Crônica: Os comedores de baiacu
João Ubaldo
Ribeiro
O baiacu, como haverão de
saber os amáveis leitores, é o nome popular de alguns peixes
aqui no Brasil (ou pelo menos em Itaparica; Itaparica é Brasil),
geralmente da desagradável família dos tetradontídeos. Para ser mais claro,
trata-se de um vulgar actinopterígio, teleósteo, da ordem dos plectógnatos, da
já mencionada família tetradontídea e, julgo eu, na maior parte dos casos,
é um exemplar da espécie em que Lineu tacou o nome de Lagocephalus
laevigatus. Não sei por quê. Lineu tinha dessas coisas. Qualquer
um que já viu um baiacu percebe logo que ele não pode ser um
Lagocephalus e muito menos um laevigatus.
Mas, enfim, eis que o baiacu
abunda nestas plagas. Outro dia mesmo, pescando mais Luiz Cuiúba, ferrei uns
dez, tudo maiorzinho de um palmo, pescaria até boa, se fosse peixe
que prestasse. Até os quatro dentinhos dele chateiam o vivente,
porque só são quatro, como o nome da família indica, mas são navalhas,
estropiam anzóis, às vezes cortam até os arames das paradas. E o miserável,
ainda por cima, é guloso, engole o anzol de vez e é um sacrifício para
tirar tudo lá de dentro. Para não falar que é metido a batalhador e então
o sujeito está ali pedindo a Deus um vermelhinho, um dentão, uma
xumberga, um beiju-pirá, uma coisa assim decente, e aí a vara verga, a
linha se estica e sai em disparada para o lado, peixe grande comeu! Comeu
nada. O camarada sua, luta pra cá, luta pra lá, mete a mão na linha, faz o
diabo, e quem chega, sacudindo vergonhosamente a ponta da linha? Um
baiacu. Não pode haver maior tristeza para quem já tinha garantido ao
companheiro de pescaria que “esse bicho aqui na linha é uma
sororoca e das grandes”.
Cuiúba não deixava que eu jogasse
fora os baiacus e, lá pelas tantas, havia uma pilha deles, ainda
espadanando a pocinha do fundo da canoa.
— Ha-ha! — exclamou Cuiúba, brandindo
facinorosamente
a faca enferrujada, mas amoladíssima, que ele sempre leva.
— Vou fazer filé de
baiacu, que amanhã eu como uma moqueca!
E passou, com habilidade um tanto
assustadora, a eviscerar, esfolar e desossar os baiacus, jogando “filé” atrás
de “filé” para dentro do coifo. Alguns dos filés, inclusive, continuavam se
batendo, não fibrilando como carne de cágado, mas se agitando mesmo,
quase como peixes vivos. Não creio que isto possa vir a tornar-se uma
atração turística, nunca vi coisa mais esquisita. E meu dever, embora Cuiúba
saiba mais de peixes do que quarenta delegados regionais da Sudepe, era
fazer uma advertência. Nós, biólogos, temos obrigações sociais.
— Cuiúba, você está maluco? Você vai
comer isso? Isso é um Lagocephalus laevigatus! O famoso peixe venenoso,
isso mata em poucas horas!
— Já tinha ouvido gente chamar isso de
peixe-sapo, mas esse nome que você falou nunca ouvi falar — disse
Cuiúba, jogando outro filé na cesta.
— Um anfíbio anuro? — disse eu. —
Não seja ridículo, isso é um Lagocephalus.
— Isto — disse Cuiúba, metendo a faca
na barriga de mais um peixe — é um baiacu. É o melhor peixe do
mar e eu vou comer tudo de moqueca.
— Mas você não sabe que baiacu é
venenoso?
— É pra quem não sabe tratar. O
veneno está aqui — mostrou ele, cutucando uma bolinha entre as
vísceras. — Tirando isso, fica logo o melhor peixe do mar.
— Mas você não sabe que de vez em
quando morre um depois de comer baiacu, às vezes famílias inteiras, e
de gente acostumada a comer baiacu?
— É, eu sei. Agora mesmo,
semana passada, morreram quatro de vez, no Alto de Santo Antônio, só
sobrou um quinto, que ainda está passando mal no hospital. Eles
comiam sempre baiacu, a velha fazia um escaldado com quiabo ótimo, eu
mesmo comi lá várias vezes.
— E então? E ela não sabia dessa bolinha
aí, não estava acostumada a tratar baiacu?
— Estava, estava. Mas ninguém está
livre de uma distração, é ou não é? Uma distração assim ... — e, ploft,
outro filé no cesto.
— Cuiúba, deixe de ser doido, você pode
morrer se comer esse negócio.
— Morro nada.
De volta ao Mercado, procurei
apoio na autoridade de Sete Ratos, peixeiro antigo, diz o povo
que hoje rico, da venda de peixe.Com certeza ele dissuadiria Cuiúba
daquela ideia tresvariada de comer baiacu. Encontro Sete Ratos em pé diante de
uma banca, com as mãos metidas numa gamela, tratando peixe. Já eram quase dez horas,
passava da hora do almoço e era natural que ele estivesse ali preparando
sua comida. Olhei para dentro da gamela, vi uns vinte baiacus miúdos.
— Sete Ratos, você vai comer baiacu?
— É o melhor peixe do mar!
— Mas essa desgraça é venenosa, você
não sabe que é venenosa?
— Ah, é. Semana passada mesmo,
morreram acho que quatro ou cinco, lá no Alto. Família
acostumadinha a comer baiacu, nesse dia comeram... É o desacerto.
— Eu sei, Cuiúba me contou. E
eu que vinha aqui justamente para lhe pedir que tirasse da
cabeça dele a ideia de comer uns filés de baiacu que a gente pescou.
— Ele esfolou o peixe? Tirou a pele? Tirou
justamente o que dá gosto na moqueca? Tirou de frouxidão, foi isso,
tirou de frouxidão! Hem, Cuiúba, você tirou a pele porque
acha que o veneno está na pele, hem? Deixe de ser frouxo,
rapaz, isso tudo é conversa, o veneno nunca esteve na pele, se fosse assim
eu já era defunto.
— Eu sei — falou Cuiúba. —
Eu tirei porque gosto de filé de peixe, mas eu sei que o
veneno está naquela bolinha da barriga.
— Que bolinha da barriga, rapaz, tem
nada de bolinha de barriga, isso tudo é conversa, tem nada de bolinha na
barriga. Isso aí a pessoa tira porque ninguém vai comer tripa de peixe, só
francês ou senão americano. O negócio é na hora do cozimento, aí tem de cozinhar
direito!
— E você vai mesmo comer essa
baiacuzada, Sete Ratos?
— Ora, é o melhor peixe do mar!
Saí por ali, conversei com Turrico,
que, além de garçom, é bom pescador. Ele também é muito chegado a uma
moquequinha de baiacu. Mas não é veneno, Turrico? É, semana passada
mesmo, no Alto... Mas só é veneno nos meses que não têm r, no mês que tem r pode comer sossegado.
— Mas Sete Ratos me disse
que era no cozimento. E Cuiúba...
— Isso é tudo conversa, tudo conversa.
Eu não deixei de comer baiacu nem depois que morreu uma parenta minha
— uma não, duas, que eram velhas vitalinas e moravam juntas. Elas estavam acostumadas,
faziam baiacu muito bem. Mas nesse dia...
— E então?
— É porque foi em julho. Julho não
tem r. Ou tem?
Está certo, pensei eu sem entender
nada, enquanto me dirigia à casa de meu amigo Zé de Honorina, para pegar
um feijãozinho atendendo a amável e generoso convite. Comentei com ele
minha perplexidade.
— Que coincidência! — disse ele
alegremente. — Comadre Dagmar está aí justamente preparando uma moqueca de baiacu.
— Ah, desculpe, Zé, mas eu não
como baiacu.
— Besteira sua, é o melhor peixe do
mar. Agora, não se pode negar que é venenoso. Semana passada mesmo,
no Alto...
— Eu soube, eu soube. E você vai
comer assim mesmo?
— Claro que vou, mas não se
preocupe, que eu mandei preparar uma garoupinha para você, separada.
Entre limões, mãos de coentro, pilhas
de cebolas, alhos, malaguetas e tomates, Dagmar dava os últimos retoques
na moqueca de baiacu. Aproximei-me, estava tudo muito cheiroso.
Observei como aquela sua moqueca de baiacu era famosa, como Zé tinha
confiança em comer aquele peixe venenoso quando era ela quem o preparava. Qual
o segredo para tratar o baiacu?
— Ah, não sei — disse ela. —
Eu mesma não como.
RIBEIRO,
João Ubaldo. Os comedores de baiacu. In: Arte e ciência de roubar galinha:
Crônicas. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 45-9.
Entendendo a crônica:
01 – Que explicações foram
dadas pelos vários personagens, no decorrer da história, sobre o veneno do
baiacu? Que informações concretas foram dadas sobre as atividades desses
personagens?
·
Luiz Cuiúba = Pescador.
O veneno está em uma bolinha entre as vísceras. Se for retirada, o baiacu não
faz mal.
·
Sete Ratos = Peixeiro
antigo. O segredo está na hora do cozimento.
·
Turrico = Garçom e
pescador. O peixe só é venenoso nos meses que não têm r. No mês que tem r
pode-se comer sossegado.
02 – Que características são
comuns a todos esses personagens? Como você poderia descrevê-los?
Pessoas que vivem
e sobrevivem a partir de conhecimentos, mitos e lendas que vão passando de
geração em geração.
03 – Os personagens, segundo
o texto, possuem suficientes conhecimentos científicos para justificar as
afirmações que fazem? De onde provem as teorias deles sobre o assunto?
Considere as informações que o texto fornece sobre esses personagens.
Não. O conhecimento deles faz parte dos
saberes populares que vão sendo passados de geração em geração.
04 – O narrador parece
desesperado para convencer os outros de que o peixe é venenoso. Que indicativos
há no texto de que ele possui uma certa autoridade para falar no assunto?
Ele se diz
biólogo. E tenta provar seu conhecimento citando nomes e mais nomes científicos
relacionados ao baiacu.
05 – Além de não servirem
para comer, que outros motivos os pescadores têm, em geral, para não gostarem
de fisgar baiacus?
Porque tais
peixes, além de não servirem para se comer, estropiam anzóis, cortam arames das
paradas e engolem anzóis.
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