Conto: Famigerado
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João Guimarães Rosa
Foi de incerta feita – o evento. Quem
pode esperar coisa tão sem pé nem cabeça? Eu estava em casa, o arraial sendo de
todo tranquilo. Parou-me à porta o tropel. Cheguei à janela.
Um grupo de cavaleiros. Isto é, vendo
melhor: um cavaleiro rente, frente à minha porta, equiparado, exato; e,
embolados de banda, três homens a cavalo. Tudo, num relance, insolitíssimo.
Tomei-me nos nervos. O cavaleiro esse – o oh-homem-oh – com cara de nenhum
amigo. Sei o que é influência de fisionomia. Saíra e viera, aquele homem, para
morrer em guerra. Saudou-me seco, curto, pesadamente. Seu cavalo era alto, um
alazão; bem arreado, ferrado, suado. E concebi grande dúvida.
Nenhum se apeava. Os outros, tristes
três, mal me haviam olhado, nem olhassem para nada. Semelhavam a gente receosa,
tropa desbaratada, sopitados, constrangidos coagidos, sim. Isso por isso, que o
cavaleiro solerte tinha o ar de regê-los: a meio-gesto, desprezivo, intimara-os
de pegarem o lugar onde agora se encostavam. Dado que a frente da minha casa
reentrava, metros, da linha da rua, e dos dois lados avançava a cerca,
formava-se ali um encantoável, espécie de resguardo. Valendo-se do que, o homem
obrigara os outros ao ponto donde seriam menos vistos, enquanto barrava-lhes
qualquer fuga; sem contar que, unidos assim, os cavalos se apertando, não
dispunham de rápida mobilidade. Tudo enxergara, tomando ganho da topografia. Os
três seriam seus prisioneiros, não seus sequazes. Aquele homem, para proceder
da forma, só podia ser um brabo sertanejo, jagunço até na escuma do bofe. Senti
que não me ficava útil dar cara amena, mostras de temeroso. Eu não tinha arma
ao alcance. Tivesse, também, não adiantava. Com um pingo no i, ele me dissolvia.
O medo é a extrema ignorância em momento muito agudo. O medo. O medo me miava.
Convidei-o a desmontar, a entrar.
Disse de não, conquanto os costumes.
Conservava-se de chapéu. Via-se que passara a descansar na sela — decerto
relaxava o corpo para dar-se mais à ingente tarefa de pensar. Perguntei:
respondeu-me que não estava doente, nem vindo à receita ou consulta. Sua voz se
espaçava, querendo-se calma; a fala de gente de mais longe, talvez
são-franciscano. Sei desse tipo de valentão que nada alardeia, sem farroma. Mas
avessado, estranhão, perverso brusco, podendo desfechar com algo, de repente,
por um és-não-és. Muito de macio, mentalmente, comecei a me organizar. Ele
falou:
-- “Eu vim
preguntar a vosmecê uma opinião sua explicada…”
Carregara a celha. Causava outra
inquietude, sua farrusca, a catadura de canibal. Desfranziu-se, porém, quase
que sorriu. Daí, desceu do cavalo; maneiro, imprevisto. Se por se cumprir do
maior valor de melhores modos; por esperteza? Reteve no pulso a ponta do
cabresto, o alazão era para paz. O chapéu sempre na cabeça. Um alarve. Mais os
ínvios olhos. E ele era para muito. Seria de ver-se: estava em armas — e de
armas alimpadas. Dava para se sentir o peso da de fogo, no cinturão, que usado
baixo, para ela estar-se já ao nível justo, ademão, tanto que ele se persistia
de braço direito pendido, pronto meneável. Sendo a sela, de notar-se, uma
jereba papuda urucuiana, pouco de se achar, na região, pelo menos de tão boa
feitura. Tudo de gente brava. Aquele propunha sangue, em suas tenções. Pequeno,
mas duro, grossudo, todo em tronco de árvore. Sua máxima violência podia ser
para cada momento. Tivesse aceitado de entrar e um café, calmava-me. Assim,
porém, banda de fora, sem a-graças de hóspede nem surdez de paredes, tinha para
um se inquietar, sem medida e sem certeza.
— “Vosmecê é que não me conhece.
Damázio, dos Siqueiras… Estou vindo da Serra…”
Sobressalto. Damázio, quem dele não
ouvira? O feroz de estórias de léguas, com dezenas de carregadas mortes, homem
perigosíssimo. Constando também, se verdade, que de para uns anos ele se
serenara — evitava o de evitar. Fie-se, porém, quem, em tais tréguas de
pantera? Ali, antenasal, de mim a palmo! Continuava:
— “Saiba vosmecê que, na Serra, por o
ultimamente, se compareceu um moço do Governo, rapaz meio estrondoso… Saiba que
estou com ele à revelia… Cá eu não quero questão com o Governo, não estou em
saúde nem idade… O rapaz, muitos acham que ele é de seu tanto esmiolado…”
Com arranco, calou-se. Como arrependido
de ter começado assim, de evidente. Contra que aí estava com o fígado em más
margens; pensava, pensava. Cabismeditado. Do que, se resolveu. Levantou as
feições. Se é que se riu: aquela crueldade de dentes. Encarar, não me encarava,
só se fito à meia esguelha. Latejava-lhe um orgulho indeciso. Redigiu seu
monologar.
O que frouxo falava: de outras,
diversas pessoas e coisas, da Serra, do São Ão, travados assuntos, insequentes,
como dificultação. A conversa era para teias de aranha. Eu tinha de
entender-lhe as mínimas entonações, seguir seus propósitos e silêncios. Assim
no fechar-se com o jogo, sonso, no me iludir, ele enigmava: E, pá:
— “Vosmecê agora me faça a boa obra de
querer me ensinar o que é mesmo que é: fasmisgerado… faz-megerado…
falmisgeraldo… familhas-gerado…?
Disse, de golpe, trazia entre dentes
aquela frase. Soara com riso seco. Mas, o gesto, que se seguiu, imperava-se de
toda a rudez primitiva, de sua presença dilatada. Detinha minha resposta, não
queria que eu a desse de imediato. E já aí outro susto vertiginoso
suspendia-me: alguém podia ter feito intriga, invencionice de atribuir-me a
palavra de ofensa àquele homem; que muito, pois, que aqui ele se famanasse,
vindo para exigir-me, rosto a rosto, o fatal, a vexatória satisfação?
— “Saiba vosmecê que saí ind’hoje da
Serra, que vim, sem parar, essas seis léguas, expresso direto pra mor de lhe
preguntar a pregunta, pelo claro…”
Se sério,
se era. Transiu-se-me.
— “Lá, e por estes meios de caminho,
tem nenhum ninguém ciente, nem têm o legítimo — o livro que aprende as
palavras…
É gente pra informação torta, por se
fingirem de menos ignorâncias… Só se o padre, no São Ão, capaz, mas com padres
não me dou: eles logo engambelam… A bem. Agora, se me faz mercê, vosmecê me
fale, no pau da peroba, no aperfeiçoado: o que é que é, o que já lhe
perguntei?”
Se simples.
Se digo. Transfoi-se-me. Esses trizes:
—
Famigerado?
— “Sim senhor…” — e, alto, repetiu,
vezes, o termo, enfim nos vermelhões da raiva, sua voz fora de foco. E já me
olhava, interpelador, intimativo — apertava-me. Tinha eu que descobrir a cara.
— Famigerado? Habitei preâmbulos. Bem
que eu me carecia noutro ínterim, em indúcias. Como por socorro, espiei os três
outros, em seus cavalos, intugidos até então, mumumudos. Mas, Damázio:
— “Vosmecê
declare. Estes aí são de nada não. São da Serra. Só vieram comigo, pra
testemunho…”
Só tinha de desentalar-me. O homem
queria estrito o caroço: o verivérbio.
—
Famigerado é inóxio, é “célebre”, “notório”, “notável”…
— “Vosmecê mal não veja em minha
grossaria no não entender. Mais me diga: é desaforado? É caçoável? É de
arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?”
— Vilta nenhuma, nenhum doesto. São
expressões neutras, de outros usos…
— “Pois… e o que é que é, em fala de
pobre, linguagem de em dia-de-semana?”
— Famigerado? Bem. É: “importante”, que
merece louvor, respeito…
— “Vosmecê agarante, pra a paz das
mães, mão na Escritura?”
Se certo! Era para se empenhar a barba.
Do que o diabo, então eu sincero disse:
— Olhe: eu, como o sr. Me vê, com
vantagens, hum, o que eu queria uma hora destas era ser famigerado — bem
famigerado, o mais que pudesse!…
— “Ah,
bem!…” — soltou, exultante.
Saltando na sela, ele se levantou de
molas. Subiu em si, desagravava-se, num desafogaréu. Sorriu-se, outro. Satisfez
aqueles três: — “Vocês podem ir, compadres. Vocês escutaram bem a boa
descrição…” — e eles prestes se partiram. Só aí se chegou, beirando-me a
janela, aceitava um copo d’água. Disse: — “Não há como que as grandezas machas
duma pessoa instruída!” Seja que de novo, por um mero, se torvava? Disse: —
“Sei lá, às vezes o melhor mesmo, pra esse moço do Governo, era ir-se embora,
sei não…” Mas mais sorriu, apagara-se-lhe a inquietação. Disse: — “A gente tem
cada cisma de dúvida boba, dessas desconfianças… Só pra azedar a mandioca…”
Agradeceu, quis me apertar a mão. Outra vez, aceitaria de entrar em minha casa.
Oh, pois. Esporou, foi-se, o alazão, não pensava no que o trouxera, tese para
alto rir, e mais, o famoso assunto.
ROSA, João Guimarães.
Famigerado. In: Primeiras estórias. 15. ed.
Rio de Janeiro:
Editora Nova Fronteira, 2001, p. 56-61.
Entendendo o conto:
01 – Quem conta a história?
Um narrador em
primeira pessoa que, vai se saber mais tarde, tem o “poder” da linguagem. Tal
como o autor do texto.
02 – Como a história começa?
Com a chegada de quatro homens a cavalo.
03 – Observe como, no início
do conto, o narrador estuda o valentão. O que a aparência do visitante denota?
Rudeza,
violência, esperteza, braveza, perversidade.
04 – Todos os visitantes
tinham a mesma aparência? Explique.
Não. Os outros
três pareciam ser prisioneiros do primeiro.
05 – Depois da identificação
do visitante, o personagem-narrador ficou mais ou menos apreensivo?
Ficou com muito
mais medo. Afinal, o visitante era conhecido como homem perigosíssimo, já havia
matado muita gente.
06 – O que queria o
valentão?
Saber o
significado de uma palavra: famigerado.
07 – O que pensava o
visitante sobre o significado da palavra?
Pensava ele que
poderia ser uma ofensa.
08 – Qual foi sua atitude
quando soube do real significado da palavra?
Sorriu, libertou
seus prisioneiros, agradeceu e foi embora.
09 – “Certa vez” é uma
fórmula muito usada para iniciar contos populares. De que maneira o autor
inverte essa expressão?
Utilizando a
expressão “incerta feita”.
10 – Releia a seguinte
frase: “Seu cavalo era alto, um alazão; bem arreado, ferrado, suado.” Observe
que a frase aproxima-se da poesia. Por quê?
Por causa da
rima, da organização rítmica e das relações originais que o autor estabelece
entre as palavras.
11 – A expressão “O medo me
miava” foi criada pelo autor. A leitura do conto, porém, permite atribuir-lhe
sentido. Que significado pode ser dado a tal expressão?
Fiquei com muito
medo. A expressão intensifica o medo do personagem narrador.
12 – A expressão
“cabismeditado” também é uma criação linguística do autor. O que pode
significar?
Cabisbaixo, o
personagem meditava.
13 – “Vosmecê agora me faça
a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: fasmisgerado...
faz-me-gerado... famisgerado... familhasgerado...?” Observe a criatividade
linguística de Damázio: não dominando o sentido da palavra, ele a desdobra em
várias possibilidades de significação. Relacione a palavra “famanasse” com o
sentido de famigerado.
“Famanasse” se relaciona com “fama”.
14 – “Se simples. Se digo.
Transfoi-se-me. Esses trizes.” O que sugere essa frase sobre o estado de
espírito do narrador?
Medo e indecisão.
Por um triz, ele poderia ser morto por Damázio.
15 – Observe que, depois do
pedido de Damázio para que o narrador explicasse o sentido da palavra, o
narrador pergunta duas vezes: “Famigerado?” Por que faz isso?
O narrador
procura encontrar formas para retardar a sua explicação.
16 – “Não há como que as
grandezas manchas duma pessoa instruída.” Essa frase foi um elogio ao narrador?
Explique.
Sim. Damázio
louva o poder de linguagem do narrador, o qual considera uma “grandeza macha”.
17 – O narrador analisa os
gestos, atitudes e expressões faciais do valentão. Não só o que ele diz, mas
também como diz significa muito. De que forma essa ideia também pode ser
aplicada à literatura?
Na literatura, também importa o como se dizem as coisa.
Só queria saber se ele realmente sabia o que era famigerado mas parece que não.
ResponderExcluirEu até então, não entendi o que significa famigerado.
ResponderExcluirDependendo a quem é ou ao ponto de vista da pessoa atribuída a palavra, pode ser uma ofensa ou um elogio.
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