segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

CRÔNICA: OS COMEDORES DE BAIACU - JOÃO UBALDO RIBEIRO - COM GABARITO

Crônica: Os comedores de baiacu
                João Ubaldo Ribeiro

        O baiacu, como haverão de saber os amáveis leitores, é o nome popular de alguns peixes aqui no Brasil (ou pelo menos em Itaparica; Itaparica é Brasil), geralmente da desagradável família dos tetradontídeos. Para ser mais claro, trata-se de um vulgar actinopterígio, teleósteo, da ordem dos plectógnatos, da já mencionada família tetradontídea e, julgo eu, na maior parte dos casos, é um exemplar da espécie em que Lineu tacou o nome de Lagocephalus laevigatus. Não sei por quê. Lineu tinha dessas coisas. Qualquer um que já viu um baiacu percebe logo que ele não pode ser um Lagocephalus e muito menos um laevigatus.
        Mas, enfim, eis que o baiacu abunda nestas plagas. Outro dia mesmo, pescando mais Luiz Cuiúba, ferrei uns dez, tudo maiorzinho de um palmo, pescaria até boa, se fosse peixe que prestasse. Até os quatro dentinhos dele chateiam o vivente, porque só são quatro, como o nome da família indica, mas são navalhas, estropiam anzóis, às vezes cortam até os arames das paradas. E o miserável, ainda por cima, é guloso, engole o anzol de vez e é um sacrifício para tirar tudo lá de dentro. Para não falar que é metido a batalhador e então o sujeito está ali pedindo a Deus um vermelhinho, um dentão, uma xumberga, um beiju-pirá, uma coisa assim decente, e aí a vara verga, a linha se estica e sai em disparada para o lado, peixe grande comeu! Comeu nada. O camarada sua, luta pra cá, luta pra lá, mete a mão na linha, faz o diabo, e quem chega, sacudindo vergonhosamente a ponta da linha? Um baiacu. Não pode haver maior tristeza para quem já tinha garantido ao companheiro de pescaria que “esse bicho aqui na linha é uma sororoca e das grandes”.
        Cuiúba não deixava que eu jogasse fora os baiacus e, lá pelas tantas, havia uma pilha deles, ainda espadanando a pocinha do fundo da canoa.
        — Ha-ha! — exclamou Cuiúba, brandindo facinorosamente a faca enferrujada, mas amoladíssima, que ele sempre leva.
        — Vou fazer filé de baiacu, que amanhã eu como uma moqueca!
        E passou, com habilidade um tanto assustadora, a eviscerar, esfolar e desossar os baiacus, jogando “filé” atrás de “filé” para dentro do coifo. Alguns dos filés, inclusive, continuavam se batendo, não fibrilando como carne de cágado, mas se agitando mesmo, quase como peixes vivos. Não creio que isto possa vir a tornar-se uma atração turística, nunca vi coisa mais esquisita. E meu dever, embora Cuiúba saiba mais de peixes do que quarenta delegados regionais da Sudepe, era fazer uma advertência. Nós, biólogos, temos obrigações sociais.
        — Cuiúba, você está maluco? Você vai comer isso? Isso é um Lagocephalus laevigatus! O famoso peixe venenoso, isso mata em poucas horas!
        — Já tinha ouvido gente chamar isso de peixe-sapo, mas esse nome que você falou nunca ouvi falar — disse Cuiúba, jogando outro filé na cesta.
        — Um anfíbio anuro? — disse eu. — Não seja ridículo, isso é um Lagocephalus.
        — Isto — disse Cuiúba, metendo a faca na barriga de mais um peixe — é um baiacu. É o melhor peixe do mar e eu vou comer tudo de moqueca.
        — Mas você não sabe que baiacu é venenoso?
        — É pra quem não sabe tratar. O veneno está aqui — mostrou ele, cutucando uma bolinha entre as vísceras. — Tirando isso, fica logo o melhor peixe do mar.
        — Mas você não sabe que de vez em quando morre um depois de comer baiacu, às vezes famílias inteiras, e de gente acostumada a comer baiacu?
        — É, eu sei. Agora mesmo, semana passada, morreram quatro de vez, no Alto de Santo Antônio, só sobrou um quinto, que ainda está passando mal no hospital. Eles comiam sempre baiacu, a velha fazia um escaldado com quiabo ótimo, eu mesmo comi lá várias vezes.
        — E então? E ela não sabia dessa bolinha aí, não estava acostumada a tratar baiacu?
        — Estava, estava. Mas ninguém está livre de uma distração, é ou não é? Uma distração assim ... — e, ploft, outro filé no cesto.
        — Cuiúba, deixe de ser doido, você pode morrer se comer esse negócio.
        — Morro nada.
        De volta ao Mercado, procurei apoio na autoridade de Sete Ratos, peixeiro antigo, diz o povo que hoje rico, da venda de peixe.Com certeza ele dissuadiria Cuiúba daquela ideia tresvariada de comer baiacu. Encontro Sete Ratos em pé diante de uma banca, com as mãos metidas numa gamela, tratando peixe. Já eram quase dez horas, passava da hora do almoço e era natural que ele estivesse ali preparando sua comida. Olhei para dentro da gamela, vi uns vinte baiacus miúdos.
        — Sete Ratos, você vai comer baiacu?
        — É o melhor peixe do mar!
        — Mas essa desgraça é venenosa, você não sabe que é venenosa?
        — Ah, é. Semana passada mesmo, morreram acho que quatro ou cinco, lá no Alto. Família acostumadinha a comer baiacu, nesse dia comeram... É o desacerto.
        — Eu sei, Cuiúba me contou. E eu que vinha aqui justamente para lhe pedir que tirasse da cabeça dele a ideia de comer uns filés de baiacu que a gente pescou.
        — Ele esfolou o peixe? Tirou a pele? Tirou justamente o que dá gosto na moqueca? Tirou de frouxidão, foi isso, tirou de frouxidão! Hem, Cuiúba, você tirou a pele porque acha que o veneno está na pele, hem? Deixe de ser frouxo, rapaz, isso tudo é conversa, o veneno nunca esteve na pele, se fosse assim eu já era defunto.
        — Eu sei — falou Cuiúba. — Eu tirei porque gosto de filé de peixe, mas eu sei que o veneno está naquela bolinha da barriga.
        — Que bolinha da barriga, rapaz, tem nada de bolinha de barriga, isso tudo é conversa, tem nada de bolinha na barriga. Isso aí a pessoa tira porque ninguém vai comer tripa de peixe, só francês ou senão americano. O negócio é na hora do cozimento, aí tem de cozinhar direito!
        — E você vai mesmo comer essa baiacuzada, Sete Ratos?
        — Ora, é o melhor peixe do mar!
        Saí por ali, conversei com Turrico, que, além de garçom, é bom pescador. Ele também é muito chegado a uma moquequinha de baiacu. Mas não é veneno, Turrico? É, semana passada mesmo, no Alto... Mas só é veneno nos meses que não têm r, no mês que tem r pode comer sossegado.
        — Mas Sete Ratos me disse que era no cozimento. E Cuiúba...
        — Isso é tudo conversa, tudo conversa. Eu não deixei de comer baiacu nem depois que morreu uma parenta minha — uma não, duas, que eram velhas vitalinas e moravam juntas. Elas estavam acostumadas, faziam baiacu muito bem. Mas nesse dia...
        — E então?
        — É porque foi em julho. Julho não tem r. Ou tem?
        Está certo, pensei eu sem entender nada, enquanto me dirigia à casa de meu amigo Zé de Honorina, para pegar um feijãozinho atendendo a amável e generoso convite. Comentei com ele minha perplexidade.
        — Que coincidência! — disse ele alegremente. — Comadre Dagmar está aí justamente preparando uma moqueca de baiacu.
        — Ah, desculpe, Zé, mas eu não como baiacu.
        — Besteira sua, é o melhor peixe do mar. Agora, não se pode negar que é venenoso. Semana passada mesmo, no Alto...
        — Eu soube, eu soube. E você vai comer assim mesmo?
        — Claro que vou, mas não se preocupe, que eu mandei preparar uma garoupinha para você, separada.
        Entre limões, mãos de coentro, pilhas de cebolas, alhos, malaguetas e tomates, Dagmar dava os últimos retoques na moqueca de baiacu. Aproximei-me, estava tudo muito cheiroso. Observei como aquela sua moqueca de baiacu era famosa, como Zé tinha confiança em comer aquele peixe venenoso quando era ela quem o preparava. Qual o segredo para tratar o baiacu?
        — Ah, não sei — disse ela. — Eu mesma não como.

        RIBEIRO, João Ubaldo. Os comedores de baiacu. In: Arte e ciência de roubar galinha:
Crônicas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 45-9.
Entendendo a crônica:

01 – Que explicações foram dadas pelos vários personagens, no decorrer da história, sobre o veneno do baiacu? Que informações concretas foram dadas sobre as atividades desses personagens?
·        Luiz Cuiúba = Pescador. O veneno está em uma bolinha entre as vísceras. Se for retirada, o baiacu não faz mal.

·        Sete Ratos = Peixeiro antigo. O segredo está na hora do cozimento.

·        Turrico = Garçom e pescador. O peixe só é venenoso nos meses que não têm r. No mês que tem r pode-se comer sossegado.

02 – Que características são comuns a todos esses personagens? Como você poderia descrevê-los?
      Pessoas que vivem e sobrevivem a partir de conhecimentos, mitos e lendas que vão passando de geração em geração.

03 – Os personagens, segundo o texto, possuem suficientes conhecimentos científicos para justificar as afirmações que fazem? De onde provem as teorias deles sobre o assunto? Considere as informações que o texto fornece sobre esses personagens.
      Não. O conhecimento deles faz parte dos saberes populares que vão sendo passados de geração em geração.

04 – O narrador parece desesperado para convencer os outros de que o peixe é venenoso. Que indicativos há no texto de que ele possui uma certa autoridade para falar no assunto?
      Ele se diz biólogo. E tenta provar seu conhecimento citando nomes e mais nomes científicos relacionados ao baiacu.

05 – Além de não servirem para comer, que outros motivos os pescadores têm, em geral, para não gostarem de fisgar baiacus?
      Porque tais peixes, além de não servirem para se comer, estropiam anzóis, cortam arames das paradas e engolem anzóis.



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