,
estima que, em carreiras nas quais a internet é ferramenta de trabalho, os
profissionais despendam 25% de seu dia atualizando a correspondência
eletrônica. Fora do trabalho, o e-mail é também cada vez mais usado na vida
particular. A tendência é que sua utilização fique cada vez mais restrita à
parcela da população que tem computador em casa. Recentemente, os Correios
criaram um programa piloto de internet. No Rio de Janeiro e em São Paulo,
várias agências contam com terminais para quem quiser enviar e-mails em vez de
cartas. Quem não tiver endereço eletrônico pode obter um de graça, aderindo ao programa.
Os correios prometem colocar esse equipamento em todas as agências do país até
2003.
As angústias dos brasileiros em relação
ao português são de duas ordens. Para uma parte da população, a que não teve
acesso a uma boa escola e, mesmo assim, conseguiu galgar posições, o problema é
sobretudo com gramática. É esse o público que consome avidamente os fascículos
e livros do professor Pasquale, em que as regras básicas do idioma são
apresentadas de forma clara e bem humorada. Para o segmento que teve a
oportunidade de estudar em bons colégios, a principal dificuldade é com a
clareza. É para satisfazer a essa demanda que um novo tipo de profissional
surgiu: o professor de português especializado em adestrar funcionário s de
empresas. Antigamente, os cursos dados no escritório eram de gramática básica e
se destinavam principalmente a secretárias. De uns tempos para cá, eles
passaram a atender primordialmente gente de nível superior. Em geral, os
professores que atuam em firmas são acadêmicos que fazem esse tipo de trabalho
esporadicamente, para ganhar um dinheiro extra. “É fascinante, porque deixamos
de viver na teoria para enfrentar a língua do mundo real”, diz Antônio Suárez
Abreu, livre-docente pela Universidade de São Paulo que já deu cursos em
empresas como a Mercedes-Benz, a Nortel e a Companhia Paulista de Força e Luz.
Abreu até lançou um livro voltado para esse público, A Arte de Argumentar –
Gerenciando Razão e Emoção, que está na segunda edição.
Já existe no país até uma escola voltada
para o ensino da língua para profissionais. É o Curso Permanente de Português,
de Porto Alegre. O CPP, como é conhecido, foi fundado em 1976 por Édison de
Oliveira, uma espécie de precursor gaúcho de Pasquale Cipro Neto. Ele se
notabilizou com aulas de gramática no rádio e na televisão do Rio Grande do
Sul. Até recentemente, o CPP funcionava como um curso especializado em redação para
o vestibular. Há cinco anos, resolver atacar o filão das empresas. “É um
trabalho bastante complexo, porque nós temos de entrar no universo das
profissões para saber os problemas específicos que cada uma apresenta”, analisa
a professora Maria Elyse Bernd, diretora do CPP. O curso mescla aulas de
gramática com atividades práticas direcionadas para as diferentes carreiras.
Médicos aprendem a escrever laudos; advogados, petições; economistas,
relatórios e assim por diante. O CPP tem como clientes bancos, tribunais e até
um hospital. Algumas empresas procuram o curso incentivadas pelos próprios
funcionários. “Fizemos uma pesquisa e descobrimos que conhecer melhor as regras
do idioma era uma demanda de todos os níveis hierárquicos”, diz Josué Vieira da
Costa, da área de recursos humanos do Banrisul, banco estatal gaúcho que
contratou os serviços do CPP. Costa lembra que as dificuldades com português
chegaram a entravar a burocracia do banco. “Uma vez, um funcionário quase foi
promovido erroneamente por causado parecer dúbio de um executivo. É incrível
que esse tipo de coisa atrapalhe o funcionamento de uma empresa.”
A dificuldade com a clareza é um traço
cultural no Brasil. “Num país com tantas carências educacionais, falar de
maneira rebuscada é indicador de status, mesmo que o falante não esteja dizendo
coisa com coisa”, afirma o professor Francisco Platão Savioli, da Universidade
de São Paulo, autor de nove livros sobre o ensino do idioma. Esse amor pelas
palavras difíceis tem origem na época da transição do Império para a República,
no fim do século XIX. Conforme explica Sérgio Buarque de Holanda, em seu
clássico Raízes do Brasil, com o advento da República o curso superior passou a
ser o principal parâmetro de reconhecimento social. Na época, estavam em voga
as escolas de direito. Assim, para ser alguém na sociedade daquele tempo, era
necessário não apenas ser advogado, mas também falar como advogado. É daí que
surge, segundo Sérgio Buarque, a linguagem bacharelesca. Esse estilo floresceu
no começo do século XX e, a partir do modernismo, seu prestígio foi decaindo. O
português empolado persiste, no entanto, até hoje, em formas degeneradas. Uma
delas é o chamado “burocratês”, a linguagem dos memorandos das empresas, nos
quais mesmo para solicitar a compra de uma caixa de clipes são necessárias
várias saudações e salamaleques. Outra é a retórica de parte dos políticos. O
linguajar pomposo também sobrevive nas teses acadêmicas e, como era de esperar,
no discurso dos advogados.
Há vários indícios, no entanto, de que
essa tradição de rebuscamento está fadada a ir para a lata de lixo da História.
Na área do direito, por exemplo, existe uma corrente que defende a
simplificação da língua. Há duas semanas, o desembargador João Wehbi Dib ganhou
as manchetes de jornais pelo tom que redigiu seu voto num processo contra o
escritor Ruy Castro, acusado de difamar Garrincha no livro Estrela Solitária.
Entre as provas arroladas pelos advogados dos herdeiros do jogador, havia uma descrição
feita por Castro da anatomia íntima do craque. Para choque de muitos, o
desembargador Wehbi Dib discorreu sobre o assunto sem meias palavras. “As novas
gerações de advogados perceberam que o discurso empolado, muitas vezes, atrapalha
a argumentação lógica”, diz Éster Kosovski, professora da área de direito da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Outro golpe no barroquismo vem da
própria popularização do e-mail. “A linguagem da correspondência eletrônica,
nas empresas, tem de ser mais concisa e mais clara que a do memorando, porque
em geral tem o objetivo de provocar uma ação imediata”, analisa o professor
paranaense Artur Roman, autor de dissertação de mestrado sobre o assunto e funcionário
do setor de treinamento do Banco do Brasil.
A clareza também se tornou a prioridade
dos cursos de oratória. O professor Reinaldo Polito, que há 26 anos tem em são
Paulo uma escola de expressão verbal para profissionais de várias áreas,
constatou, ao longo de sua carreira, uma mudança significativa. Segundo ele, até
pouco tempo atrás a maior parte de sua clientela era formada por executivos na
faixa dos 45 anos, que se preocupavam, antes de tudo, com a impostação de voz e
a gestualidade. Recentemente, ele passou a ser procurado principalmente por
jovens em início de carreira que querem aprender a se expressar de forma clara
e simples. “Para atender esse pessoal, que hoje é o grosso do meu público, tive
de reorientar o curso. Passei a enfatizar o encadeamento da ideias e a
coerência da argumentação”, conta Polito. A demanda é tanta que, em março
passado, ele inaugurou outra unidade de sua escola, no bairro paulistano do
Ipiranga. Nela, há auditórios de vários tamanhos para simular diferentes tipos
de conferências. Polito tem entre seus alunos o senador do PT Eduardo Suplicy.
“Ele é um homem inteligentíssimo, só precisa aprender a se expressar melhor. É
um grande desafio para mim”, avalia Polito.
A dificuldade do brasileiro em falar e
escrever de forma a se fazer entender não é apenas consequência da formação
bacharelesca. Há outros fatores. Para começar, lê-se pouco no Brasil. O
parâmetro de comparação que costuma ser utilizado nessa área é a média de
livros publicados per capita, que resulta da divisão do total da produção pela
população do país. No Brasil se produzem 2,4 livros por habitante, contra sete
na França e onze nos Estados Unidos. Esse indicador, no entanto, é imperfeito,
porque ignora a taxa de analfabetismo, a proporção de livros didáticos no
universo editorial e a quantidade de volumes que vai parar em bibliotecas. A
Câmara Brasileira do Livro divulgou recentemente um estudo que mostra que, na
verdade, os brasileiros leem em média apenas 1,2 livro por ano. Não cultivar a
leitura é um desastre para quem deseja expressar-se bem. Ela é condição
essencial para melhorar a linguagem oral e escrita. Quem lê interioriza as
regras gramaticais básica se aprende a organizar o pensamento.
As escolas poderiam ensinar a escrever,
mas não o fazem. Não que as aulas de redação sejam em menor número do que o
desejado. O problema é que essa matéria é ensinada de forma errada, por meio de
assuntos distantes da vida real. “Em vez de escrever redações sobre temas
vagos, como ‘Minhas férias’ ou ‘Meu cachorro’, o aluno deveria ser adestrado
nos diferentes gêneros da escrita: a carta, o memorando, a ficção, a
conferência e até o e-mail”, opina o professor Marcuschi, da Universidade
Federal de Pernambuco. Por último, há a questão do nível dos professores. “A
maior parte da mão-de-obra nessa área é de baixa qualificação”, diz o professor
Pasquale Cipro Neto. “Como o aluno vai entender a diferença entre sujeito e
predicado se nem o professor entende direito? Infelizmente, não existem bons
professores de português em número suficiente para atender à imensa demanda que
o país tem.”
Pasquale
conhece bem as carências nessa área. Ele percorre o Brasil para dar palestras.
Transformou-se em estrela de magnitude nacional depois de atuar em comerciais
da rede de lanchonetes McDonald’s em 1997. Pasquale, no entanto, não é uma
unanimidade. Esteja em São Paulo, Macapá ou Passo Fundo, inevitavelmente ouve
críticas. Elas ecoam o pensamento de uma certa corrente relativista, que acha
que os gramáticos preocupados com as regras da norma culta prestam um
desserviço à língua. De acordo com essa tendência, o certo e o errado em
português não são conceitos absolutos. Quem aponta incorreções na fala popular
estaria, na verdade, solapando a inventividade e a autoestima das classes menos
abastadas. Isso configuraria uma postura elitista. Trata-se de um raciocínio
torto, baseado num esquerdismo de meia-pataca, que idealiza tudo o que é
popular – inclusive a ignorância, como se ela fosse atributo, e não problema,
do “povo”. O que esses acadêmicos preconizam é que os ignorantes continuem a
sê-lo. Que percam oportunidades de emprego e a consequente chance de subir na
vida por falar errado. “Ninguém defende que o sujeito comece a usar o português
castiço para discutir futebol com os amigos no bar”, irrita-se Pasquale. “Falar
bem significa ser poliglota dentro da própria língua. Saber utilizar o registro
apropriado em qualquer situação. É preciso dar a todos a chance de conhecer a norma
culta, pois é ela que vai contar nas situações decisivas, como uma entrevista
para um novo trabalho.” Felizmente, a maior parte das pessoas não está nem aí
para a conversa mole dos relativistas. Quer saber, isso sim, de falar e
escrever direito. A julgar pela máxima do filósofo Ludwig Wittgenstein – “os
limites da minha linguagem são também os limites do meu pensamento” –, os brasileiros
que tentam melhorar seu português estão também aprendendo a pensar melhor.
LIMA, João Gabriel. Falar e escrever,
eis a questão.
In: Veja, Abril, São
Paulo, p. 104-112, 7 nov. 2001.
Entendendo o texto:
01 – Qual é o assunto dessa reportagem?
A língua portuguesa.
02 – Para conferir
credibilidade a uma reportagem sobre um determinado assunto, em geral,
consultam-se especialistas. Quem foram os especialistas consultados? O que é
dito sobre eles que supostamente os autoriza a falar sobre o assunto?
Pasquale Cipro
Neto, professor de cursinho; Antônio Suárez Abreu, livre-docente da
Universidade de São Paulo; Luiz Marcuschi, professor na Universidade Federal de
Pernambuco.
03 – O autor da reportagem
usa um fato da atualidade como ponto de partida de seu texto. Quê fato, atual
na época da publicação da revista, introduz o texto?
O fato de o apresentador Pasquale
iniciar, na época, um quadro sobre língua portuguesa em um programa televisivo
de grande audiência.
04 – Qual é, segundo o autor
da reportagem, o maior incentivo para se aprender a norma culta do idioma?
A carreira
profissional.
05 – Quais são os maiores
problemas em relação à língua portuguesa, segundo a reportagem?
Gramática e
clareza.
06 – No quarto parágrafo
desse excerto, a reportagem aborda a questão da escola que seria, em tese, a
responsável pelo pouco domínio que se tem da língua. Qual é a opinião dos
“especialistas” entrevistados?
Luiz Marcuschi
diz que o problema é o “como” essa matéria é ensinada: o aluno deveria escrever
diferentes gêneros textuais. Pasquale diz que os professores de língua
portuguesa é que são de baixa qualificação porque não sabem a diferença entre
sujeito e predicado.
07 – O que cada um dos
entrevistados revela sobre sua concepção de ensino de língua portuguesa na
escola?
O professor Luiz Marcuschi acredita que
língua portuguesa se aprende na prática: escrevendo diferentes textos. Pasquale
acha que língua portuguesa se aprende decorando nomenclatura gramatical e
classificando termos de orações.
08 – O último parágrafo faz
referência às críticas que Pasquale recebe de uma “certa corrente relativista”.
O que é relativismo? Quem seria os relativistas?
Relativismo é não
considerar nada com valor absoluto. Os acadêmicos seriam os defensores dessa
posição.
09 – Qual é a crítica
dirigida a essas pessoas?
A de defenderem a
posição de não ensinar a língua culta.
10 – O texto da reportagem é
favorável às opiniões de Pasquale ou procura manter-se neutro?
É claramente
favorável às posições de Pasquale.
Muito bom. Obrigadooo
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